A polissemia em "Meu reino por um cavalo"
Em: 26/12/2018, às 21H07
Dílson Lages Monteiro – da Academia Piauiense de Letras
A linguagem é, por natureza, polissêmica. Quando o texto se constrói pela exploração sistemática de efeitos de sentidos a partir dos eixos de similaridade (semelhança) e contiguidade (vizinhança) da língua, provocando associações inesperadas, a polissemia se revela evidente e se materializa como traço característico de um modo particular de constituição dos enunciados; embora a multiplicidade de significações não se restrinja à natureza literária do discurso. O contexto e o próprio leitor, cada qual em sua subjetividade, operam sentidos que dão diversidade significativa à enunciação.
Esse modo de constituição do discurso literário também se verbaliza na literatura infanto-juvenil. Tome-se como exemplo o caso particular do conto “Meu reino por um cavalo” (integrante da coletânea “Entre a espada e a rosa”), de Marina Colasanti, sucesso editorial por muitos anos, publicada pela Editora Salamandra em 1992, em quarta edição. Nesse conto, a polissemia se forma a partir das marcas linguísticas do próprio gênero. O conto apresenta traços composicionais da fábula tanto em sua superestrutura quanto em seus aspectos microestruturais. Isso se evidencia claramente na organização linear da narrativa, por meio da utilização de animal como um dos protagonistas e de respectiva lição moral. Todo o texto é uma crítica à vaidade exacerbada, à transitoriedade da beleza e, sobretudo, à divisão social do trabalho. Subentende-se do conto que, para o capital, o trabalhador é útil enquanto gera riqueza; seu valor é a capacidade produtiva. Esgotada essa força, esgota-se também o valor simbólico do trabalho e surge a reificação.
Todos esses sentidos se edificam para o leitor por meio de símbolos. Um cavalo que se alimenta de moedas de ouro. No seu alimento, reside a beleza (o pelo, os dentes amarelos, a postura nobre), até escassear a alimentação especial e até se encontrar uma forma de o animal tentar ser belo como outrora, usando-se como estratégia alimentar o cavalo de modo contrário ao que se havia realizado. Não mais pela boca. Dessa forma, O rei obteve todo o investimento, pessoal e em impostos, de volta, mas não a beleza do “bicho”, que acabou sendo sacrificado, tão logo o rei, narcisista extremado, recebera um novo cavalo majestoso, devorador de moedas de ouro, como o anterior. Um cavalo que cumprisse a sina de demonstrar o poder do rei. Um cavalo que, servindo como presente, lembra o que escreveu Machado de Assis no capítulo XCVII de Dom Casmurro: “A vaidade é um princípio de corrupção”.
A polissemia de “Meu reino por um cavalo” encontra ecos no intertexto com a obra “Ricardo III de Shakespeare”. Encontra ecos na célebre frase atribuída a esse rei, que teria, conforme lenda, perdido o reino por conta de um simples prego, conforme se lê em http://www.legal.adv.br/20160205/meu-reino-por-um-cavalo/ . Dessa lenda, extraem-se os prejuízos advindos da falta de paciência e da negação da lógica em favor da vaidade doentia e dos caprichos pessoais. A obra ganhou novas versões e sentidos, como os de Ana Maria Machado (https://globaleditora.com.br/catalogos/livro/?id=2388 ) ou a apropriação para novas significações como as criadas no conto de Marina Colassanti. Além disso, a polissemia se instaura no uso da alegoria que subjaz ao modo de organização do discurso, referendando o postulado de que “toda analogia acaba espontaneamente se transformando em metáfora”, segundo ensina Perelman e Olbrechts Tyteca, em Tratado da Argumentação.
É esse jogo de vozes e máscaras que, explorando, sobretudo, a diversidade de sentidos, edifica significados para temas universais já amplamente explorados, porém, necessários, a partir do ludismo, à formação de valores das crianças de todos os tempos e de todos os lugares. Desempenha a polissemia uma atribuição de destaque na literatura infantil: pôr em dúvida “verdades”, reelaborando os significados pessoais, para favorecer a descoberta da subjetividade e da própria dimensão estética, anunciada nas máscaras que fundamentam os contos de uma maneira geral, sejam para adultos, sejam para crianças.