ELMAR CARVALHO

 

Na manhã do dia 11, assisti a uma entrevista concedida pelo palhaço russo Slava Polunin, de 63 anos de idade. Não lhe pude prestar muita atenção, pois estava nos preparativos de me arrumar para ir para o trabalho. A matéria foi veiculada, ao que parece, inicialmente pela Globo News, e depois retransmitida pela TV Globo, para os televisores que a captam através de antena parabólica. Apesar do meu interesse, só pude ler trechos das legendas, impedido pelos movimentos de vestir a roupa, de colocar cinto, de calçar meias e sapatos, e de mais alguns outros afazeres matinais.

 

Alguns anos atrás, li, com muito encantamento, o excelente poema de Heine sobre um velho palhaço, cuja história tentarei sintetizar, mas sem deixar de remeter os meus escassos leitores ao texto poético do excelso mestre da poemática. Um homem, imerso na mais profunda tristeza, que na verdade deveria ser uma brutal depressão, procurou o mais famoso médico e psicanalista da cidade.

 

Este, depois de ouvi-lo atentamente, recomendou ele fosse a famoso circo, que fazia uma temporada na localidade; aduziu que nessa casa de espetáculo trabalhava o mais competente palhaço de então, um mestre consumado das pantomimas, das gargalhadas e da alegria, e que não havia quem não desse boas risadas em suas apresentações. Para espanto do esculápio, o paciente disse que, diante disso, chegava à conclusão de que o seu mal não tinha cura, que para ele não havia remédio, porquanto era ele o palhaço a que o facultativo se referia.

 

Um soneto famoso, da lavra do padre Antônio Tomás, um dos príncipes da poesia cearense, descreve a dor de um palhaço, cuja filhinha morrera. Mesmo assim, o proprietário do circo o obrigou a apresentar os seus números humorísticos. O poema narra que, enquanto o pobre artista circense gargalhava e fazia suas graças, mímicas e pantomimas, o seu coração soluçava internamente. O soneto era declamado nos saraus; todos se emocionavam, e todas as mocinhas iam às lágrimas e soluçavam convulsivamente. Muitos o sabiam de cor.

 

Faz mais de quinze anos, o falecido deputado Humberto Reis da Silveira, que me tinha muita amizade e consideração, que eu procurava retribuir na mesma intensidade, contou-me que um palhaço eslavo, acho que nascido na atual Rússia, assim como Slava Polunin, fora morrer na sua cidade de Jaicós, em cujo cemitério se encontrava sepultado. Não me forneceu maiores detalhes sobre sua biografia e personalidade.

 

Tentei imaginar o que fizera esse clown deixar a sua distante pátria, de clima frio, para vir perambular num país tropical, como membro da trupe de esfarrapado circo mambembe. Teria fugido de um amor não correspondido, da prosaica falta de emprego ou simplesmente fora movido pelo desejo de aventura? Não sei, e jamais alguém saberá. Cada ser humano guarda mistérios no mais recôndito de sua alma. Escrevi um poema em lembrança desse desterrado e esquecido palhaço, cujo nome desconheço.

 

Voltando a Slava Polunin, o meu palhaço de hoje, acrescento que a entrevista foi feita em um sítio bucólico, um verdadeiro horto florestal, onde havia vários cenários, esculturas, artefatos lúdicos, estátuas, mesas e cadeiras que podiam ser movimentadas pelas pessoas que as estavam utilizando etc. O sítio tinha recantos aconchegantes para degustações e libações. Tinha até um lago, onde havia um grande palco aquático, destinado a bandas musicais, e uma cama, na qual o palhaço navegou suavemente, impulsionado por um silencioso motor elétrico, para não produzir poluição, nem mesmo sonora. Soube depois, através da internet, que o seu público-alvo não são crianças, mas adultos. Naturalmente, ele considera que os adultos necessitam mais de “tomar alegria”.

 

Não sei quem banca o luxo e o conforto do extraordinário truão, que ele certamente merece, assim como todos os demais mestres do riso e da alegria. Por muitos, é considerado o melhor palhaço do mundo. Além de atuar em vários shows de palhaçadas (no bom sentido da palavra), criou alguns números para o Cirque du Soleil. Perguntado sobre se era alegre, ao contrário dos palhaços de Heine e do padre Antônio Tomás, respondeu que era radiante. Todavia, depois, em outro trecho da entrevista, quando a apresentadora lhe perguntou se tinha algum momento de tristeza, disse que sim.

 

Claro, como em todo ser humano, em sua alma deve haver alguma hora sombria, por onde se infiltra o fio insidioso de sutil melancolia.