A tradução que cativa
Em: 05/11/2009, às 08H43
Gabriel Perissé
Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944) não imaginou que O Pequeno Príncipe (1943) viraria um dos livros mais vendidos, após a Bíblia e o Alcorão. O pequeno ser de cabelos de ouro, perdido no deserto, conversando com o aviador, a raposa e a serpente, é talvez o mais conhecido personagem da literatura.
O conto poético não pretende ser um texto sagrado, mas traz à tona questões universais como amor, amizade, morte, sentido da vida, criatividade, beleza, poder... Essa universalidade se manifesta em traduções em mais de 170 idiomas e dialetos, do inglês ao aramaico, do italiano ao papiamento (das Antilhas Holandesas), do japonês ao sérvio.
Na sua singeleza nada ingênua, reforçada pelas ilustrações do próprio autor, inseparáveis do texto, a história nos convida a pensar aspectos da condição humana, como a amizade. O verbo apprivoiser é crucial para entendermos como o autor concebia esse valor.
A amizade é uma das manifestações do amor. A raposa que encontra o principezinho aparecera em Terra dos Homens (1939). É um carnívoro do tamanho de um coelho, raposinha solitária que, na madrugada do deserto, lambe o orvalho nas pedras. Ela e o principezinho conversam no capítulo 21 sobre a arte de fazer amigos. Construir amizade autêntica requer paciência e sensibilidade. É preciso saber apprivoiser o outro:
- Qui es-tu? dit le petit prince. Tu es bien joli...
- Je suis un renard, dit le
renard.
- Viens jouer avec moi, lui proposa le petit prince. Je suis tellement triste...
- Je ne puis pas jouer avec toi, dit le renard. Je ne suis pas apprivoisé.
A raposa não pode brincar com o principezinho enquanto não for apprivoisé. Mas como conquistar essa condição? As traduções poderão nos responder, e nos ajudar a entender como o contato com o texto e o contexto originais é fundamental para captar nuances específicas... talvez intraduzíveis.
Na primorosa tradução brasileira, do poeta e monge beneditino dom Marcos Barbosa (1952), apprivoiser é "cativar". Interessante saber, aliás, que este verbo lhe foi sugerido pelo escritor Gustavo Corção, o que mostra uma vez mais que a boa tradução, além do saber da língua-fonte, exige traquejo com a língua-meta.
Cativar
A palavra "cativar" consegue reunir as ideias de ligação, atração, simpatia, envolvimento e fascinação. Os laços que se criam entre dois amigos os prendem, certamente, mas não se trata de uma escravidão humilhante. A dependência mútua é voluntária e enriquecedora. A responsabilidade que advém dessa livre ligação é essencial à amizade, e transcende em muito a mera obrigação de atender às necessidades daquele que está sob nossos cuidados.
Em Portugal há o registro de ao menos quatro traduções. Uma é da escritora Joana Morais Varela (1986). Nela, a raposa diz: "Não posso brincar contigo. Não estou presa...". A ideia negativa de prisão impõe-se, embora uma das acepções de "prender" remeta à união afetiva ou moral entre pessoas.
A primeira tradução para o inglês é de Katherine Woods (1943), e o verbo para apprivoiser é to tame, cujo significado mais óbvio é "domesticar", "amansar", "adestrar", no caso dos animais, ou "tornar dócil" no de uma pessoa. Pelo contexto, a impressão de submissão deve ser substituída pela de superação da hostilidade entre dois seres. Não é tradução ruim: apprivoiser também é "domesticar", com sentido de "criar familiaridade" e até "educar" e "humanizar".
Domesticar
Uma curiosidade etimológica lança mais luz sobre a questão. Apprivoiser provém de *apprivatiare (latim vulgar), que procede do adjetivo privatus, em oposição a publicus ou communis. É tirar algo do âmbito externo e levar para dentro de casa, a um lugar privado. Do ponto de vista das relações, é criar intimidade em clima de grande confiança.
Na tradução italiana (1949), de Nini Bompiani Bregoli, a raposa diz: "non sono addomesticata". O verbo addomesticare reporta à capacidade humana de dominar e levar um animal selvagem para casa (domus, em latim). Cabe, no entanto, perguntar se seria esta a melhor solução em italiano. Domestiquer e dompter existem em francês, mas Saint-Exupéry não optou por eles. Apprivoiser alude a uma ligação pelo afeto. O amor é o que prende um ser a outro. O conceito de domesticação supõe sujeição, superioridade de um sobre o outro.
Na tradução espanhola do diplomata argentino Bonifacio del Carril (1971), a resposta da raposa (zorro, palavra masculina) é: "no estoy domesticado". Para o galego: "non estou domesticado", por Carlos Casares (1972). Em galego asturiano ou eonaviego: "non estou domesticada", de Xavier Frías Conde (2008). Em asturiano, há tradução do filólogo Xosé Lluis García Arias (2002), na qual a raposa usa outro verbo: amansiar. Continuamos presos a"domesticar", tornando o animal (ou pessoa) manso, obediente, fácil de conduzir.
Na tradução alemã de Grete e Josef Leitgeb (1949), a resposta não é diferente: "Ich bin noch nicht gezähmt". De novo, a raposa reclama não ter sido domesticada por ninguém, transformada em animal de estimação (de estima). A queixa se repete no grego, com o uso do verbo e??µe??µe??, que foi o escolhido pela tradutora Rena Oikonomidos (1957).
Leitura criativa
O verbo apprivoiser, como interpretado por Saint-Exupéry, requer do tradutor um exercício de leitura criativa. Se nos ativermos à relação entre animal e humanos, prevalecerá a necessidade da doma, do domínio do homem sobre os bichos. Ou subjugamos os animais à nossa vontade ou seremos vítimas dos seus instintos. Mais ainda no caso da raposa, pela desconfiança que desperta em nós há séculos. Na Idade Média, simbolizava o demônio ou os hereges. No Extremo Oriente, é identificada com os poderes do mal. Na Sibéria, encarnava o mensageiro dos infernos. A mitologia armênia a define como maliciosa. Cristo chamou o rei Herodes de raposa porque ele matava e bebia o sangue do povo.
Contudo, e nisso reside o talento literário, capaz de dar novos sentidos às palavras, Saint-Exupéry abstrai essa negatividade e oferece imagem positiva. A raposa introduz o principezinho no mundo da amizade, ensinando-lhe como cativar e se fazer cativante. No contexto, apprivoiser é verbo de ação bidirecional, e o ideal seria que em cada idioma a palavra apontasse essa significação.
Gabriel Perissé é professor do Programa de Pós-graduação em Educação da Uninove (SP).
www.perisse.com.br