[Cunha e Silva Filho]

           Na leitura que ando fazendo da obra de Afrânio Coutinho (1911-2000),  Da crítica e da nova crítica (Rio de Janeiro: Editora  Civilização  Brasileira S.A,  1957, 205 p.), considero  de particular  relevância  ao  esclarecimento dos  pontos de vista daquele crítico  e historiador o debate da crítica  de jornal, ou crítica de rodapé,que, no país,   conheceu  seu tempo áureo, dos anos  de 1940  a 1950,  aproximadamente,  a partir  das inovações que  se operaram  nas  práticas  da chamada “nova crítica,”  a qual teve  em Coutinho seu    principal  divulgador, doutrinário e teórico  no país.

           Não estou sozinho em compartilhar  da  oportunidade  dos temas   ventilados na obra. Fausto  Cunha (1923-2004), crítico  literário que, nos anos 1950, muito jovem, já começava a se destacar  na geração  de novos críticos brasileiros,  afirmava  ser Da crítica e da nova crítica  “um livro decisivo  na história da  crítica  brasileira (( CUNHA, Fausto. A luta literária. 1.ed. Rio de Janeiro:  Editora Lidador,  capítulo  “A  Nova Crítica,  p. 49-60). 

No  que concerne ao  tema central deste artigo,   Coutinho,   no mencionado  livro, discute  amplamente  dois conceitos  da prática  crítica, o da crítica militante, que remonta aos franceses, sendo  Sainte-Beuve (1804-1869) seu mais  notável cultor com  os seus famosos artigos  semanais  conhecidos  como  Lundis, e da crítica escrita especialmente  para o livro, que  principiava a dar seus primeiros  passos e que encontrou, mais tarde, o lugar  mais  propício para seu  desenvolvimento -  a universidade - quando  no país  surgiram paulatinamente   os cursos de  filosofia e   letras

Convém, antes de tudo,   aclarar  uma questão  que  se  tornou  controvertida  na biografia  intelectual do crítico Coutinho:   é voz corrente que ele foi  um aguerrido   inimigo da  crítica de rodapé,  período  em que  dominava  o pensamento  critico  conhecido pelo nome de impressionismo. Quem  contudo,  se  der ao  trabalho de  ler  A crítica e da nova crítica, verificará  que os fatos  não foram exatamente  assim. Coutinho  reprovava  o rodapé,  sim,  daqueles     críticos sem  nenhum preparo  para o ofício de  julgar  livros. Entretanto,  não se dirigiam  suas    diatribes  contra  figuras  de reconhecida  capacidade  e erudição para o  exercício da crítica  militante. Ele não citava  nomes,  somente  generalizava suas ponderações.

 Coutinho  deplorava  a circunstância  de que escrever artigos  sérios e profundos   em  exíguo  período de  tempo não poderia   se definir  como  crítica literária,  disciplina  que, segundo ele,   demandava  leitura e releitura,  paciência e todo um aparato  técnico  que não  poderia  se encaixar numa simples seção  de uma coluna semanal.

Comentando  historicamente,  alguns acidentes por que  passou a crítica militante, “jornalística,  de folhetins  periódicos” ( Da crítica e da nova crítica, p.53) de rodapé, ou  review, Coutinho  lembra  que,  tendo-se  popularizado  a militância  crítica da França para outros países,  que passou a valer  como  “padrão da crítica,”  com o tempo, segundo  ele,   surgiram  “divisões” incontornáveis  no “sistema” sobretudo   “entre a crítica e a história literária” ( idem, p.54) em que a primeira  cuidaria  da produção  do presente, praticada nos  jornais, e a segunda, se ocuparia da produção  do passado,  com a denominação de erudita, historiográfica,  ensaística. Quando  do desenvolvimento  dos estudos literarios  brasileiros,  estas duas divisões, a meu ver,  corresponderiam, respectivamente,    às atuais  resenhas  e monografias, dissertações e teses  universitárias,  guardadas as proporções e as grandes  modificações  sofridas no tempo

São muito tênues as diferenças entre  resenha  e jornalismo  literário, sendo este  último  bem  próprio de  críticos que  têm sua coluna  semanal  num  jornal  atualmente. Seria  o exemplo de  José Castelo em O Globo,  Prosa & Verso.

 A meu ver,  Coutinho, com muita  clareza e alicerçado em autores  como  Frank Swinnerton, reputado  por ele como o  autor na época (1939)  que de forma mais    profunda  analisou  “as relações entre a crítica e o  ‘review’,  seguido de outros como J.D.Adams, J. T. Shipley, J.Drewry, G.West e Wayne Gard, faz a distinção entre resenha e crítica. Nestes termos: “ A crítica considera que o leitor conhece a obra e o autor discutido, ao passo que o ‘reviewer’ não pode levar em conta essa possibilidade, pois o leitor de jornais é presumidamente menos  informado do que o de  trabalhos de  crítica” E acrescenta: “Além do mais, oreviewer’ lida com obras do momento, ao passo que o interesse do crítico é menos imediato.”(idem,. p.73-76) Daí aduz Coutinho que o ‘reviewer’ cumpre  uma função no jornalismo  informativo sobre autores e temas literários, de forma subjetiva e conclui que a grande voga  do impressionismo crítico residiu  tanto tempo  justamente por sua natureza midiática,  de divulgação,  de  popularidade, de alcançar  o  grande público, enquanto a crítica é, em essência,  do domínio técnico,  “objetivo”, “impessoal” (ibidem, p. 76).

Hoje em dia,  com  o pouco espaço dado à literatura  pela imprensa,  o trabalho do crítico  se circunscreve,  em primeiro lugar,  à cátedra universitária, espaço  privilegiado de sua atuação,   ou de forma independente,  em livros, revistas, jornais, sites e blogs,  quando ele não  pertence aos quadros da universidade. Este último  tipo de crítico  está rareando. Quanto ao jornalismo crítico, nesta função  podem caber  o crítico  universitário,  o crítico  independente e o jornalista  formado  em  letras ou  não.

No jornalismo  crítico de agora  percebe-se que os  seus colaboradores  em geral  pertencem ao  jornal ou são  convidados  pelos editores  de  seções  literárias  para colaboração  esporádica. Tais colaboradores  procedem de várias  áreas do conhecimento  humano. São, em geral,  professores  universitários. Não  devemos  olvidar  que no jornalismo  crítico  se inclui também  o  crítico  universitário.Um outro  fato,  se  a crítica de rodapé  teve o seu  ocaso, em lugar dela  se preservou  o review, ou a resenha, ademais não faltando  esporadicamente  o ensaio de alta relevância e complexidade nos múltilos saberes, sendo  exemplos típicos  atuais   o que se vê e se lê no Caderno  de cultura Ilustríssima, da  Folha de São Paulo, somente para citar o exemplo do que este articulista  lê com assiduidade.

Em toda a história  literária  brasileira,  quando  principalmente se consolidou o Romantismo até  hoje podemos   rastrear  a colaboração de autores  brasileiros na imprensa discutindo  literatura, julgando  autores, travando  polêmicas,  publicando  livros em folhetins  de jornais. O que tem acontecido, ao longo dos anos,  são  fases  mais  brilhantes e mais   produtivas  de publicações  na imprensa.

O próprio  Afrânio Coutinho  deve parte  considerável de sua  obra crítica aos jornais, no que   resulta  um  paradoxo  o fato de por vezes haver  direcionado  sua crítica ao rodapé,  ressalvando  as  afirmações que  fiz  anteriormente  neste   artigo. Livros como Correntes cruzada,   Da crítica e da nova crítica  e No hospital das letras são  frutos de sua  participação ativíssima na imprensa do Rio de Janeiro e possivelmente com  republicação em  outros  periódicos  brasileiros  da época.

No prefácio, a Correntes cruzadas, de resto,  texto fundamental  para  se ter uma visão  mais ampla  dos temas mais  abordados  pelo autor até com  certa  redundância,  Coutinho  reconhece  que  não  teria   como   fazer crítica literária em rodapé,  ou seja,  sua  atividade crítica a rigor seria  como doutrinador e teórico mesmo  em artigos  de rodapé. Mas,   militar   na crítica  de rodapé  analisando  livros  aparecidos  do momento  não estaria  na sua  possibilidade e provavelmente pelas razões  pelas quais    entendida o que  seria a práxis crítica nos moldes  de  mudanças,   de renovação,   de  transformação  nos hábitos  de nossos  estudos  literários.

Coutinho  tinha  uma concepção de crítica literária que abrangia não só  os críticos militantes, mas  a cátedra,  a interação  intelectual  entre   acadêmicos,  o ambiente  universitário,  o intercâmbio  entre universidades no país e no  exterior,  terreno  ideal  para a fecundação  de ideias e  projetos,  o livro,  a participação em congressos desde que estes  fossem   realizados  com vistas ao  aprimoramento  dos estudos  de literatura.

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