A Trilogia de Máximo Górki
Em: 22/09/2011, às 20H36
Sim. Podem dizer o que quiserem de Górki. Que ele passeava com Stalin na sua casa de campo, que foi o fundador ou o guru do realismo socialista e outras coisas. É moda desmerecer o gênio. Tudo isso não importa. Tudo o que enterra ou celebra Górki politicamente não passa de firula, lantejoula. O que vale é seu texto, magistral, enxuto, conciso, mortal, deslumbrante na sua trilogia autobiográfica, sob todos os aspectos uma obra-prima. A edição dos três livros, Infância, Ganhando Meu Pão e Minhas Universidades, é da Cosac Naify. Tradução, apresentação, ensaios e informações valiosas sobre o autor são de Rubens Figueiredo e Boris Schnaiderman.
Quem lê Máximo Górki, não precisa ler mais nada. Algumas cenas nos deslumbram pela contundência, pela precisão dos detalhes, pelo fragor da narrativa, pela atualidade. Fellini deve ter lido, pois a literatura de Górki revela que estamos cercados pelo surrealismo, que a realidade é hiper-real, que os seres humanos são um mural de exceções, o que chamariam hoje de diversidade.
A primeira cena de Infância é a morte do pai do narrador, que coincide com o nascimento do seu irmão, parido pela mãe de luto e em desespero. Há o funeral paterno (em que Górki se preocupa com duas rãs que são enterradas junto com o caixão) e a viagem imediata para a cidade natal da mãe. A criança morre e é carregada numa pequena caixa no camarote do vapor que singra o Rio Volga.
No recinto sinistro, estão a avó, a mãe e ele, o menino Aléksiei, mais tarde "Máximo, o Amargo". A Rússia gelada e chuvosa, o povo em tremendo sofrimento, a família partida e enlouquecida pelas brigas internas começam, então, a desfilar no livro onde cada frase é um punhal e cada parágrafo contém a grandeza do humano.
Górki ofereceu livro de contos de estréia para várias editoras e foi recusado por todas. Quando conseguiu publicar, houve um estouro. Tornou-se popular e fez amizade com os maiores escritores da época, como Tchekhov e Tolstói. Nas páginas de Infância, vemos como se formou esse caráter onde a inocência duela com a culpa, a vítima dos açoites afia sua capacidade crítica, a travessura prepara a independência e a paisagem hostil inspira um escritor admirável.
Outra cena impressionante é a morte do ciganinho, agregado que fora encontrado ainda bebê na frente da casa dos avôs de Górki, e que foi esmagado por uma cruz pesadíssima, quando esta era carregada do quintal para a igreja. A morte coroa uma série de eventos que definem o perfil do cigano e têm o impacto de uma bala perdida. Não sabemos de onde vêm. Pois vêm desse texto certeiro, esse estopim de chumbo grosso, atirado com fina pontaria.
Os personagens desfilam como num filme. A avó gorda e com imensa cabeleira, ágil como uma gata e que sabia todas as lendas da Rússia de memória. O avô horrível, que o açoitava todas as semanas e que o ensinou a ler. A mãe ausente, que o deixou para trás, viúva que casou com um agiota e morreu de fome e desgosto. Os irmãos nascidos mortos. O mestre tintureiro cego, que era perseguido pelos tios e primos de Górki, que deixavam os dedais em brasa para ele se queimar. O químico, que foi seu primeiro amigo e que acabou expulso pelo avô. A mãe do padrasto, que se vestia toda de verde e tinha, também, a cara e os dentes da mesma cor. E assim por diante.
Quando o livro parece ter esgotado sua capacidade de nos surpreender, algumas cenas sobre a adolescência do narrador nos trazem novos personagens, igualmente inesquecíveis. O filho do guarda-noturno do cemitério, que fazia parte de uma gangue juvenil de ladrões, o filho espancado pela mãe alcoólatra quando não levava alguns copeques para casa, entre outros, empurram o leitor para a situação-limite do narrador, testemunha da morte da mãe (que o espancou no dia do desenlace) e da queda financeira de toda a família.
Em Minhas Universidades, a mulher gordíssima que faz sexo com a vítima, amarrada a uma mesa, de um ritual satânico num covil de mendigos; o mujique que teve partido o crânio com uma marretada e jaz na beira do Volga com os olhos virados para o céu; os estudantes bizarros que convivem com a miséria do povo e fazem parte dela; os intelectuais ágrafos que orientam o autor sobre a morte e a fome: tudo em Górki tem a grandeza do humano e enche de vergonha a literatura atual, tão metida a vanguarda, tão intimista e tão oca, tão sem nada a dizer, tão anêmica e cheia de maneirismos.
Em poucas linhas, Górki descreve sua tentativa de suicídio aos 19 anos, quando deu um tiro no coração e acertou o pulmão, tendo que pagar o mico de voltar ao trabalho um mês depois (um atentado que provocou nele a tuberculose; mais tarde, quase aos 70 anos, morreu de pneumonia). O que o salvou na juventude foi sua força física, já que ele mesmo era fruto da seleção natural promovida pela pobreza e o inverno russo. Condoído do jovem leitor de livros que tentara o suicídio, um revolucionário o leva para o interior do país e o engaja num projeto de preleção catequista aos camponeses. O tiro sai pela culatra, pois eles tentam eliminar os intermediários da produção de alimentos e acabam tendo que fugir da aldeia.
O grande ponto de inflexão na vida de Górki foi conhecer um professor que prestou atenção no que ele realmente era e que soube relevar seu espírito rebelde de adolescente, concentrando-se no que o garoto tinha de mais significativo. Esse contato com um adulto que o entendeu profundamente mudou sua vida e redirecionou seu rumo. Não fosse esse cruzamento de duas personalidades, a alma indômita e o mestre prudente e sábio, não teríamos, talvez, o grande escritor que emergiu da Rússia profunda.
Em Ganhando meu pão, há o destaque para a relação entre o autor e os livros. Qual a Rússia reportada por Máximo Górki nesse inesquecível rio de palavras? Aparentemente, é um país mergulhado na miséria e na barbárie. Rodeado por pessoas ágrafas, o adolescente Górki, órfão e sem recursos, sobrevive à custa do seu esforço físico. O que o diferencia é a leitura de livros, que lê à luz de lampiões, apartado de todos, e às vezes compartilhando com operários e velhos exaustos. É tocante cada cena em que os autores russos, lidos pelo jovem autodidata (que foi encaminhado para os livros pelo cozinheiro de um navio que singrava o Volga), emocionam aquela humanidade brutalizada.
Às vezes, chegam a roubar um livro favorito do rapaz para escondê-lo numa gaveta fechada a chave. O que isso nos diz? Que a Rússia produzia uma literatura, no século 19, que se disseminava em rede por todo o tecido social, chegava até os confins da população de todas as formas, seja em sebos onde se alugavam livros, seja por meio de alguns leitores que liam para a coletividade. Por todo o trajeto de sua narrativa, Górki esmiúça essa relação complicada entre o povo russo e sua própria literatura.
Trata-se de uma sucessão de comentários sobre livros e autores, o que cada um produziu e a referência que eles tinham entre comerciantes, camponeses, operários, entre o povo recém-saído da servidão e às voltas com a rudeza do tzarismo décadas antes da Revolução. Não tente detectar qualquer vestígio do chamado realismo socialista nessas palavras de Górki. Ele as escreveu e publicou antes de 1917. Sua principal observação é que as pessoas reais não estavam reportadas na literatura que conhecia, não apenas estrangeira, mas nacional. Ele sabia do que estava falando. Convivia diretamente com o povo, fazia parte dele e era seu olho consciente.
Como pode ter saído, de tanta miséria, um escritor como Górki? Ele mesmo responde. Diz que é importante escancarar as misérias do povo russo, que assim mesmo consegue se superar. Vindos de uma realidade rural, se aglomerando em vilas e cidades, a população criada nos ermos tinha a auto-suficiência da sabedoria empírica, que despreza o que estava impresso, considerando-o fantasia. Tudo pode ser publicado, observou um dos personagens que conviveram com Górki, portanto, não preste atenção nisso que você lê. Mas Górki encontrava nessa relação com os livros o ambiente suportável para trabalhar suas perplexidades. O que mais o invocava era o sem sentido das vidas entregues à maldade. Considerava particularmente nojento o jeito como eram tratadas as mulheres.
Como a grande formadora do seu caráter foi a avó, paradigma de bondade e generosidade, e de alma caridosa e cheia de fé, Górki se insurgia com a violência que se abatia sobre prostitutas, operárias, e até mulheres da nobreza. Era um mistério que os homens as tratassem daquele jeito, falando mal pelas costas, açoitando-as e, como aconteceu com sua própria mãe, levando pontapés do marido, padrasto de Górki.
As pessoas não são boas nem más, são incompreensíveis no seu comportamento, segundo Górki. Ele tenta decifrar o enigma compartilhando suas dúvidas para quem estiver perto. Ressente-se do deboche e das perguntas evasivas. Acha que todos escondem algo dele. Por isso insiste e cada personagem é crivado de perguntas até a exaustão. É uma pesquisa profunda que desenvolve sem as veleidades científicas, mas como literatura de primeira água, saindo dela enriquecido. Acumula sabedoria, ao mesmo tempo em que enche sua cabeça de mais dúvidas.
Górki se engajou mais tarde no projeto cultural stalinista, pois esse era seu tempo e seu país. Mas sua literatura sobreviveu porque está resguardada de qualquer superficialidade ou artificialismo. Ele descreve o povo sem os equívocos de percepção que infletem sobre as pessoas miseráveis. Veio do ventre da velha Rússia, foi chibatado quando menino, recolhia lixo junto com outras crianças, como mostra a obra do cineasta Mark Donskoy nos anos 1930.
Hoje, vemos como a miséria é aproveitada pelo pensamento dito politicamente correto, em que a escassez é mostrada como exceção a um ambiente asséptico. A própria reportagem (com jornalistas engravatados) representa o mundo clean e justo dos bem-nascidos, enquanto a câmara foca as paredes roídas, os seres humanos carcomidos, as falas partidas, os rostos em pânico. Em Górki, o narrador faz parte da paisagem, não está acima dela, é gerado nesse ninho. Não há escape na literatura monumental do gênio.
As universidades de Górki são as pessoas. Nelas tenta decifrar os enigmas. Gente o invoca de todas as formas. Acha que estão escondendo algo, perdem o tempo e a vida em rotinas autodestrutivas. Por toda parte onde vá, ele é o homem que lê, que tem chance de se livrar daquelas amarras. É tratado com pena pelos seus contemporâneos, que vêem nele o maior desperdício da nação rota que a todos devora. Mas ele conseguiu se superar. Não graças à revolução, do qual foi também crítico quando achou necessário e da qual, dizem, talvez tenha sido uma das vítimas, pois teria sido eliminado por Stalin. Mas graças ao seu talento, que nos subjuga como um sol recém-nascido e nos leva para a grandeza da arte incomparável que é a literatura de quem sabe o que faz.
Tchekhov, o mestre absoluto, quando lia Górki, tinha vontade de dançar de alegria.
Texto Originalmente publicado no caderno "Cultura" do Diário Catarinense, em 9 de agosto de 2008. Nei Duclós é escritor e jornalista.