Zemaria Pinto: L. Ruas em dois poemas
Em: 07/07/2020, às 08H58
Zemaria Pinto
Dois poemas de L. Ruas
DIDÁTICA
Palavra por palavra
compõe-se a arquitetura.
O canto é limpo timbre.
É rosa a rosa. Rosa.
Desnuda geometria
espaço libertado:
no campo indevassado
na página tranquila
desenho desprovido
de inúteis arabescos
os pontos se projetam
em linhas e figuras
os semitons banidos
só restam sombra e luz.
Palavra é só palavra:
Indício fruto ou véu.
Por fim se ordenam símbolos
em lúdica harmonia
Fundindo o lucicanto
ou coisadedizer.
ORÁCULO
Tenho pena, disse-me o meu Deus,
Daquele que é amado por mim.
Tenho muita pena.
Tenho pena, disse-me o meu Deus,
Porque aquele que eu amar
Jamais
Terá um só momento de paz.
Aquele que eu mais amar
Jamais terá dias tranquilos
Nem mesmo aos domingos
Ele poderá se divertir.
Por exemplo, não terá
Aquela paz necessária que é preciso ter
Para passar um dia inteiro, de calção,
Num balneário. E se sentir feliz.
E, à noite, não frequentará boates
Nem “dancings”, nem “night clubs”,
Porque já não terá mais em si
A tranquilidade inócua dos felizes.
Não digo que ele não vá. Isso não.
Ele vai, mas, não como os outros vão.
Porque o que ele busca nessas coisas
Não é mais felicidade. Nem prazer.
O que ele quer mesmo é me encontrar em tudo isso.
Porque eu o amo de tal modo
Que ele quer me encontrar em toda parte.
Aquele que eu amo, disse-me o meu Deus,
Fica besta que nem poeta enamorado:
Me julga ver em toda parte e em todo mundo.
E não se cansa nunca de me procurar.
Por ele, nunca mais me largaria
Nunca mais estaria longe de mim.
E este desejo de estar perto de mim,
Sempre,
É que o fere e o maltrata.
Um dos que eu mais amei, foi Paulo,
Aquele judeu nascido em Tarso.
Outro que também muito amei foi Francisco.
Aquele nascido em Assis, na Úmbria – Itália.
E vocês bem sabem as tolices que fizeram.
Se a causa de tudo aquilo não fosse meu amor
Eu vos digo que não aprovaria o que fizeram:
Não aprovaria ter Francisco brigado com seu pai
Nem Paulo ter apelado, tolamente, para César.
Isso não são coisas que um homem de bem deva fazer...
Mas, enfim, o culpado fui eu que muito amei.
É por isso, disse-me o meu Deus,
Que eu não amo todos os homens igualmente.
Porque eu não sei amar de outro modo
Só sei amar assim, desmedidamente.
Não sei amar como amam os homens “comportados”:
Com elegância, com medida, com “finesse”.
Porque eles são feitos com medida e com limites.
Mas eu sou o “sem limites” e o “sem medidas”.
Por isso não amo todos igualmente:
Escolho entre muitos os que podem
Suportar as minhas exigências. Os mais fortes.
Porque depois de algum tempo ficam fracos
E consumidos pelo meu amor que os devora.
Eu sei, disse-me o meu Deus, que muitos gostariam
Que eu os amasse como amei Francisco e Paulo.
Mas eles não sabem muito bem o que desejam.
Eu sei que eles não resistiriam ao muito amor
Porque são limitados e muito fracos.
Por isso não amarei todos igualmente
Porque mesmo os mais fortes quase não resistem.
Ainda hoje acho graça dos doutores, disse Deus,
Que querem explicar as cantigas de João da Cruz
E as visões da minha Tereza D’Ávila
Como um simples caso de psicopatologia.
E, depois, disse Deus, eu mesmo quis que houvesse
Entre os homens e, mesmo, em minha Igreja,
Um certo clima de paz e de sossego
Para que as coisas fossem feitas devagar
Como convém que se faça entre os humanos.
Porque só eu sei fazer, com rapidez,
Coisas bem feitas, bem perfeitas.
Mas os homens não sabem e é preciso,
Por isso, dar-lhes tempo e alguma paz.
Mas, aqueles que eu amo perdem a paz
E querem fazer tudo logo de uma vez.
E não deixam mais ninguém ficar em paz.
Atrapalham mesmo os meus Pontífices
No governo da Igreja se eu não chego
A tempo de impedir que assim o façam.
Porque os meus Pontífices são os meus Pontífices.
E eu os quero assim. Mas, nem sempre
Meus Pontífices são meus amados também.
Tenho muita pena, disse Deus,
Daquele que é amado por mim.
Porque é muito triste ver um homem
Pequeno, limitado, circunscrito,
Querendo satisfazer o meu amor
Ilimitado.
Tenho muita pena, disse Deus,
E, muitas vezes, também choro
Quando, a sós, ele chora,
Me suplica e implora
Para que me afaste dele.
Tenho muita pena, mas, não posso
Fazer nada por ele senão mesmo
Mais amá-lo, mesmo que não queira.
A obra poética do padre Luiz Ruas reduz-se a dois títulos: Aparição do clown e Poemeu. O primeiro é dos mais belos exemplos de poesia religiosa em língua portuguesa. Eu disse religiosa? É pouco, pois quando falamos em “poesia religiosa” estamos nos referindo a um tipo de poesia atrelada a uma determinada religião. A poesia de L. Ruas é bem mais complexa. Voltada para o espírito e o questionamento das relações entre o humano e o sagrado, é mais apropriado classificá-la como poesia metafísica. Poemeu, a despeito de conservar, em alguns textos, essa transcendência, é um livro profano, voltado para as coisas do mundo, as inquietações cotidianas – seja do poeta, enquanto agente da criação estética, seja do homem, dividido entre os prazeres mundanos e as obrigações com o divino.
Os poemas escolhidos para análise pertencem ao segundo livro. “Didática” é um exemplo de metalinguagem, a partir do próprio título: o poeta discorre sobre o seu fazer poético, procedimento que tem uma tradição milenar inesgotável como representação individualizada da linguagem do poeta que se dispõe a revelar-se. Comecemos por examinar a própria sintaxe do poema. As regras de pontuação são desrespeitadas já a partir da segunda estrofe. O uso de maiúscula após o ponto é uma convenção também desconsiderada. O poeta busca transmitir a ideia de seu poder sobre a página em branco, manipulando palavras e símbolos, a tal ponto que o fecho do poema é um inusitado substantivo, um neologismo de grafia estranha: “coisadedizer”. Vamos por partes, ou melhor, por estrofes.
A primeira estrofe joga luz sobre a palavra e sua importância para a composição: a armação do poema se dá “palavra por palavra”. Mas a palavra “timbre” esconde uma cilada, muito própria da boa poesia: a possibilidade de múltiplas leituras. Podemos entender o poema com uma tonalidade límpida, o que seria uma redundância, mas podemos também inferir o poema como uma inscrição, ou um selo, que, sendo único, identifica seu autor. Para enfatizar essa ideia, Ruas relembra o conhecido verso de Gertrude Stein: Rose is a rose is a rose is a rose. Nada mais rosa que uma rosa.
Nas estrofes dois e três, o poema é comparado a um desenho seco, sem ornatos, compondo linhas e figuras a partir de pontos, a unidade mínima de um desenho. Trata-se de uma lei natural da poesia: a condensação. Ruas repete-a e usa a quarta estrofe para enfatizá-la, tirando do seu desenho o que estava em demasia, restando unicamente “sombra e luz”, como nas lições sublimes de Vermeer e Rembrandt. No poema, “palavra é só palavra”, mas não só, do contrário não seria poesia. A palavra é indício (pista, vestígio, rastro); é fruto (ela, em si mesma); é véu (antipista, antivestígio, antirrastro). No bom poema, como no bom poeta, a palavra pode ter várias funções, sendo ela mesma ou não. E não sendo, assumindo o papel de sugestão ou de negação. Cabe ao leitor descobrir.
A quinta estrofe fecha a ideia que Ruas faz do poema: “por fim se ordenam os símbolos / em lúdica harmonia”. Três palavras carregadas de significados: símbolos, lúdica, harmonia. O poema é nada mais que isso: símbolos que se ordenam numa harmonia lúdica. Isso é anti-hermético, porque o lúdico indica que há leituras possíveis. A conclusão propõe que o jogo funda a reflexão (“coisadedizer”) com a técnica poética, o canto de luz (“lucicanto”). Cabe ao leitor saber jogar. É o que veremos na análise do poema “Oráculo”.
Nos seus mais de cem versos, é um poema que concentra uma ideia bastante simples: a relação de amor e de entrega daqueles que recebem o dom da iluminação divina. Ruas, não o sacerdote, mas o homem, procura mostrar que essa é uma relação sobretudo de sofrimento. É interessante que o eu lírico – que, de forma simplificada, identificamos com o poeta – fale em nome de Deus, como se o tivesse ouvido: “disse-me o meu Deus”. Na verdade, o poeta-oráculo fala para si mesmo, como a justificar o seu sacrifício, o sacrifício dos votos sacerdotais: para ser amado por Deus é preciso merecer o Seu amor.
Sem negar-lhe quaisquer direitos, é facultado, mesmo ao escolhido de Deus, frequentar os prazeres do mundo:
Não digo que ele não vá. Isso não.
Ele vai, mas, não como os outros vão.
Porque o que ele busca nessas coisas
Não é mais felicidade. Nem prazer.
O que ele quer mesmo é me encontrar em tudo isso.
O sacerdote, assim como o artista, está sempre antenado: um à procura de Deus, o outro em busca de motivo para sua arte.
É interessante observar a crítica que o poeta-sacerdote faz a sua Igreja, desfazendo a mística da infalibilidade papal:
Porque os meus Pontífices são os meus Pontífices.
E eu os quero assim. Mas, nem sempre
Meus Pontífices são meus amados também.
Deus é humanizado a tal ponto que chega ao cúmulo do egoísmo.
Tenho muita pena, disse Deus,
Daquele que é amado por mim.
Porque é muito triste ver um homem
Pequeno, limitado, circunscrito,
Querendo satisfazer o meu amor
Ilimitado.
Essa humanização faz parte de uma “lúdica harmonia”: o homem é “imagem e semelhança” de seu criador, logo, este é imagem e semelhança do homem. Um jogo de espelhos. Paulo de Tarso e Francisco de Assis, assim como o poeta João da Cruz e a visionária Tereza D’Ávila, todos eles santos da Igreja Católica, são citados por Ruas como paradigmas dos que mereceram o amor de Deus porque souberam amá-Lo. É curiosa a raiz etimológica desse amor desmedido, representado na palavra “fanatismo”, hoje pejorativa, carregada de sentido negativo, ligado à intolerância e à violência de fundo religioso: inspirado pelos deuses, entusiasmado. Aliás, a palavra entusiasmo também foi corrompida, vulgarizada; o seu significado hoje está muito distante de sua acepção original, que, válida a poetas e a profetas, procura explicar a própria condição de oráculo que ambos carregam.
A poesia de L. Ruas encerra um duplo sentido, cumprindo dupla função: transitando entre o sagrado e o profano, nos faz pensar sobre o transcendente ao mesmo tempo em que pensamos também sobre essa atividade tão terrena e tão pouco valorizada que é o fazer poético.