Zemariapinto
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Zemaria Pinto

 

Dois poemas de L. Ruas

 

DIDÁTICA

 

 

Palavra por palavra

compõe-se a arquitetura.

O canto é limpo timbre.

É rosa a rosa. Rosa.

 

Desnuda geometria

espaço libertado:

no campo indevassado

na página tranquila

 

desenho desprovido

de inúteis arabescos

os pontos se projetam

em linhas e figuras

 

os semitons banidos

só restam sombra e luz.

Palavra é só palavra:

Indício fruto ou véu.

 

Por fim se ordenam símbolos

em lúdica harmonia

Fundindo o lucicanto

ou coisadedizer.

 

 

ORÁCULO

 

 

Tenho pena, disse-me o meu Deus,

Daquele que é amado por mim.

Tenho muita pena.

 

Tenho pena, disse-me o meu Deus,

Porque aquele que eu amar

Jamais

Terá um só momento de paz.

 

Aquele que eu mais amar

Jamais terá dias tranquilos

Nem mesmo aos domingos

Ele poderá se divertir.

Por exemplo, não terá

Aquela paz necessária que é preciso ter

Para passar um dia inteiro, de calção,

Num balneário. E se sentir feliz.

E, à noite, não frequentará boates

Nem “dancings”, nem “night clubs”,

Porque já não terá mais em si

A tranquilidade inócua dos felizes.

 

Não digo que ele não vá. Isso não.

Ele vai, mas, não como os outros vão.

Porque o que ele busca nessas coisas

Não é mais felicidade. Nem prazer.

O que ele quer mesmo é me encontrar em tudo isso.

Porque eu o amo de tal modo

Que ele quer me encontrar em toda parte.

Aquele que eu amo, disse-me o meu Deus,

Fica besta que nem poeta enamorado:

Me julga ver em toda parte e em todo mundo.

E não se cansa nunca de me procurar.

Por ele, nunca mais me largaria

Nunca mais estaria longe de mim.

E este desejo de estar perto de mim,

Sempre,

É que o fere e o maltrata.

Um dos que eu mais amei, foi Paulo,

Aquele judeu nascido em Tarso.

Outro que também muito amei foi Francisco.

Aquele nascido em Assis, na Úmbria – Itália.

E vocês bem sabem as tolices que fizeram.

Se a causa de tudo aquilo não fosse meu amor

Eu vos digo que não aprovaria o que fizeram:

Não aprovaria ter Francisco brigado com seu pai

Nem Paulo ter apelado, tolamente, para César.

Isso não são coisas que um homem de bem deva fazer...

Mas, enfim, o culpado fui eu que muito amei.

 

É por isso, disse-me o meu Deus,

Que eu não amo todos os homens igualmente.

Porque eu não sei amar de outro modo

Só sei amar assim, desmedidamente.

Não sei amar como amam os homens “comportados”:

Com elegância, com medida, com “finesse”.

Porque eles são feitos com medida e com limites.

Mas eu sou o “sem limites” e o “sem medidas”.

Por isso não amo todos igualmente:

Escolho entre muitos os que podem

Suportar as minhas exigências. Os mais fortes.

Porque depois de algum tempo ficam fracos

E consumidos pelo meu amor que os devora.

 

Eu sei, disse-me o meu Deus, que muitos gostariam

Que eu os amasse como amei Francisco e Paulo.

Mas eles não sabem muito bem o que desejam.

Eu sei que eles não resistiriam ao muito amor

Porque são limitados e muito fracos.

Por isso não amarei todos igualmente

Porque mesmo os mais fortes quase não resistem.

 

Ainda hoje acho graça dos doutores, disse Deus,

Que querem explicar as cantigas de João da Cruz

E as visões da minha Tereza D’Ávila

Como um simples caso de psicopatologia.

 

E, depois, disse Deus, eu mesmo quis que houvesse

Entre os homens e, mesmo, em minha Igreja,

Um certo clima de paz e de sossego

Para que as coisas fossem feitas devagar

Como convém que se faça entre os humanos.

Porque só eu sei fazer, com rapidez,

Coisas bem feitas, bem perfeitas.

Mas os homens não sabem e é preciso,

Por isso, dar-lhes tempo e alguma paz.

Mas, aqueles que eu amo perdem a paz

E querem fazer tudo logo de uma vez.

E não deixam mais ninguém ficar em paz.

Atrapalham mesmo os meus Pontífices

No governo da Igreja se eu não chego

A tempo de impedir que assim o façam.

Porque os meus Pontífices são os meus Pontífices.

E eu os quero assim. Mas, nem sempre

Meus Pontífices são meus amados também.

 

Tenho muita pena, disse Deus,

Daquele que é amado por mim.

Porque é muito triste ver um homem

Pequeno, limitado, circunscrito,

Querendo satisfazer o meu amor

Ilimitado.

 

Tenho muita pena, disse Deus,

E, muitas vezes, também choro

Quando, a sós, ele chora,

Me suplica e implora

Para que me afaste dele.

 

Tenho muita pena, mas, não posso

Fazer nada por ele senão mesmo

Mais amá-lo, mesmo que não queira.

 

A obra poética do padre Luiz Ruas reduz-se a dois títulos: Aparição do clown e Poemeu. O primeiro é dos mais belos exemplos de poesia religiosa em língua portuguesa. Eu disse religiosa? É pouco, pois quando falamos em “poesia religiosa” estamos nos referindo a um tipo de poesia atrelada a uma determinada religião. A poesia de L. Ruas é bem mais complexa. Voltada para o espírito e o questionamento das relações entre o humano e o sagrado, é mais apropriado classificá-la como poesia metafísica. Poemeu, a despeito de conservar, em alguns textos, essa transcendência, é um livro profano, voltado para as coisas do mundo, as inquietações cotidianas – seja do poeta, enquanto agente da criação estética, seja do homem, dividido entre os prazeres mundanos e as obrigações com o divino.

Os poemas escolhidos para análise pertencem ao segundo livro. “Didática” é um exemplo de metalinguagem, a partir do próprio título: o poeta discorre sobre o seu fazer poético, procedimento que tem uma tradição milenar inesgotável como representação individualizada da linguagem do poeta que se dispõe a revelar-se. Comecemos por examinar a própria sintaxe do poema. As regras de pontuação são desrespeitadas já a partir da segunda estrofe. O uso de maiúscula após o ponto é uma convenção também desconsiderada. O poeta busca transmitir a ideia de seu poder sobre a página em branco, manipulando palavras e símbolos, a tal ponto que o fecho do poema é um inusitado substantivo, um neologismo de grafia estranha: “coisadedizer”. Vamos por partes, ou melhor, por estrofes.

A primeira estrofe joga luz sobre a palavra e sua importância para a composição: a armação do poema se dá “palavra por palavra”. Mas a palavra “timbre” esconde uma cilada, muito própria da boa poesia: a possibilidade de múltiplas leituras. Podemos entender o poema com uma tonalidade límpida, o que seria uma redundância, mas podemos também inferir o poema como uma inscrição, ou um selo, que, sendo único, identifica seu autor. Para enfatizar essa ideia, Ruas relembra o conhecido verso de Gertrude Stein: Rose is a rose is a rose is a rose. Nada mais rosa que uma rosa.

Nas estrofes dois e três, o poema é comparado a um desenho seco, sem ornatos, compondo linhas e figuras a partir de pontos, a unidade mínima de um desenho. Trata-se de uma lei natural da poesia: a condensação. Ruas repete-a e usa a quarta estrofe para enfatizá-la, tirando do seu desenho o que estava em demasia, restando unicamente “sombra e luz”, como nas lições sublimes de Vermeer e Rembrandt. No poema, “palavra é só palavra”, mas não só, do contrário não seria poesia. A palavra é indício (pista, vestígio, rastro); é fruto (ela, em si mesma); é véu (antipista, antivestígio, antirrastro). No bom poema, como no bom poeta, a palavra pode ter várias funções, sendo ela mesma ou não. E não sendo, assumindo o papel de sugestão ou de negação. Cabe ao leitor descobrir.  

A quinta estrofe fecha a ideia que Ruas faz do poema: “por fim se ordenam os símbolos / em lúdica harmonia”. Três palavras carregadas de significados: símbolos, lúdica, harmonia. O poema é nada mais que isso: símbolos que se ordenam numa harmonia lúdica. Isso é anti-hermético, porque o lúdico indica que há leituras possíveis. A conclusão propõe que o jogo funda a reflexão (“coisadedizer”) com a técnica poética, o canto de luz (“lucicanto”). Cabe ao leitor saber jogar. É o que veremos na análise do poema “Oráculo”.

Nos seus mais de cem versos, é um poema que concentra uma ideia bastante simples: a relação de amor e de entrega daqueles que recebem o dom da iluminação divina. Ruas, não o sacerdote, mas o homem, procura mostrar que essa é uma relação sobretudo de sofrimento. É interessante que o eu lírico – que, de forma simplificada, identificamos com o poeta – fale em nome de Deus, como se o tivesse ouvido: “disse-me o meu Deus”. Na verdade, o poeta-oráculo fala para si mesmo, como a justificar o seu sacrifício, o sacrifício dos votos sacerdotais: para ser amado por Deus é preciso merecer o Seu amor.

Sem negar-lhe quaisquer direitos, é facultado, mesmo ao escolhido de Deus, frequentar os prazeres do mundo:

Não digo que ele não vá. Isso não.

Ele vai, mas, não como os outros vão.

Porque o que ele busca nessas coisas

Não é mais felicidade. Nem prazer.

O que ele quer mesmo é me encontrar em tudo isso.

 

O sacerdote, assim como o artista, está sempre antenado: um à procura de Deus, o outro em busca de motivo para sua arte.

É interessante observar a crítica que o poeta-sacerdote faz a sua Igreja, desfazendo a mística da infalibilidade papal:

Porque os meus Pontífices são os meus Pontífices.

E eu os quero assim. Mas, nem sempre

Meus Pontífices são meus amados também.

 

Deus é humanizado a tal ponto que chega ao cúmulo do egoísmo.

Tenho muita pena, disse Deus,

Daquele que é amado por mim.

Porque é muito triste ver um homem

Pequeno, limitado, circunscrito,

Querendo satisfazer o meu amor

Ilimitado.

 

Essa humanização faz parte de uma “lúdica harmonia”: o homem é “imagem e semelhança” de seu criador, logo, este é imagem e semelhança do homem. Um jogo de espelhos. Paulo de Tarso e Francisco de Assis, assim como o poeta João da Cruz e a visionária Tereza D’Ávila, todos eles santos da Igreja Católica, são citados por Ruas como paradigmas dos que mereceram o amor de Deus porque souberam amá-Lo. É curiosa a raiz etimológica desse amor desmedido, representado na palavra “fanatismo”, hoje pejorativa, carregada de sentido negativo, ligado à intolerância e à violência de fundo religioso: inspirado pelos deuses, entusiasmado. Aliás, a palavra entusiasmo também foi corrompida, vulgarizada; o seu significado hoje está muito distante de sua acepção original, que, válida a poetas e a profetas, procura explicar a própria condição de oráculo que ambos carregam.

A poesia de L. Ruas encerra um duplo sentido, cumprindo dupla função: transitando entre o sagrado e o profano, nos faz pensar sobre o transcendente ao mesmo tempo em que pensamos também sobre essa atividade tão terrena e tão pouco valorizada que é o fazer poético.