A poesia e os riscos da crítica literária endógena
Por Cunha e Silva Filho Em: 15/07/2008, às 21H47
Cunha e Silva Filho
Muito tempo ainda antes de seu falecimento, o sociólogo e poeta piauiense Clóvis Moura (1929-2004), escrevendo-me, se queixava de que, no Piauí, muita gente não compreendia por que ele não se dedicava a escrever uma quantidade maior de poemas sobre o Piauí. Ele não entendia tal patrulhamento, argumentando que um poeta não pode nem deve se limitar apenas a uma única região. A poesia para ele não pode ser cerceada para regozijos bairristas. Poderíamos, completando sua argumentação, afirmar que a criação artística e, no caso, a poesia, é provocada com mais freqüência por motivos ou temas que são, em geral, mais vinculados a dimensões universais, quer relativos à Natureza, quer na exploração dos enigmas do Cosmos. A ela interessa primordialmente buscar compreender as angústias e perplexidades do Homem e da Natureza.
Assim como Clóvis Moura não esqueceu de compor poemas que poderíamos definir tematicamente como piauienses, da mesma forma Drummond, Bandeira, Murilo Mendes, Cassiano Ricardo, João Cabral de Melo Neto e outros tiveram seu momento poético de temática regional, circunscrito à terra natal.
A produção poética que se debruça apenas sobre as suas raízes sofre o risco da regionalização. Isso não é bom para a cultura poética local, porque a aprisiona, a impede de transpor os limites provincianos.Vejamos o exemplo de H. Dobal e perguntemos: por que ele ultrapassou o regional, o provinciano? Porque sua poética não é isoladamente localista. Por formação intelectual, sua cultura era influenciada poeticamente por grandes autores sobretudo de língua inglesa, que ademais traduzia e certamente deles assimilava técnicas e formas novas de composição avançada. Desta maneira, o seu estro se universaliza. A sua poética, no seu conjunto, aspira a transposições das barreiras do meramente local, busca, enfim, a dimensão da complexidade da alta poesia, e isto podemos identificar logo no seu primeiro livro, Tempo conseqüente (1966). O mesmo poderemos estender para a poesia de Francisco Miguel de Moura. Este não é poeta somente regional. Sua dicção, seus temas, seuss processos estéticos dialogam com referencialidades universais.
Portanto, vejo que os poetas do Piauí, caso tencionem atingir a ultrapassagem do regional, devem buscar, pela esmerada “educação” poética, a dimensão nacional ou mesmo universal. O alcance dela não se efetivará certamente pela via só da temática localista, convocando temas do homem nordestino, do piauiense do interior, da sua natureza telúrica, da sua paisagem, dos seus problemas sociais, dos seus conflitos e angústias, de sua história sofrida, por vezes heróica, e de suas carências. A ultrapassagem dar-se-á quando o “poeta municipal” e o “poeta estadual” deixarem de querer “bater o poeta federal” para lembrarmos o humorismo da situação armada pelo poema “Política literária” de Alguma poesia (1930) de Carlos Drummond de Andrade. Ou seja, o poema de Drummond, na sua ironia com fecho surrealista, procura resolver o impasse das suscetibilidades de índole provinciana no diálogo inútil e inócuo de se saber quem seria o melhor poeta considerado na sua inserção geográfica, quando, porém, o que conta, em suma, é saber se o artista alcança o objetivo maior de sua atividade estética: produzir poesia de verdade e, se possível, em elevado nível de elaboração.
Assim, como reprovamos a poesia que seja apenas regional, não vejo com bons olhos um fenômeno de cultura literária que, no Piauí - e acredito em outros estados -, se singulariza pelos limites impostos aos estudos literários no tocante a autores locais – defeito de que eu mesmo não escapei – que consiste em escolher-se, ao nível de mestrado ou doutorado, geralmente um autor ou tema regional. Não é este o caminho correto sob pena de incorrermos no mesmo erro da regionalização do poético. A prática generalizada desse defeito não é saudável de um ponto de vista acadêmico, além de ser empobrecedora. A pesquisa acadêmica, em nível avançado, não crescerá em dimensão nacional se ela se cingir tão-só aos autores de casa.
Cumpre abrir-se esse leque e sua abertura só terá êxito se se dirigir simultaneamente para a pesquisa de autores de fora, e de fora duplamente, se incluirmos os autores estrangeiros.
Os professores-orientadores de dissertações e teses devem levar essa questão a sério sob pena de provincianizar a pesquisa científica de alto nível. Uma saída para isso, por exemplo, seria desenvolver mais os estudos de literatura comparada, entendendo aqui o comparativismo de autores locais com autores nacionais, no caso de letras vernáculas, ou mesmo de outras modalidades de graduação, ou seja, as de línguas clássicas, românicas , saxônias ,germânicas ou de outra procedência lingUística. De forma alguma estou me posicionando contra os estudos de autores piauienses, os quais, por lei estadual em vigor, fazem parte do currículo das escolas públicas piauienses. Longe disso. Defendo a simultaneidade de pesquisa de autores locais e de autores nacionais.
Penso que, ao realizarmos essa mudança de estratégia nas pesquisas de literatura, estaremos nos dando a possibilidade de ultrapassarmos os marcos da província, os bairrismos, tão nocivos ao desenvolvimento de nossa abertura para o plano nacional e universal.
Por conseguinte, qualquer cerceamento à liberdade de pesquisa será contraproducente para um salto de qualidade que se pretenda em igualdade de condições intelectuais com os centros mais avançados de pesquisa universitária e, o que é melhor, sem preconceitos nem complexos de inferioridade nos campos da produção poética e da crítica literária piauiense da atualidade.