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[Rogel Samuel]


É um livro enorme, 1.099 páginas. Gosto de ler esse tipo de livro, «completo». É bom ver uma obra inteira, integral, completa. Não acho que este vasto volume vai ser completo, final. Mesmo com mais de 80 anos, Lêdo Ivo parece continuar com muito fôlego. Basta ler o seu último livro, o «Plenilúnio», com poemas de 2001-2004. Um dos seus melhores livros.

Gosto sim de ler essas obras completas, mas raramente leio as introduções críticas. Como sou um crítico literário de carteirinha, profissional, raramente leio os confrades. Com exceção, claro, aos gênios, como Roberto Schwarz , como Haroldo de Campos.

Pois me enganei: li, com admiração, o texto introdutório de Ivan Junqueira. Apesar da ironia do título («Quem tem medo de Lêdo Ivo?»), traça excelente visão da poesia do poeta e da poesia brasileira como um todo.

O primeiro poema de«Plenilúnio» dá nome ao livro e surpreende. Na força, quase brutal, de seus versos, como em:


Uma lua enorme

paira no céu pálido

..................

lua dissoluta

dos filhos da puta


Depois o poeta, em«Soneto da neve», diz da neve «branca como o esperma», e inveja a noite («cobra escondida / entre as bananeiras») - e «os anjos ocultos no bosque», e «as almas, como o gelo, se evaporam / no dia findo», onde «galinhas brancas / ciscam o universo». O poeta se encapsula «Na rua General Polidoro»: «Minha vida eterna / é problema meu» ou no «Soneto injurioso», onde «o silêncio sucede ao burulho infernal. / Assim será a morte, assim será o dia / em que a morte virá, fria como uma jia» - «Assim será a morte, a velha puta escrota / que avança para nós escondida na bruma».

 

LEDO IVO

 

A VÃ FEITIÇARIA

 

 

O feiticeiro Lêdo Ivo escreveu:

 

Invento a flor e, mais que a flor, o orvalho

que a torna testemunha desta aurora.

Invento o espelho e, mais que o espelho, o amor

onde eu me vejo, vivo, num sarcófago.

E a vida, este galpão de sortilégios,

deixa que eu a invente com palavras

que são dragões vencidos pela mágica.

E não me espanta que eu, sendo mortal,

sujeito à injúria de tornar-me em pó,

crie uma rosa eterna como as rosas

inexistentes nesta flora efêmera.

Sonho de um sonho, a vida, ao vento, escoa-se

em vãs lembranças. Minha rosa morre

por ser eterna, sendo o mundo vão.

 

 

Encontro este poema, que li quase menino, encontro ao acaso, folheando a «Poesia completa» de Lêdo Ivo, poema que recito quase de cor, como tudo por que a gente apaixona na adolescência, mas que, hoje vejo, não nunca lhe penetrei os labirintos de sentido contidos escondidos entre aqueles misteriosos versos, meio herméticos, daquela feitiçaria... Mas necessita a poesia ser realmente compreendida? Porque eu continuo lendo, hoje relendo, entoando esses versos e vejo que bailo na  musicalidade de suas sílabas, seu invento, seu encanto, e me delicio pelo que nada sei, hipnotizado por suas metáforas feiticeiras.

 

Os primeiros versos dizem:

 

Invento a flor e, mais que a flor, o orvalho

que a torna testemunha desta aurora.

 

Ora, agora, vejo, perturbado, emocionado, que o sujeito poético inventou a flor, o orvalho, o espelho, o amor, a vida, a rosa eterna, a rosa!, a rosa mística!, o sonho, o sonho de um sonho, a vida, o vento, a rosa eterna, o mundo vão...

 

Sim, eu logo que tomo este gigantesco volume das «Poesias completas» (são 1099 páginas!), logo eu senti que o encontraria, por uma intuição de leitor deste Ivo - mas logo me desviei e comecei lendo o «Estudo introdutório» do poeta Ivan Junqueira, que me convenceu e agradou. Ivo é, segundo Ivan, aquele «lírico elegíaco», cujo enigma é não seguir o breviário estético de sua geração de 45, ainda que, como todos os outros, nunca se libertou da «idéia parnasiana» que em todos nós nasce, morre e renasce... Desde Rimbaud. Aliás, diz Ivan Junqueira, que o verso «desabo em ti como um bando de pássaros» poderia ter sido escrito por Rimbaud, assim como:

 

Muda-se a noite em dia porque existes

feminina e total entre os meus braços

 

E, diríamos nós, que os versos:

 

e o tempo entronizado sai da mó

que transforma as austrálias em diademas

 

São dos mais belos daquela poética rimbaudiana de que todos os poetas nunca se libertaram de todo, por serem contagiados pelo barco bêbado da invenção da poesia moderna - e Lêdo Ivo também, mas logo se libertou, posteriormente.

 

Cheio de sortilégios é Lêdo Ivo poeta, feitiçaria nada vã da invenção das palavras, criatura de uma rosa eterna que vai além dessas floras efêmeras - eterna porque morre, e morre por ser eterna neste mundo vão - curiosa antítese que me lembra uma página da filósofa Hannah Arendt em que fez a distinção entre eternidade e imortalidade.

A destruição de Roma mostrou cruelmente que nenhum produto do homem pode ser considerado eterno.

A nossa feitiçaria é vã.

 

Sonho de um sonho, a vida, ao vento, escoa-se

em vãs lembranças. Minha rosa morre

por ser eterna, sendo o mundo vão.