(Miguel Carqueija)

Os tres primeiros capítulos da novela cuja introdução já vimos.

 

CAPÍTULO 1



A PASSAGEIRA DESCALÇA





Carlos Aranha estava concentrado nos quadrinhos do Nervóide (o super-herói do momento) quando escutou uma voz jovem e musical:
— Com licença.
Carlos voltou o olhar para a direita. Deu com os olhos numa garota de “blue-jean” e óculos que certamente seria a ocupante da poltrona 18. Ela sorriu para ele, e num gesto rápido, colocou sua mochila na bagageira.
— Oi. Meu nome é Beth. E o seu?
Carlos não tinha o hábito de revelar o seu nome de saída a desconhecidos, só por serem vizinhos de poltrona numa espaçonave; pego de surpresa, porém, não soube escapar.
Ela sentou-se e voltou a sorrir:
— Bem, Carlos, tenha uma boa viagem.
— Obrigado — disse ele, aborrecido, e voltou a atenção para a HQ.
Percebendo a disposição de seu companheiro de viagem, Beth retraiu-se, fechou os olhos e relaxou, aguardando a partida. Passaram-se alguns minutos, cada vez mais incômodos para Carlos, que sentia, senão remorso, pelo menos uma ponta de mal-estar por ter sido seco para com a garota. Ela era bonita, elegante e simpática, aparentemente muito fina. Carlos porém detestava invasões de privacidade.
Uma comissária de bordo passou dando as últimas recomendações e as poltronas inclinaram-se ligeiramente. Não muito, dada a baixa aceleração necessária para a partida de uma órbita geoestacionária.
Passageiros para Sírius... estamos iniciando a partida final. Dentro de seis horas e 23 minutos efetuaremos a passagem para o hiperespaço. Dentro de quinze minutos cessará a aceleração. Aguardem o sinal para circular pela astronave.
Carlos continuou mergulhado naquelas bandas desenhadas, como se dizia em Portugal. Felizmente, pensou, a revista era grossa. Uma novela gráfica.
Beth abriu os olhos e fixou-se nos bicos de seus sapatos despretensiosos – com a inclinação da poltrona, essa visão era fácil. Pensou em como seria bom se tirasse os sapatos. Conseguiria relaxar melhor. Resolveu retirá-los, e colocá-los no porta-luvas do braço de sua poltrona; após isso, cerrou novamente os olhos, buscando dormir.
O gesto da moça não passou despercebido a Carlos que, com o canto do olho, reparou nos pés graciosos, cujas unhas, como as das mãos, não ostentavam pintura. Então, como se de súbito ela se lembrasse, Beth livrou-se também dos óculos,
colocando-os num estojo que trazia no bolso do casaco Jean; o estojo por sua vez foi fazer companhia aos sapatos, no porta-luvas.
O rapaz já encontrava dificuldade para se concentrar na leitura, pois a graciosidade e a sutileza da garota começavam a perturbá-lo.
A timidez porém falou mais forte e ele continuou por trás de uma barreira, representada pela revista.
Em poucos minutos um quase imperceptível ressonar indicou a Carlos que já não poderia falar com ela sem primeiro acordá-la. Dando de ombros, o jornalista voltou mais uma vez à HQ. O Nervóide estava tendo dificuldade em controlar a rebelião dos Neutrinos Azuis, que estavam sendo auxiliados por Crow, o Diabólico. Numa dessas cenas, tipicamente sombria, o Nervóide se equilibrava precariamente numa gárgula a 300 metros do solo, enquanto os Neutrinos agitavam seus repelentes tentáculos na sua direção. O Nervóide, é claro, com sua esperteza e seus poderes especiais, daria um jeito de escapar com vida.
No intervalo entre cada página – eram umas 150, e ele não chegara sequer à terça parte - Carlos procurava captar mais algum fragmento de detalhe da pequena. Que idade teria? Talvez vinte anos. Cabelos pretos e curtos, quase como um rapaz. Havia um cordãozinho no pescoço, que sumia além do ligeiro decote da blusa. A roupa era nova e elegante, a jaqueta e a calça de azul forte, sem desbotamento. Havia um sinalzinho na face esquerda, a uns dois dedos da narina.
Não havia muito mais o que descobrir e Carlos acabou se concentrando de vez na história em quadrinhos.





CAPÍTULO 2


O ATAQUE



— Dr. Carlos Aranha? Já o conheço. Falamos num seminário de Odontologia na Lua, lembra-se?
Carlos fitou o homem magro e de rosto meio ameixento, segurando um copo de bebida. Era moreno e de idade indefinível.
— Claro que me lembro — mentiu Carlos, procurando aflitivamente atinar com o nome do personagem. Este percebeu o embaraço:
— Atílio Corman. Protético. Lido com as caveiras, mesmo.
— Oi — os dois homens apertaram-se as mãos
— Reparei que você está em boa companhia — prosseguiu Atílio — É bom ir em frente.
— O que você quer dizer com isso? — a surpresa de Carlos era sincera.
— Ora, do meu ponto de observação notei o seu interesse pela sua vizinha.
— Você deve estar brincando.
— Eu, brincando? Posso beber, mas nunca brinco. Você não disfarça tão bem assim.
Carlos suspirou.
— Nem sei quem ela é.
— Eu sei. Beth Trindade, filha do Senador Alceu Trindade... ela é da alta.
— Não tive essa impressão.
— É claro. Ela não ostenta. Aliás, parece que não se dá bem com o pai.
— Ora essa! E por que não?
— Talvez ele não goste que ela tire os sapatos em público.
— O que você sabe sobre ela?
— Ela é uma vendedora, mercadora. Muito inteligente, dizem. E muito discreta nas suas ações.
— Mas não é tímida.
— Ela gosta de fazer amizades. É solteiríssima como você, diga-se de passagem.
— Bem. Vamos comer alguma coisa?
— Para acompanhar a bebida? Está bem.



Carlos aguardava o sinal da passagem para o hiperespaço. Após a refeição em companhia de Atílio — por quem sentia simpatia — havia perambulado pela nave e parado um pouco no observatório. Ali fora sua vez de reconhecer alguém — o Professor Albatroz Schmidt, o “barbaça”, como o chamavam na universidade. Carlos deparara com o homem numa estranha atitude, diante do painel telescópico.
Parecia magnetizado, mesmerizado por alguma força estranha. A própria boca estava meio aberta, e seus olhos denotavam uma espécie de transe.
— Professor Albatroz! O senhor por aqui?
Espantado, Albatroz voltou-se e reconheceu o jovem repórter, a quem cumprimentou efusivamente.
— E por que essa cara de espanto diante do céu estrelado? — quis saber Carlos.
— Eu fiz essa cara? Ora ora... sentemo-nos...
Procurou uma poltrona desocupada e, certificando-se que podia falar sem ser ouvido por terceiros, começou penosamente.
— Bem... vejamos... eu estive olhando para o céu pelo telescópio, e havia qualquer coisa errada.
— Ué! O que poderia ser?
— Quisera eu sabê-lo! Mas havia uma mancha negra escura... um ponto negro... onde não deveria estar.
— Como assim?
— É exatamente o que eu digo. O Cosmos é o que é, o que nome diz... ordem e harmonia. Se faltar isso...
— Ora, me dê as coordenadas. Vamos ver o que provocou...
— Meu Deus! Veja! VEJA!
Carlos olhou estupidificado para o painel telescópico. Uma incrível mancha negra, meio quadrada, formando quatro pontas encurvadas, aproximava-se monstruosamente da nave, como um efeito especial da Industrial Light & Magic. Dava até a impressão de uma bocarra negra que vinha à toda para engolir o navio do espaço. Então “aquilo” colou com a astronave, escurecendo o painel, ao mesmo tempo em que o veículo balançava incomodamente. E também absurdamente, dada a sua estabilidade.
As poucas pessoas que estavam no observatório fugiram em pânico. Carlos porém permaneceu, olhando aquele negrume cósmico, ao lado do cientista, até que alguma coisa começou a se materializar diante deles.
Surgiu então, num desenho de luz e depois plenamente concreto, um ser monstruoso, extremamente feio e cheio de farpas aguçadas, garras, dentes e chifres.
— A nave é nossa! — gritou ele em inglês, com um sotaque horrível. — Não tentem resistir!
Carlos e Barbaça saíram para o corredor, finalmente esgotada a coragem. Correram, correram, sem saber bem para onde.  Então Carlos lembrou-se da garota, a Beth. Onde estaria ela?
O pânico grassava a bordo da astronave. Oficiais acorriam de todos os lados. Pessoas se amontoavam no restaurante, procuravam se esconder nos bagageiros, e várias criaturas monstruosas já eram vistas por toda parte. Carlos correu até as poltronas e não viu Beth; buscou então em sua pasta uma pistola, destravou-a e voltou a correr para o refeitório. Pôde então testemunhar uma cena espantosa: as armas de calor dos oficiais eram inócuas contra as criaturas, que as refratavam sem sofrer dano algum. O local era já teatro de uma carnificina. Por um instante Carlos parou, estupefato, e então apontou a pistola na direção de um dos monstros, que
esquartejava uma comissária de bordo. Seu braço porém foi detido por cinco dedos que se fecharam em seu pulso e o puxaram para trás. Ele se voltou e deparou com Beth.
— É inútil — disse a garota, com gélida calma. — Venha comigo, depressa!
Ele obedeceu-a mecanicamente, sem ter opção melhor. Correram até o fundo de um corredor de circulação da criadagem, e viram-se barrados por uma porta de aço. Dois monstros vieram ao seu encalço:
— Estamos perdidos! — exclamou Carlos, desesperado.
— Ainda não!
Beth puxou o cordãozinho do pescoço, revelando em sua argola uma curiosa estrela de cinco pontas, de prata ou platina, como se vê no desenho:

 



Embasbacado, Carlos viu Beth ostentar a estrela, segurando-a firme na mão direita: uma luz prateada, bem forte, emanou subitamente da estrela e envolveu a garota e tudo o que estava por perto. Como que transfigurada, Beth dirigiu-se às criaturas:
— Eu sei quem vocês são e o que querem. Mas ordeno que saiam dessa nave! Eu sou a Portadora da Estrela! Deixem de derramar sangue inocente e voltem para o seu abismo de caos!
O que então aconteceu foi talvez ainda mais bizarro e fantástico. Atingidos em cheio pela luz de prata, as criaturas monstruosas recuaram e deram a impressão de implodir. Logo, os monstros do espaço desapareceram num turbilhão de luz.
Beth escondeu a Estrela, segurou o pulso de Carlos e advertiu-o:
— Não fale disso a ninguém, ou você vai se haver comigo. Entendeu bem?
— Podemos conversar a sós... mais tarde?
— Podemos. Mas agora vamos disfarçar e fazer de conta que nada vimos nem ouvimos.



CAPÍTULO 3



A REVELAÇÃO




— O que eu vou lhe contar é incrível. Mas como você já viu o incrível, eu vou lhe revelar o segredo. Gostei de você, do seu jeito, e confio em você.
— Obrigado.
Ela sorriu:
— Mas não há nada de mais. Está visto que você merece confiança.
— Bem, mas e aí?
— Primeiramente, Carlos, me diga: você ouviu falar do Necronomicon?
— O que?
— É um livro. Um livro tenebroso.
— Não, creio que nunca escutei falar.
— Tem vários séculos de sua existência... várias versões... mas a principal é a de Abdul Al-Azred, que viveu há mais de um milênio. Era um árabe. Foi dado como louco, mas certamente não era louco. Era talvez um gênio maligno.
— Mas o que tem esse Necro... esse Necro o que?
— Necronomicon.
— Sim, do que é que ele trata?
— De tudo o que você possa imaginar de horrível. Existe um culto secreto em torno desse livro, que trata de criaturas inimagináveis. São seres que vieram de um universo caótico, exterior ao nosso, e que pretendem nos impor a sua cosmovisão caótica. Seres que o mundo esqueceu, mas que querem dominar o nosso universo cósmico, isto é, ordenado. Você viu alguns desses seres caóticos.
— O que você fala, desculpe, é totalmente absurdo!
— Absurdo? Mas você viu!
— Duvido do que eu vi.
— Vai ser difícil discutir assim — ela sorriu. — Escute bem: estes seres cultuam a morte, o sacrifício, da forma mais horripilante que você possa imaginar. Existe o demônio Cthulhu, que durante milênios esteve encerrado no fundo do Oceano Pacifico, numa espécie de encantamento; ele e seus sicários deixaram a Terra recentemente, sem conseguir o seu intento de voltar a dominá-la. E sabe você por quê? A Terra foi resgatada por Cristo e jamais poderá pertencer aos Grandes Antigos, aos malignos. O verdadeiro chefe dos Antigos é Lúcifer, o anjo caído.
— Espere aí! Demônios? Você crê em demônios?
— Você os viu — respondeu ela, com objetividade cortante.
— Mas não eram demônios!
— Chame-os do que quiser — o resultado é o mesmo.
— Mas quem são eles? De onde eles vieram?
— Acredito que o universo caótico se identifica com o inferno. O que aliás explica o velho e misterioso caso de Charles Dexter Ward...
— Que caso é esse? Eu não conheço.
— Um dia eu lhe contarei, é uma história longa.
Uma comissária de bordo aproximou-se da mesa que ambos ocupavam.
— O comandante está convocando a todos para uma reunião de emergência na ante-sala do Comando.
— Do que se trata? — indagou Carlos.
— Evidente que é por causa do que aconteceu... vamos decidir se voltamos ou prosseguimos.
— Quantos morreram?
— Cerca de oito pessoas, sendo três tripulantes. Foi uma das coisas mais... mais...
— Mais horríveis — ajudou Beth.
— É isso. Bem, vamos lá, por favor.