A sociedade das caixas

[Paulo Ghiraldelli Jr.]

Heidegger chama a atenção para o engano da equação A = A. Trata-se de uma igualdade, ele diz, mas não de identidade. Uma coisa pode ser igual a outra coisa. Mas, se estamos falando em identidade, não há uma coisa e outra coisa, há apenas o mesmo. Desse modo, o mesmo, a identidade, não poderia ser explicitada, como em geral fazemos, seguindo nossos manuais de lógica, por aquilo que chamamos de “princípio de identidade”, o A = A.

Temos de ficar atentos para essa distinção, entre o que é igual e o que é o mesmo. Pois “o mesmo”, aplicamos a coisas e indivíduos humanos. Quando digo que eu sou eu, isto é, que eu sou eu mesmo, em geral estou apelando para uma unidade psicológica. Sei que fui ao cinema ontem. Sei que o que foi pensado por mim hoje é o que chamo de meu pensamento. Sou eu, sou o mesmo que foi ao cinema; sou eu, sou o mesmo que pensou o que pensou um conteúdo X. Nesse caso, estou aqui fazendo referência à subjetividade, a minha subjetividade, e em seu núcleo que chamo de identidade. Eu me reconheço como de posse de minhas memórias e de meus pensamentos. Eu me reconheço como associado a um determinado corpo, que muitas vezes não aparece como apenas associado a um eu, mas como sendo o próprio eu. Eis aí minha identidade psicológica.

Essa identidade psicológica não é a minha identidade social. Esta, por sua vez, caracteriza a mim, ao meu eu, a partir de uma investidura e de um agenciamento. Um investidura: por uma série de processos sociais, eu me invisto segundo etnia, religião, língua, profissão, gênero, grupo social, nacionalidade, apetecer sexual, aspectos físicos, aspectos psicológicos etc. Um agenciamento: diversas instâncias sociais me agenciam, ou seja, me dão isso ou aquilo para fazer, para sentir, para julgar etc. Clamam para que eu atue como agente, ou, podemos dizer, como sujeito.

Podemos chamar de processos de subjetivação os processos que envolvem investidura e agenciamento. Processos que me colocam segundo uma psicologia e segundo uma socialização. Esperamos que as crianças ganhem uma psicologia mais ou menos delimitada, algo que chamamos de amadurecimento, que envolve capacidades cognitivas e estabilidade emocional. Esperamos que as crianças saibam, à medida que vão ficando adultas, a entenderem suas identidades sociais. O problema todo é que, no primeiro caso, o da identidade psicológica, queremos menos mutabilidade, enquanto que na identidade social, queremos que os indivíduos não se enrijeçam. Posso me reconhecer como eu mesmo por conta de minha memória, pensamentos, modos de sentir. Mas, se eu tiver de me reconhecer como eu mesmo somente segundo ou profissão ou gênero ou etnia ou classe social ou religião ou nacionalidade ou o apetecer sexual, ou aspectos físicos e psicológicos, então, acabo por me colocar em uma caixinha que dificilmente me dará as melhores condições de fazer valer minhas potencialidades.

A identidade do identitarismo é a busca dessas caixinhas, e não raro a apologia de uma delas como sendo aquela na qual um eu deve ser um eu. Nesse sentido, o identitarismo é antes de tudo uma forma de não realização das potencialidades humanas. Alain Badiou lembra que o Manifesto Comunista de Marx e Engels tem uma frase que só pode ser entendida em seu conteúdo de negação do identitarismo. No Manifesto há a frase “os trabalhadores não tem pátria”. Isto é, do ponto de vista da emancipação, eles são os que mais se aproximam do homem genérico. (1) Eles são os que podem solicitar a realização do impossível como um projeto de felicidade, e isso na medida em que não estão presos a caixinhas, não estão atados aos projetos identitários.

Na época de Marx e Engels, o identitarismo não era propriamente uma doutrina. Ele era subjacente a certos projetos bem delimitados. Em geral, o nacionalismo era um deles. Em nossa época, ocorreu uma proliferação de caixinhas, e quanto mais elas foram aumentando em número, a reação não foi a de se pensar no homem genérico, mas a de cobrar que cada um se fixasse em uma caixinha o mais rápido possível. Algumas caixinhas foram denunciadas como ideológicas, por exemplo, aquela em que ficou o “branco, macho e heterossexual”. Essa caixinha foi denunciada como ideológica porque, segundo os identitaristas, ela é apenas uma caixinha a mais, mas durante muito tempo ela quis se apresentar como acima de todas as caixas, como sendo o sinônimo do homem genérico. Ao mesmo tempo, sem perceber que acabaram de engolir e assumir a ideologia que denunciaram, os identitários passaram a fazer a apologia de outras caixinhas. Em alguns momentos, se perderam e fizeram dos novos encaixados o novo homem genérico.

O resultado dessa operação foi, de início, emancipador. Depois, tornou-se uma caricatura imbecilizante. Tudo teria que ser feito segundo as caixinhas ditas alternativas: o “negro, gay, evangélico”; o “indígena, gordo e gay”; a “mulher, negra, lésbica”, e assim por diante. A caricatura imbecilizante se fez notar quando as tais caixinhas deixaram de lado a questão da identidade social, para adotar critérios de representatividade superiores a quaisquer outros critérios. Pessoas são requisitadas para serem astronautas, mas antes de qualquer qualificação, médica, possibilidade de treinamento de horas de voo segundo determinada roupagem, etc., é fundamental que o candidato seja “mulher, cafuza, bissexual, gorda, cabeluda e não-paulista”. Todo treinamento deve ser feito sem que essas características se percam. Então, pode-se adaptar, claro, o uniforme ao padrão corporal da mulher, mas não se pode adaptar o uniforme ao padrão do gordo, uma vez que, nesse último caso, problemas de saúde adicionais são detectados. Todavia, como tudo veio segundo as caixinhas alternativas, tudo tem que ter o mesmo tratamento. Nesse específico caso, ser mulher e ser gorda é a mesma coisa, para os identitários. Respeitar uma caixa implica no respeito à outra. E a NASA que crie condições para que a gorda vá para o espaço, mesmo cardíaca. Ou seja, características mutáveis começam a ser tomadas como não mutáveis e com o mesmo grau de respeitabilidade para funções variadas. Cria-se uma sociedade disfuncional e perigosa. É exatamente isso que faz o identitarismo. A representatividade, puramente ideológica, vai engolindo a racionalidade inerente aos serviços variados, e a investidura e o agenciamento vão se tornando caducos, disfuncionais, hilários e, enfim, perigosos.

Em um mundo assim, o anão gordo reclama que o basquetebol é um jogo “elitizado e injusto”. E o resultado não é a criação de um basquete para anões, mas simplesmente uma regra em que diz que cada time de basquete precisa ter no mínimo dois anões. O jogo fica inviável. Então, mentes brilhantes identitárias resolvem criar uma regra para o basquete existir: o anão deve pegar a bola e driblar, sem ser incomodado por qualquer marcação. O jogo fica chato, claro! Então, com a baixa frequência aos jogos de basquete, os identitários acabam decretando o fim da existência dessa modalidade esportiva, pois a “democratização mostrou que era uma modalidade elitista, que os yankees, por meio do imperialismo, nos fez adotar”. Livres do domínio yankee, pudemos avaliar melhor e resolvemos só jogar bolinha de gude.

A sociedade de caixas do identitarismo é a sociedade do jogo da bolinha de gude. Será uma modalidade olímpica!

Paulo Ghiraldelli, professor, filósofo, escritor e jornalista

  1. Badiou, A. A metafísica da felicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2018, p.67.