A TESSITURA DO LIRISMO SOCIAL NO CONTO O EMBONDEIRO QUE SONHAVA PÁSSAROS, DE MIA COUTO
Por Rosidelma Fraga Em: 10/01/2012, às 22H56
A tessitura do lirismo social no conto O embondeiro que sonhava pássaros, de Mia Couto
O conto “O embondeiro que sonhava pássaros”, do escritor moçambicano Mia Couto pode ser lido pelo viés da tessitura lírica em virtude de sua dicção imagética e ritmica, a qual se confunde com o texto poético. A narrativa desenrola-se com o percurso da sombra e da memória: “Esse homem sempre vai ficar de sombra: nenhuma memória será bastante para lhe salvar do escuro” (COUTO, 1998, p.63). Esta primeira imagem exposta pelo narrador hererodiegético, aos poucos, irá ganhar a formação de drama altamente lírico. O lirismo desencadeia-se por meio do personagem sem nome que carregará a marca mítica do embondeiro, mesclando dor, lenda, sonho e magia.
Em Estórias africanas: história e antologia, a saudosa professora Maria Aparecida Santilli (1985, p.30) elucida que a veia fulcral da narrativa de Moçambique, além da proposta nacionalista, se refere aos dramas sociais, mesclando “realidade e fantasia”, “sonho e realidade”, muitas vezes, recheada de descrição e lendas. Assim, o primeiro drama exposto no conto é o paradoxo da falta de identidade do vendedor de pássaros que “não tinha sequer o abrigo de um nome” (p.63). Entretanto, a identidade era acentuada na presença mística do embondeiro, “uma árvore muito sagrada, que Deus a plantara de cabeça para baixo” (p.63). Para os meninos, o embondeiro e o vendedor de pássaros possuiam um caráter sagrado, cheio de magia, encantamento e sonho.
Ora, o vendedor era mormente um sábio que transmitia as histórias e os casos míticos sobre a árvore. Todavia, os colonos demonstravam que o passarinheiro se opunha à própria cor dos brancos, aguçando o preconceito racial: “Aquele preto quem era? Alguém conhecia recomendações dele? Quem autorizava aqueles pés descalços a sujarem o bairro? O negro que voltasse ao seu devido lugar” (COUTO, 1998, p.64). O negro era sem referências e sem identidade, por excelência. É curioso observar que, mesmo depois da independência, o negro continuou sendo retratado de maneira pejorativa. Para o crítico Manuel Ferreira (1977), na literatura africana de linha colonialista, o negro surgia acidentalmente e era evocado nos textos a partir de um caráter de preconceitos e racismos, ao passo que os homens brancos eram os heróis e os desbravadores de terras.
A despeito desse racismo expresso no conto de Mia Couto, assinala-se que apesar do fim do Regime Salazar, uma das grandes conquistas para os africanos no que se refere à emancipação política do país e, além disso, quanto ao fim do regime apartheid (1948-1994), de onde se ergue uma nova África do Sul, não foi possível excluir as cicatrizes da alma do africano. Para Waldman e Serrano (2007), no capítulo “Resistência e lutas pela independência”, da obra Memórias da África, a exclusão deste regime representou um grande mérito para a África do Sul, porém restaram as cicatrizes psicológicas porque o fim do regime de segregação racial não significou o encerramento do apartheid social, uma vez que “o africano ficou distinguido pela separação da expressão linha de cor” (WALDMAN;SERRANO, 2007, p.260). Veracidade é que o conto de Mia Couto, escrito depois de 1994, apesar de toda a carga lírica e imagética, não conseguiu se desvincular dessa denúncia social e nem escondeu as marcas da linha de cor que separa o colono branco do colonizado em África.
Dito isto, abre-se um parêntese para dizer que Moçambique esteve sob o domínio de Portugal desde o século XV até 1974. Com a queda de Salazar, Moçambique fica reconhecido como nação livre em 25 de Abril de 1975, porém, dois anos depois, o país é atingido pela guerra civil até 1992. Frente a tal contexto, as narrativas, como produto indissociável da História, não conseguiram separar de tais contextos e ainda chegam a ser um subsídio para o leitor repensar a identidade do moçambicano como é o caso da obra Cada homem é uma raça. Dir-se-ia que o narrador revela, ao longo do enredo, que o negro simbolizava a instauração da marca identitária ao fundir-se e confundir-se liricamente com o canto dos pássaros no embondeiro, de onde a imagem irá ser a transcendência do sujeito e de sua raça. A rigor, Rita Chaves (2005) explicou que a identidade do moçambicano se constitui pela recriação da linguagem e a chave-mestra para a construção é a multiplicidade de elementos poéticos.
A fantasia poética detecta-se na voz do personagem Tiago, o menino que perseguia sonhos, pois ele conviveu com o passarinheiro e, sobretudo falava aos pais sobre a árvore sagrada e seus mistérios. O caráter sobrenatural demarcava-se na fala do narrador acerca do português branco e o negro:
Afinal, os colonos ainda que hesitaram: aquele negro trazia aves de belezas jamais vistas. Ninguém podia resistir às suas cores, seus chilreios. Nem aquilo parecia verídico mundo. O vendedor anomimava, em humilde desaparecimento de si. Os portugueses se interrogavam: onde desencantava ele tão maravilhosas criaturas? Onde, se eles tinha já desbravado os mais extensos matos? (COUTO, 1998, p. 65).
Com base na lenda, opera-se o mito na narrativa de Mia Couto de maneira a se pensar também nas considerações de Eleazar Mielietinski (1987, p.329). Para ele, o relacionamento entre literatura e mito “se liga via conto maravilhoso e heróico, que surgiram nas profundezas do folclore e continuaram a desenvolver-se ou foram recriados em livros”. Os mitos continuam a ser recriados na literatura e o mitologismo é um fenômeno peculiar da literatura do século XX e “é inconcebível neste século”. Portanto, o mito liga-se ao universo da fantasia, da recordação e da narrativa. Por excelência, “na fantasia artística e mitológica e na fantasia humana há certa identidade, na medida em que ela não é superável da alienação entre o indivíduo e as forças sociais e naturais extra-individuais” (MIELIETINSKI, 1987, p. 441).
Nessa perspectiva, o lirismo banha o conto com a presença dos aspectos mítico e místico concomitantemente. Quando os colonos violentam o vendedor de pássaros ocorre uma mágica comunicação superior e transcendental, peculiar da poesia: “foi então: as flores do embondeiro tombaram, pareciam astros de feltro. No chão, suas brancas pétalas, uma a uma, se avermelhavam” (p.69). A lenda contida no embondeiro valida-se por meio da ruptura com a crença. Na medida em que os colonos espancavam o negro, também agrediam o embondeiro. Ambos se fundem em poesia, já que essa, como estado anímico e existencialista, é entrar no ser. Para o menino, “aquela árvore era capaz de grandes tristezas” (p.65), ao passo que o velho passarinheiro, ao ser violentado pelos colonos, “parecia nem sofrer, vegetável, se não fosse o sangue” (p.68).
Rompendo-se com a lenda do embondeiro, o conto abre a imagem da transcendência via caráter sagrado que se efetiva pela presença da música, a arte que consegue manifestar os diversos afetos da alma humana mediante ao som. O passarinheiro machucado não consegue tocar a muska (gaita) e esta é atirada pela janela. O menino toca-a na cela e percebe a ausência do velho no instante em que há derramamento poético do canto dos pássaros. Tiago também transcende nesta última imagem da narrativa. Ao tocar a muska, ele consegue atrair os pássaros e os colonos revoltados atiram fogo na árvore e a lenda é cumprida. O mal que eles tentaram fazer ao passarinheiro se revertia ao colono que se emigrou no sonho do embondeiro:
As tochas se chegaram ao tronco, o fogo namorou as velhas cascas. Dentro, o menino desatara um sonho: seus cabelos figuravam pequenitas folhas, pernas e braços se madeiravam. O menino transitava de reino: arvorejado, em estado de consentida impossibilidade. E do sonâmbulo embondeiro subiam as mãos do passarinheiro. Tocavam as flores, as corolas se envolucravam: nasciam espantosos pássaros e soltavam-se, petalados, sobre a crista das chamas. As chamas? De onde chegavam elas, excedendo a lonjura do sonho? Foi quando Tiago sentiu a ferida das labaredas, a sedução das cinzas. O menino, aprendiz de seiva, se emigrou inteiro para suas recentes raízes (COUTO, 1998, p. 71).
Sobre a produção de Mia Couto, torna-se pertinente apontar o texto História e mito em cada homem é uma raça, de Alcione Manzoni Bidinoto (2004). A autora demonstra que a “construção verbal, em forma de enigma, é sintomática no que se refere à ambiguidade dos aspectos narrativos de “o embondeiro que sonhava pássaros”. No nível da linguagem, reflete-se a ambivalência” (BIDINOTO, 2004, p.77). O leitor não consegue desvendar os mistérios da morte e/ou desaparecimento do passarinheiro. Por conseguinte, ele permance na narrativa como preanunciou o narrador na primeira linha do conto: “Esse homem vai ficar de sombra” (COUTO, 1998, p.63).
Ainda quanto ao final lírico do conto de Mia Couto, convém asseverar que o símbolo do fogo merece reflexão cuidadosa. Ele está associado à imagem das cinzas e remete à poesia. Segundo Gaston Bachelard (1999, p.59), “com a lenda de Fênix, a ave que ressurgia das cinzas pelos raios solares, é vista como símbolo da poesia, Fênix é sublimação absoluta da abertura à transcendência”. Neste contexto, o narrador miacoutiano traz a imagem lírica da regeneração por meio desses símbolos. As labaredas do fogo consomem a árvore e são as marcas da metáfora de purificação. Em Mia Couto, tem-se a duplicidade do fogo, ampliando os significados, por exemplo, se o leitor associar o fogo à visão africana de vida, a saber: geração, morte, regeneração (renascimento). Essa tríade imagética no conto remete ao ciclo vital, promulgando a eternidade do retorno mítico na figura do menino Tiago que se emigrou inteiramente para as suas raízes.