A poética do seringal

As artes pictórica e literária do pintor e escritor Hélio Melo são objeto da admiração de Oscar D'Ambrosio.

 

 

 

 

 

 

 

 

"Hélio Holanda Melo (Vila Antimari, Boca do Acre, 20 de julho de 1926Goiânia, 22 de março de 2001) foi um artista plástico, compositor, músico e escritor brasileiro, nascido no Estado do Amazonas. Foi também seringueiro, no seringal Senapólis, catraieiro, na travessia de pessoas entre as margens do rio Acre, barbeiro e vigia de empresa estatal.

Melo cursou até a terceira série do 1ª grau e, aos oito anos de idade, já desenhava, como pintor autodidata, utilizando o nanquim e tintas naturais que preparava a partir do sumo que extraía de plantas.

Em sua homenagem, o governo do Acre criou um espaço cultural – o Theatro Hélio Melo – com capacidade de 150 lugares. (...)"

(VERBETE 'HÉLIO MELO', Wikipédia,

http://pt.wikipedia.org/wiki/H%C3%A9lio_Holanda_Melo)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

  

 



 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 
 
 
 
 
  
  
 
  
 
 
 
 
QUADROS DE HÉLIO MELO
 
(SÓ AS REPRODUÇÕES DAS PINTURAS, SEM A LEGENDA
ACIMA CONFERIDA:

 

 

 

 

   

                       Homenageando a memória de

                       Hélio Holanda Melo (1926 - 2001) e

                       agradecendo a Oscar D'Ambrosio pelo

                       valioso artigo sobre o mestre Hélio Melo

 

 

 

 

30.8.2010 - São três exercícios de admiração, neste caso - O primeiro, diante da pintura fantástico-ingênua de Hélio Melo; o segundo, proporcionado pela leitura da recontação desse mestre pintor-escritor infelizmente já falecido; e o terceiro exercício de admiração é deflagrado com a leitura do texto que Oscar D'Ambrosio lhe dedicou.  F. A. L. Bittencourt ([email protected])

 

 

Hélio Melo - A poética do seringal
 
por  Oscar D'Ambrosio (*)
 
“A simplicidade é o último grau de sofisticação”, dizia Leonardo da Vinci. Esse pensamento do inventor, arquiteto e artista plástico italiano se aplica muito bem à vida e à obra do pintor acreano Hélio Holanda Melo, que assina seus quadros como Hélio Melo. Em sua jornada, caracterizada pelo uso de tinta de extrato de folhas sobre papel cartão ou em tela, retratou, de maneira diferenciada, o universo da extração da borracha.
            Sua obra teve um significativo aumento de visibilidade em 2006 no momento em que ele ganhou, na 27ª Bienal Internacional de São Paulo, a exibição de parte significativa de seu trabalho. O evento, realizado de 07 de outubro a 17 de dezembro, com o tema "Como Viver Junto", contou com um módulo dedicado ao Acre que, além de Melo, reuniu fotos de Claudia Andujar e pesquisas visuais de três artistas estrangeiros: Alberto Baraya (Colômbia), Marjetica Potrc (Eslovênia) e Susan Turcot (Canadá), que passaram por um período de residência de um a três meses naquele Estado.
A poética de Hélio Melo apresenta um ato de narrar constante sobre o que significa ser amazônico e como esse mundo pode atingir um resultado pictórico altamente significativo não só em termos das imagens propriamente ditas, mas também por aquilo que evocam.
            Em linhas gerais, as pinturas mostram seres humanos de diminutas proporções perante um ambiente em que a floresta surge como grande personagem. Dentro dela, homem, animais e árvores ganham características zoomórficas. Estas últimas na forma de vacas, que adquirem uma dimensão sagrada. 
            Para se ter uma visão mais ampla da importância da presença da vaca no contexto da criação visual de Melo, convém lembrar que a seringueira, ao ter seu caule ferido, libera uma secreção esbranquiçada. Ela tem a função, uma vez consolidada com a oxidação, de provocar a cicatrização do tecido lesado por onde fluiu esse líquido.
Largamente utilizado pela indústria para confecção de luvas e drenos cirúrgicos de borracha, esse látex é um material que inclusive pode causar processos alérgicos, como dermatite de contato, de intensidade variável e integra o cotidiano dos seringueiros, sendo às vezes chamado de “leite de árvore”. Daí, a analogia realizada com a vaca, ou seja, aquela que fornece um elemento vital para a vida.
Um seringueiro sem árvores é como um produtor rural sem vacas. Nessa condição, ambos só têm o caminho da miséria e realizarão o mesmo percurso: a ida para as principais cidades da região, onde atuarão, infelizmente, como mão-de-obra pouco qualificada, caindo, com as exceções de praxe, no subemprego ou na marginalidade.
            As paisagens amazônicas de Melo mostram o homem em meio à floresta. Trata-se, geralmente, de um seringueiro que, além de seus instrumentos de ofício para extrair o látex, porta, quase que invariavelmente um rifle ou facão. Leva, portanto, a proteção contra um dos maiores inimigos do trabalhador na selva: a onça.
            Uma tríade bem presente nas pinturas do artista é justamente a do seringueiro armado próximo da árvore e ameaçado pela onça, felino à espera do descuido. Mas os adversários a serem temidos também são de outras naturezas. O maior deles certamente é o homem, visualizado nas motosserras que surgem em algumas telas do artista.
            As cenas de barracões abandonados talvez sejam as mais significativas em termos da progressiva expulsão que os seringueiros foram sofrendo. Com a decadência da produção de borracha a partir do látex e a crescente valorização da madeira, o corte das árvores deixou milhares de pessoas sem trabalho.
            Em seu processo de migração para as cidades, deixaram casas vazias. Estas, pelos poucos recursos, já apontavam para uma miséria social, que apenas se agravou no universo urbano. A mencionada solidão do seringueiro ganha uma dimensão social preocupante, caracterizada inclusive pelo início do desaparecimento de diversas atividades próprias daqueles que trabalham na floresta.
            Imagens de beiras de igarapés, de casas de seringueiro com o homem deixando a moradia para o trabalho entre as árvores enquanto a mulher fica presa aos afazeres domésticos e as crianças brincam em meio à terra são comuns. Imagens de pesca de peixes da região amazônica, de engenhos de moer farinha, além de instrumentos do trabalho próprios de quem está em contato direto com a realidade dos seringais.
Esse trabalho documental, no entanto, embora de inegável importância, fica até em segundo plano perante o universo visual que Hélio Melo foi paulatinamente construindo. Se suas imagens da mata, principalmente, já chamavam a atenção pelo uso de uma espécie de sffumato, recurso que dá às suas florestas uma marca registrada que se caracteriza pelo tom relativamente escuro e pela presença de uma multidão de pontos a construir aquilo que o espectador enxerga como folhagens, as cenas de teor menos naturalista ganham valor pela sensação de inusitado que geram.
            Caçadores de tartarugas empoleirados em árvores, homens com cabeça de jumento, jumentos sobre árvores, caminhando sobre troncos e árvores com cabeça de vaca, com o tronco funcionando como corpo, constituem um mundo à parte. Há ali a criação de uma lógica própria, algo próximo não só do citado surrealismo, mas também do realismo fantástico, dentro do princípio que este último cria uma atmosfera em que imagens que poderiam parecer absurdas ou ilógicas passam a ser vistas como absolutamente naturais e cotidianas.
            A combinação árvore, homem, jumento e vaca possibilita as mais variadas alternativas – e Hélio Melo se vale delas com muita habilidade. Ora a árvore é o local onde o jumento se localiza, ora integra o corpo da vaca, ora surge como parte de uma santa, ora é a fonte de trabalho e, portanto, de sustento econômico e familiar do homem (seringueiro).
            Essas imagens ganham as telas marcadas pela desproporção, notória nas relações entre as pessoas e os animais ou entre estes e as árvores. Tal marca, embora gere proximidade com o chamado estilo naïf, está profundamente relacionada, a nosso ver, a uma das características mais importantes do artista acreano: a de ver a natureza como a grande personagem do seu trabalho.
            É ela que domina os olhos de qualquer um na primeira vista que se dá às obras do criador amazônico. Talvez por isso um certo vazio se faça presente nas imagens que mostram a floresta destruída. O desmatamento que ele causa com sua motosserra é visível na presença de menos elementos nos quadros, com o surgimento de tocos de árvores no lugar da floresta fechada feita geralmente com o processo de apertar o pincel sobre a tela para deixar que a tinta salpique de maneira controlada nas áreas que se deseja pintar.
            Mas se a crítica social, apontada, como se mostrou na introdução deste trabalho, pela curadora da 27ª Bienal de São Paulo, Lisette Lagnado, como uma das principais características de Melo, seja na concepção de imagens de abandono de casas ou da ação de serradores, o artista permite outras leituras, como a que se faz possível a partir do quadro de uma imagem de uma Nossa Senhora dos Seringueiros em que ela se funde com a própria árvore, sendo seu corpo o tronco do vegetal, observando com atenção um trabalhador do seringal que corre o risco de ser presa de uma onça próxima dele.
            A imagem, de um certo teor religioso e – por que não? – místico, encontra um paralelo, em termos de atmosfera e clima da composição, na tela que mostra o choro das árvores. Nesse momento, o fantástico, o político e o espírito de denúncia se mesclam com uma propriedade pouco presente na mais recente edição da Bienal e na arte brasileira de modo geral, onde o risco do panfletário costuma ser um fator que empobrece diversos trabalhos plásticos.
Figuras caindo de um avião, árvores com tronco curvo que funcionam como alegorias do trabalho do seringueiro e dos caminhos que faz em cada tronco de árvore e dentro dos seringais, numa escala, respectivamente, micro e macrocósmica, constituem uma síntese da trajetória existencial de um artista que deu asas à imaginação sem perder o vínculo com a sua terra natal.
Tanto na imagem do seringueiro colhendo o “leite” da árvore com uma onça prestes a atacar, como nas das vacas metamorfoseadas em troncos, Melo cria um universo fantástico em que o látex se torna leite e onde a riqueza de seu imaginário vem à tona em imagens de grande intensidade.
            Seus homens de pés descalços, geralmente analfabetos e com pouquíssimas chances de ascensão social, embora honestos e de boa índole, contrastam com pessoas, do sexo masculino e feminino, retratadas em roupas que denunciam certo poder social, só que com rosto de jumento ou vaca.
             A vaca, que na dimensão do seringal, tinha um caráter sagrado; no universo urbano, passa a ser vista com uma dimensão conotativa negativa. São os poderosos, que calçam sapatos e se vestem bem, aqueles que deveriam liderar os outros e não o fazem, reproduzindo o modelo que derrubou seringais, desempregou trabalhadores e marginalizou famílias.
            Essa mensagem de Hélio Melo permanece atual. A comparação de deputados como cachorros ou a crítica ao Mobral como um movimento de alfabetização muito mais preocupado em ensinar as pessoas a assinar o nome para votar do que em formar de fato pessoas críticas e, muito menos, cidadãos dispostos a lutar pelos seus direitos.
            Hélio Melo com seus jumentos sobre árvores, santas e vacas fundidas a troncos e imagens do cotidiano da floresta amazônica é um nome a ser revisitado, merecendo um resgate maior da crítica de arte nacional. Se, para muitos, a Bienal de 2006 decepcionou pela qualidade dos trabalhos apresentados, pelo menos teve o mérito de colocar de volta ao circuito nacional um pintor universal, brasileiro, acreano e, acima de tudo, representante da floresta amazônica naquilo que ela tem de pior, a destruição a que é submetida, e de melhor, sua magia e grandiosidade ímpar. Tudo isso com a simplicidade plástica plena de sofisticação anunciada por Leonardo.
 
(*) -  Oscar D’Ambrosio, jornalista, mestre em Artes pelo Instituto de Artes da UNESP, integra a Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA-Seção Brasil)".
 
 
 
 
 
 
 
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ESTÓRIA COLHIDA NO SERINGAL E 

RECONTADA POR HÉLIO MELO, 

JÁ TRANSCRITA NESTA COLUNA:

 

"Do seringueiro para o seringueiro",

4ª Cartilha Popular,
 
Rio Branco (Acre): AGEL - Acre Gráfica Editora e Livraria, 1987
 
"MISTÉRIOS DA MATA

No Rio Purus, em certo lugar na mata, existe um mistério que deixa o caçador encabulado.
Acontece o seguinte: um galo bate as asas e canta como se estivese em um terreiro. A pessoa vai ao seu encontro e não vê nada, e o galo passa a cantar em outra direção.

Para quem conhece esse trecho da mata, passando por lá, não deve dar bola ao que ouve, pois são mistérios que não chegam ao alcance do homem descobrir.

A mesma coisa acontece em muitos dos igarapés.

Tem um tal de Batedor que altas horas da noite bate forte como se estivesse batendo em uma tábua de lavar roupa. O pior é que se alguém tentar imitá-lo, se assombra,  pois o mesmo vem bater bem próximo a seus pés, sem que a pessoa consiga vê-lo". (MELO, 1987: 34 - 36).

(http://www.dilsonlages.com.br/colunas/recontando-estorias-do-dominio-publico/dona-barata-e-os-misterios-da-mata,236,2654.html