Se caíssemos nas armadilhas de resenhas feitas por vezes com certo açodamento, ficaríamos à mercê de juízos que não nos parecem corresponder à verdade dos julgamentos fundamentados, sobretudo se estes têm por objetivo valores estéticos.


                    Tal ocorreu com as reflexões feitas pelo jornalista Marcelo Coelho no caderno Mais da Folha de São Paulo (4/11/01) num artigo sob o título “Buracos a rua e uísque falsificado”, a respeito de dois livros de João Antônio(1937-19960, recentemente relançados pela Editora Cosac & Naif, Ô Copacabana! e Abraçado ao meu rancor, editora que se propôs agora a reeditar toda a obra do escritor paulista, num empreendimento que a meu ver, vem prestar um merecido tributo ao ficcionista falecido e estimular, assim, a atenção de novos leitores para a sua obra, ainda não de todo conhecida do grande público e até mesmo de estudantes de Letras.


                   O articulista me deu a impressão de desconhecer a trajetória da produção ficcional de João Antônio que, ao contrário do que insinua s a resenha, sempre me pareceu manter um coerente projeto literário de procurar ser fiel ao se papel de escritor e de cidadão atento às mazelas do país, através de sua proclamada intenção de “radiografar” a realidade brasileira. Foi o que ele fez e se não fez mais completamente foi porque lhe faltaram tempo e vida, já que falecera prematura e repentinamente em 1996.


                Não porque se surpreender que o escritor use da ironia ou do sarcasmo quando estigmatiza determinados aspectos da vida brasileira, de um bairro, de uma cidade, ou de um segmento social. Não conheço intelectual que tão bem se ajustou à sua própria condição de criador, com firmeza de propósito e coerência. E não vejo como resolver o impasse de ser escritor, jornalista, pesquisador e cronista, como ele o foi, a ao mesmo tempo não pertencer mais às suas origens populares.


                O grande drama ou mesmo frustração de um escritor que alcançou um patamar social ou intelectual mais alto, como é o caso de João Antônio, é não poder em geral ser lido por aqueles indivíduos por ele retratados em sua literatura, conforme se deu, como disse alguém, com Lima Barreto (1881-19220, Graciliano Ramos (1892-19530) e o próprio João Antônio. Certamente personagens oriundos do universo da marginália, formados, em grande parte, de malandros, prostitutas, homossexuais, mendigos e policiais corruptos, não foram leitores do contista paulista.


               O compromisso real do ficcionista, desde que consiga ser editado, é com os temas de sua escolha e com a sua específica experiência de vida.


Não é verdade, segundo pretende sugerir o articulista da Folha, que em João Antônio haja “conservadorismo malandro” ou “progressismo moralista”. Se existe nostalgia no seu texto ficcional ou não, o que há de errado nisso? Onde fica o topos do ubi sunt, tão caro à literatura brasileira de todos os tempos e quadrantes? Então, como diria Carlos Drummond de Andrade( 1902-1987), é “proibido passear sentimentos?” O que fazer com as nossas memórias, o nosso espólio no tempo? Que eu saiba, o sentimento da nostalgia, o saudosismo, são partes indissociáveis de nossa existência. Que o digam Proust, Manuel Bandeira(1886-19680 Da Costa e Silva (1885-1950), Drummond, entre outros. 


            A ambigüidade e a redundância n o texto joãoantoniano não foram corretamente localizadas pelo comentarista. Há, sim, ambigüidade e redundância na sua obra, mas com outro sentido, oou seja, já no plano interno da sua estrutura narrativo-compositiva.


           Sabemos que Ô Copacabana! se classifica mais como um livro de crônicas, e há um fato a assinalar, tanto na crônica como na ficção o texto de João Antônio sofre uma perene e mútua contribuição de elementos intertextuais. Seu texto ficcional é freqüentemente contagiado pela matéria da vida ou vice´versa, conforme já foi argutamente anotado por João Alexandre Barbosa no prefácio a uma das últimas obras publicadas do contista, Dama do Encantado (São Paulo: Nova Alexandria, 1996). Talvez por isso mesmo Jose Paulo Paes prefira chamar de “texto” ao conto “Abraçado ao meu rancor”, que dá título à segunda obra relançada, numa magnífica análise que fez desse conto incluído no seu livro A aventura literária( São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 107-115).


           Ainda no tocante ao segundo livro relançado, o resenhista perdeu a oportunidade de se debruçar, com a profundidade exigida pelo bom nível alcançado naquele conto, sobre aspectos realmente significativos de linguagem e tema abordados no conjunto de contos que formam o livro, aspectos de resto já exemplarmente analisados no prefácio de Alfredo Bosi (“Um boêmio entre duas cidades”)para a Editora Guanabara, 1986, por sinal lembrado por José Paulo Paes no final do seu ensaio acima citado.


         Uma obra como Abraçado ao meu rancor, da qual constam, entre outros, textos do nível inventivo de “Amsterdam Ai” e o primoroso conto “Tatiana Pequena”, o último incluído na edição da Guanabara, já se pode considerar um real avanço na carreira do contista. E avanço, direi, não só na diversificação dos temas enfocados, como principalmente na dinâmica dos processos de linguagem. Digo avanço também temático quando o contista procura ultrapassar o conhecido espaço da malandragem simplesmente, para incursionar por reflexões sobre comportamentos existenciais da classe média, fugindo, dessa forma, de ser tachado como repetitivo, segundo já advertira com razão Massaud Moisés (História da literatura brasileira. 3 ed. vol. 5, Modernismo (1922 – Atualidade, São Paulo: Cultrix, 1966, p. 483-484).


        Na linguagem de alguns textos de Abraçado ao meu rancor é significativo assinalar que, formal e esteticamente estamos sem dúvida diante de novas formas de dicção e de expressão estilística. Nãoç e gratuita, segundo se pode ver no conto “Tatiana Peque na”, a apóstrofe de cunho metalingüístico – belíssima! – que invoca a intervenção de Deus a fim de poder dispor de um estilo que tivesse “ a liberdade do vôo das gaivotas” (p.2160, lembrando, mutatis mutandis, a invocação camoniana do início de Os lusíadas, na qual o bardo luso pode a interferência das ninfas para que lhe concedam um estilo á altura da grandeza dos feitos portugueses.


         “Amsterdam, Ai” é um texto tão original e desconcertante que vale como uma prova de que o ficcionista era capaz de ser mais do que o nosso mais perfeito construtor do universo e da “metalinguagem do malandro” (Massaud Moisés, op., cit., p. 484). Desde que se dispusesse a trabalhar as suas potencialidades de linguagem, era também capaz de tentar novas experiências rítmicas, de construção,  de manipulações significantes e sígnicas, atingindo em muitas passsagens em nível verdadeiramente poético, não só na expressão, mas ainda no uso do espaço da página para fins de comunicação literária à concretismo, num processo de construção ficcional que, às vezes, podemos encontrar na ficção contemporânea, sobretudo entre contistas nos quais se pode constatar uma difusa fronteira entre os gêneros outrora canonicamente demarcados.

      O grande monólogo de “Amsterdam, Ai”, na sua forma compacta, semelha a mosaicos formamdo um único e longo discurso do narrador, sem indicação precisa das margens de parágrafos (com ausência do sinal de ponto), isto é, a soma dos parágrafos se torna um único grande parágrafo a partir da terceira página do texto, mais precisamente, a partir do segundo brevíssimo parágrafo. Esse aparente parágrafo único abrange cerca de sete páginas em texto corrido.


     Não  vejo, como procedentes e analiticamente justas as expressões usadas pelo colunista, quando pejorativamente se refere à articulação da linguagem de João Antônio em Ô Copacabana como produto de um estilo entre o “intelectualês” e o “pitoresco”. Nem me parece tampouco isenta de preconceito por parte do articulista da Folha a circunstância de que ele, revelando insuficiente intimidade com a obra do autor, dê a impressão generalizada de má vontade ideológica para com a visão crítica de um escritor que, corajosamente, uma vez se declarara de esquerda, já que ganham força reiterada expressões utilizadas pelo colunista semanticamente equivalentes entre si como “intelectual oposicionista”, “pensamento de esquerda” (Inédito)


Nota do autor: Sempre que, nesta coluna, falar em “texto inédito”, quero me referir a escritos antigos e não publicados, por uma razão ou outra, na época em que eu desejava.