A resenha, o jornalismo crítico e a crítica: algumas considerações sobre um livro de Afrânio Coutinho
Por Cunha e Silva Filho Em: 09/02/2014, às 17H53
[Cunha e Silva Filho]
Na leitura que ando fazendo da obra de Afrânio Coutinho (1911-2000), Da crítica e da nova crítica (Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A, 1957, 205 p.), considero de particular relevância ao esclarecimento dos pontos de vista daquele crítico e historiador o debate da crítica de jornal, ou crítica de rodapé,que, no país, conheceu seu tempo áureo, dos anos de 1940 a 1950, aproximadamente, a partir das inovações que se operaram nas práticas da chamada “nova crítica,” a qual teve em Coutinho seu principal divulgador, doutrinário e teórico no país.
Não estou sozinho em compartilhar da oportunidade dos temas ventilados na obra. Fausto Cunha (1923-2004), crítico literário que, nos anos 1950, muito jovem, já começava a se destacar na geração de novos críticos brasileiros, afirmava ser Da crítica e da nova crítica “um livro decisivo na história da crítica brasileira (( CUNHA, Fausto. A luta literária. 1.ed. Rio de Janeiro: Editora Lidador, capítulo “A Nova Crítica, p. 49-60).
No que concerne ao tema central deste artigo, Coutinho, no mencionado livro, discute amplamente dois conceitos da prática crítica, o da crítica militante, que remonta aos franceses, sendo Sainte-Beuve (1804-1869) seu mais notável cultor com os seus famosos artigos semanais conhecidos como Lundis, e da crítica escrita especialmente para o livro, que principiava a dar seus primeiros passos e que encontrou, mais tarde, o lugar mais propício para seu desenvolvimento - a universidade - quando no país surgiram paulatinamente os cursos de filosofia e letras
Convém, antes de tudo, aclarar uma questão que se tornou controvertida na biografia intelectual do crítico Coutinho: é voz corrente que ele foi um aguerrido inimigo da crítica de rodapé, período em que dominava o pensamento critico conhecido pelo nome de impressionismo. Quem contudo, se der ao trabalho de ler A crítica e da nova crítica, verificará que os fatos não foram exatamente assim. Coutinho reprovava o rodapé, sim, daqueles críticos sem nenhum preparo para o ofício de julgar livros. Entretanto, não se dirigiam suas diatribes contra figuras de reconhecida capacidade e erudição para o exercício da crítica militante. Ele não citava nomes, somente generalizava suas ponderações.
Coutinho deplorava a circunstância de que escrever artigos sérios e profundos em exíguo período de tempo não poderia se definir como crítica literária, disciplina que, segundo ele, demandava leitura e releitura, paciência e todo um aparato técnico que não poderia se encaixar numa simples seção de uma coluna semanal.
Comentando historicamente, alguns acidentes por que passou a crítica militante, “jornalística, de folhetins periódicos” ( Da crítica e da nova crítica, p.53) de rodapé, ou review, Coutinho lembra que, tendo-se popularizado a militância crítica da França para outros países, que passou a valer como “padrão da crítica,” com o tempo, segundo ele, surgiram “divisões” incontornáveis no “sistema” sobretudo “entre a crítica e a história literária” ( idem, p.54) em que a primeira cuidaria da produção do presente, praticada nos jornais, e a segunda, se ocuparia da produção do passado, com a denominação de erudita, historiográfica, ensaística. Quando do desenvolvimento dos estudos literarios brasileiros, estas duas divisões, a meu ver, corresponderiam, respectivamente, às atuais resenhas e monografias, dissertações e teses universitárias, guardadas as proporções e as grandes modificações sofridas no tempo
São muito tênues as diferenças entre resenha e jornalismo literário, sendo este último bem próprio de críticos que têm sua coluna semanal num jornal atualmente. Seria o exemplo de José Castelo
A meu ver, Coutinho, com muita clareza e alicerçado em autores como Frank Swinnerton, reputado por ele como o autor na época (1939) que de forma mais profunda analisou “as relações entre a crítica e o ‘review’, seguido de outros como J.D.Adams, J. T. Shipley, J.Drewry, G.West e Wayne Gard, faz a distinção entre resenha e crítica. Nestes termos: “ A crítica considera que o leitor conhece a obra e o autor discutido, ao passo que o ‘reviewer’ não pode levar em conta essa possibilidade, pois o leitor de jornais é presumidamente menos informado do que o de trabalhos de crítica” E acrescenta: “Além do mais, o ‘reviewer’ lida com obras do momento, ao passo que o interesse do crítico é menos imediato.”(idem,. p.73-76) Daí aduz Coutinho que o ‘reviewer’ cumpre uma função no jornalismo informativo sobre autores e temas literários, de forma subjetiva e conclui que a grande voga do impressionismo crítico residiu tanto tempo justamente por sua natureza midiática, de divulgação, de popularidade, de alcançar o grande público, enquanto a crítica é, em essência, do domínio técnico, “objetivo”, “impessoal” (ibidem, p. 76).
Hoje em dia, com o pouco espaço dado à literatura pela imprensa, o trabalho do crítico se circunscreve, em primeiro lugar, à cátedra universitária, espaço privilegiado de sua atuação, ou de forma independente, em livros, revistas, jornais, sites e blogs, quando ele não pertence aos quadros da universidade. Este último tipo de crítico está rareando. Quanto ao jornalismo crítico, nesta função podem caber o crítico universitário, o crítico independente e o jornalista formado em letras ou não.
No jornalismo crítico de agora percebe-se que os seus colaboradores em geral pertencem ao jornal ou são convidados pelos editores de seções literárias para colaboração esporádica. Tais colaboradores procedem de várias áreas do conhecimento humano. São, em geral, professores universitários. Não devemos olvidar que no jornalismo crítico se inclui também o crítico universitário.Um outro fato, se a crítica de rodapé teve o seu ocaso, em lugar dela se preservou o review, ou a resenha, ademais não faltando esporadicamente o ensaio de alta relevância e complexidade nos múltilos saberes, sendo exemplos típicos atuais o que se vê e se lê no Caderno de cultura Ilustríssima, da Folha de São Paulo, somente para citar o exemplo do que este articulista lê com assiduidade.
Em toda a história literária brasileira, quando principalmente se consolidou o Romantismo até hoje podemos rastrear a colaboração de autores brasileiros na imprensa discutindo literatura, julgando autores, travando polêmicas, publicando livros em folhetins de jornais. O que tem acontecido, ao longo dos anos, são fases mais brilhantes e mais produtivas de publicações na imprensa.
O próprio Afrânio Coutinho deve parte considerável de sua obra crítica aos jornais, no que resulta um paradoxo o fato de por vezes haver direcionado sua crítica ao rodapé, ressalvando as afirmações que fiz anteriormente neste artigo. Livros como Correntes cruzada, Da crítica e da nova crítica e No hospital das letras são frutos de sua participação ativíssima na imprensa do Rio de Janeiro e possivelmente com republicação em outros periódicos brasileiros da época.
No prefácio, a Correntes cruzadas, de resto, texto fundamental para se ter uma visão mais ampla dos temas mais abordados pelo autor até com certa redundância, Coutinho reconhece que não teria como fazer crítica literária em rodapé, ou seja, sua atividade crítica a rigor seria como doutrinador e teórico mesmo em artigos de rodapé. Mas, militar na crítica de rodapé analisando livros aparecidos do momento não estaria na sua possibilidade e provavelmente pelas razões pelas quais entendida o que seria a práxis crítica nos moldes de mudanças, de renovação, de transformação nos hábitos de nossos estudos literários.
Coutinho tinha uma concepção de crítica literária que abrangia não só os críticos militantes, mas a cátedra, a interação intelectual entre acadêmicos, o ambiente universitário, o intercâmbio entre universidades no país e no exterior, terreno ideal para a fecundação de ideias e projetos, o livro, a participação em congressos desde que estes fossem realizados com vistas ao aprimoramento dos estudos de literatura.
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