A representação da violência em Teresina
Em: 18/09/2015, às 20H55
Por Carlos Evandro Martins Eulálio
O livro Sabor de Vingança, de autoria do escritor Milton Borges, reúne 28 contos, narrados em 3ª pessoa, com exceção do texto “A velhinha travessa”, que por sinal se aproxima do gênero crônica, em virtude da ênfase na visão pessoal do fato narrado, da ausência de trama, e da discreta descrição da personagem.
Esse aspecto híbrido denominado por Marcuschi de intertextualidade intergêneros é recorrente na arte literária contemporânea, fato que é assimilado com habilidade por Milton Borges, colocando-o entre os escritores que estão em sintonia com as transformações do modo de produção do conto moderno.
Dos gêneros literários, o conto é o que apresenta maior tendência à diversificação estilística e temática.
No Brasil essa modalidade de expressão começou a ser cultivada na primeira metade do século 19, mais precisamente no Romantismo. Nessa fase é ainda uma forma literária indefinida; misto de relato oral e de acontecimentos do cotidiano. Com o realismo, transforma-se definitivamente numa modalidade de escritura artística, tendo Machado de Assis como principal artífice no gênero.
Na era moderna, a despeito de algumas transformações de ordem estrutural, o conto vem ocupando cada vez mais espaço nas estantes dos leitores brasileiros, principalmente a partir de 1960 aos nossos dias.
Edgar Allan Poe, um dos precursores na teoria do conto, em sua Filosofia da Composição, afirma que a unidade de efeito e a economia de meios são os seus aspectos fundamentais. Isso porque, toda obra que não pode ser lida de uma só vez fica prejudicada por intervenções exteriores que destroem sua verdadeira unidade. Daí o interesse dos leitores pelo conto. Enquanto narrativa breve, ele condensa e reflete as mais variadas situações de nossa vida real ou imaginária.
Júlio Cortázar assevera que o conto é uma “síntese implacável de uma certa condição humana” ou mesmo um “símbolo candente de uma ordem social ou histórica”. A propósito, Antônio Cândido atribui o surgimento de uma obra não como fenômeno pontual, ou expressão individual, mas como um evento de natureza sociológica, pois é relacionada ao contexto social em que foi formada. Assim são os contos de “Sabor de vingança”.
Milton Borges não os distancia do contexto social em que os eventos acontecem, focados no tema violência, ressaltando como esta se manifesta atualmente em Teresina. Por essa razão, o espaço adquire destaque na obra.
Embasado no noticiário policial, Milton Borges, em seus contos, enfatiza a violência que se multiplica em Teresina com o passar dos dias, agravada pela ação de gangues ou facções criminosas, na disputa do narcotráfico.
Por essa razão, “Sabor de vingança”, conto que dá título à obra, contém os principais traços semânticos dos demais relatos policiais, os quais se mantêm na obra como unidades autônomas.
Isso configura a inexistência de um único fio discursivo na tessitura das narrativas que compõem a obra. A violência urbana, como dominante na construção do texto se expande através de subtemas. Então, constatam-se a violência contra a mulher, no conto “Ameaças reincidentes”, em que Eva é vítima da agressão do marido incorformado com a separação; o acerto de contas entre Gabriel e Válber no conto “Chuva de pedras”, em litígio pelo negócio mal sucedido na comercialização de drogas; o crime passional em “Faca no peito”, perpetrado não pela mulher legítima da vítima, mas pela amante desta.
Esses são alguns exemplos de relatos que comparecem na obra, consolidando a unidade temática pela diversidade dos eventos narrados. Nessa linha se inserem os já consagrados Dalton Trevisan e Rubem Fonseca com seus contos sobre a cidade de Curitiba e Rio de Janeiro, respectivamente. Conforme Sueli Leite, da Universidade Federal de Londrina-PR, “esses autores chamaram a atenção por escreverem uma literatura denominada brutalista, termo que em si aponta para a torpeza e a degradação que norteiam os espaços de exclusão.”
Cabe aqui a observação de Ribamar Garcia, ao afirmar que Sabor de Vingança “não é um livro violento, mas sobre a violência. Essa é a temática: a violência que invadiu Teresina e que está colocando a população atônita. “
Na obra “A ficção brasileira hoje: os caminhos da cidade”, a pesquisadora Tânia Pellegrini, citada por Suely Leite, “destaca como forma de representação da violência na literatura contemporânea aquela que liga à representação do urbano, em que violência e urbano se constroem no mito da cidade cindida, irremediavelmente dividida entre centro e periferia, entre favela e asfalto, entre cidade e subúrbio. Na Literatura brasileira, a ideia de que a periferia é o centro da criminalidade está presente em textos de Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Lima Barreto, João do Rio, Rubem Fonseca, entre outros.”
Em Sabor de Vingança, o mapeamento de ruas e bairros de Teresina nos permite acompanhar o percurso das personagens no seu deslocamento físico-social, sendo esses bairros símbolos de categoria social e não simples cenários para os acontecimentos.
Daí que o narrador põe em foco o Promorar, Porto Alegre, Santa Maria da Codipi, Vila Irmã Dulce, Memorare, Risoleta Neves, Dirceu, Água Mineral, Real Copagre, Bela Vista, Parque Piauí e outros como espaços onde ocorrem em maior índice as cenas de violência. A associação entre pobreza, periferia e criminalidade é tônica predominante na obra.
Dentro desse cenário, divisamos a cidade, em clima de violência e tensão, a grande personagem da obra. Na estrutura do texto, o tempo trabalha com maior intensidade na trama, refletindo o encaminhamento dos eventos constituintes da fábula, que no entendimento de Boris Tomacheviski é o conjunto de acontecimentos ligados entre si que nos são comunicados no decorrer da narrativa, através da trama, construção inteiramente artística.
Assim o espaço é construído com clareza, de maneira quase fotográfica e, principalmente, como cenário da ação. No conto “O aplauso à Polícia”, a descrição da rua Lucídio Freitas, no bairro Mafuá predomina sobre os demais aspectos. A superposição do espaço sobre as personagens se dá mediante o propósito do narrador em não nominá-las, a fim de que a rua por si só reflita o estado anímico do momento narrativo. A trama é simples: os moradores se sentem acuados pela violência, em meio à especulação imobiliária que aos poucos substitui as residências por pontos comerciais. Ali, o funcionamento de uma boca de fumo, mantida por um casal de traficantes inquieta os vizinhos e chama a atenção da polícia que o prende sob aplausos dos moradores do bairro.
Alfredo Bosi, afirma que o contista é um pescador de momentos singulares, cheios de significação. Essa singularidade em Milton Borges assoma no conto de abertura do livro, “Segredos de confissão” em que o humor é trabalhado com destreza. Ei-lo em síntese:
Após exame de consciência, à luz dos dez mandamentos, Ivone viu-se abatida por forte sentimento de culpa. Para eximir-se de suas faltas, procura em confissão o padre da Igreja de São José Operário que lhe absolve os pecados. Ao retirar-se do confessionário, Ivone leva consigo o moderníssimo iphone do padre que indignado exclama: - E agora que já perdoei os pecados da infeliz?
Finalmente ressalto um elemento que no conto de uma maneira geral merece atenção numa análise: a linguagem – sobretudo a que se constrói pelo diálogo. Na obra Sabor de Vingança, o conto “Pavor no coletivo” é construído em base exclusivamente do diálogo. Nesse texto o diálogo direto funciona como núcleo expressiva, pois permite uma comunicação imediata entre leitor e narrativa fazendo com que a leitura flua com rapidez e leveza, numa constatação de que o autor mostra perfeito domínio na técnica do manejo linguístico no gênero.
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Na foto, o crítico literário e professor Carlos Evandro Martins Eulálio durante apresentação do livro na Livraria Entrelivros, em Teresina-PI.