A personagem invisível

 Maria José Silveira

Events take place in relation to other events. That’s what time is. It’s one damm thing after another, and the important word in that sentence is after.
Margaret Atwood

Das inúmeras relações possíveis entre história e literatura, vou falar especificamente de duas.
Para começar, uma premissa básica:
Estamos todos, como seres humanos e como ficcionistas, mergulhados até o pescoço nas águas profundas da História (com H maiúsculo). Somos, como homens e também como escritores, frutos de um determinado processo histórico. Nesse sentido, quando falamos de nós mesmos, do hoje e do agora, ou quando falamos do passado que nos formou, estamos sempre falando de um momento específico de uma história muito maior, a da experiência humana.
O próprio terreno do ficcionista, que é o da imaginação e da linguagem, é ele também formado, junto com o escritor, por esse mesmo processo. No caso da linguagem, isso é sem dúvida unanimemente aceito; no da imaginação, muitas vezes sequer é percebido.
Citando Benedito Nunes: “narrar é contar uma história, e contar uma história é desenrolar a experiência humana do tempo.”
Nem a literatura nem a história existem sem essa noção de tempo humano, articulado em forma de narração. Essa relação constitutiva tanto da literatura quanto da história é mais geral e abrangente do que muitos pensam, e não se restringe ao chamado “romance histórico”; abarca qualquer narrativa ficcional.
Colocando de outra maneira:
O conceito de história implica movimento, transformação que se desenrola em determinado espaço-tempo. Se essa transformação implica em progresso ou retrocesso não vem ao caso aqui. Seja para frente ou para trás, o que existe, constante, inabalável, e sempre, é o movimento.
E o conceito de narrativa ficcional também implica movimento – seja ele qual for: subjetivo, psicológico, descritivo, fantástico, realista. O verbo narrar supõe um acontecer, seja esse acontecer fora ou dentro da imaginação do sujeito, tanto do escritor quanto do seu personagem.
É nesse sentido que uma obra literária de qualidade, quer seu autor pretenda isso ou não, é uma evidência de seu tempo histórico. Ela se situa no tempo – não só no tempo em que se passa a obra mas também no tempo onde está o escritor – e dialoga a todo instante com esses dois momentos. As idéias e detalhes que ela expressa são evidências – por mais subjetivos que sejam – de sua época.
Dessa maneira, a obra contemporânea, em um momento futuro, falará, com maiores ou menores detalhes, da época na qual está sendo produzida. Não só através de dados muito concretos como, por exemplo, a descrição de uma rua, de uma casa, de uma cidade, roupas, objetos, ou do tipo da vida fragmentada, insegura, violenta que vivemos hoje, mas também da nossa mentalidade, nossos questionamentos, preocupações, sentimentos, valores e desejos, nosso imaginário.
É nesse sentido que a literatura é, sempre, um texto entranhado de história. Entre as várias camadas de leitura que ela permite está embutida a do leitor do futuro que encontrará nela vestígios e traços do momento em que viveu seu autor.
Essa constatação, aliás, não é nada nova.
Contam que historiadores gregos, só para dar um exemplo, iam buscar nas “Ilíadas”, de Homero, as dimensões das antigas naves gregas. E nem é preciso lembrar que clássicos de todos os tempos – Shakespeare, Cervantes, Camões, Tostói, Proust, Kafka, só para citar alguns – deixaram belos testemunhos de seu tempo. Todos eles são constantemente visitados por historiadores e pesquisadores.
Grandes romancistas de épocas passadas, aliás, compreenderam muit bem tudo isso. Stendhal, por exemplo, deixou claro que sua intenção era chegar a uma compreensão histórica mais profunda através do relato com personagens e acontecimentos inventados. O subtítulo, “Crônica de 1830”, de seu livro mais famoso, “O Vermelho e o Negro”, não deixa dúvidas quanto a isso.
E Balzac, na introdução a sua “A Comédia Humana – Cenas da Vida Privada”, explicita:
“… Talvez eu pudesse conseguir escrever a história esquecida por tantos historiadores, a dos costumes. Com muita paciência e coragem, eu realizaria, sobre a França do século XIX, esse livro de que todos sentimos falta, que Roma, Atenas, Tiro, Mênfis, a Pérsia, a Índia, infelizmente não nos deixaram sobre as suas civilizações…”
Como grande mestre do romance que foi, Balzac ainda vai mais longe e propõe um novo método:
“Concedo aos fatos constantes, cotidianos, secretos ou patentes, aos atos da vida individual, às suas causas e aos seus princípios, tanta importância quanto a que os historiadores deram até então aos acontecimentos da vida pública das nações.”
Há uma coisa curiosa, no entanto.
Os historiadores contemporâneos, da chamada História Nova ou da História das Mentalidades, assumiram plenamente o desafio deixado por Balzac, mas como ele é considerado um dos pais do romance, os que deveriam ser seus herdeiros, os ficcionistas – e aqui estou me referindo aos ficcionistas brasileiros – poucas vezes levam essas idéias em consideração. Para não dizer que muitos parecem francamente repudiá-las.
Temos, evidentemente, todo tipo de escritor no Brasil hoje e, de uns anos para cá, existe uma agitação na cena literária que há tempos não se via – o que é excelente, e promissor. De maneira geral, no entanto, parecemos um tanto dispersivos (para não dizer, talvez, ligeiros ou pouco ambiciosos).
A liberdade que se tem hoje é tanta que a criação pode começar apenas com uma pequena idéia ou um esboço de idéia, e a escolha do tema pode vir de uma pequena frase, uma imagem, sensação ou desejo, alguma coisa qualquer que pode ser clara, ou então vaga ou nebulosa ou inexplicável, e funciona como um gatilho a partir do qual o escritor contemporâneo começa a trabalhar. Mas, a rigor, ele mal tem consciência de que, seja como for, seja qual for o tema que escolheu e a idéia da qual partiu, sua obra está dialogando com a época e o imaginário em que ele vive. E é nesse sentido que, em um tempo futuro – se permanecer – sua obra falará de sua época.
O que, sem dúvida, é um dos atributos da grande obra literária. É o que faz da História, em seu sentido mais amplo, a personagem por excelência, embora invisível, de qualquer narrativa ficcional.
*
E chegamos, aqui, a uma segunda relação entre a literatura e história: a questão da chamada “verdade”.
A teoria do século XIX opunha a história à literatura, como se seus campos fossem distintos, e a literatura trabalhasse apenas com a ficção e a história, apenas com a verdade. Seguiam o que já havia afirmado Aristóteles em sua Poética, quando fez a famosa colocação sobre os historiadores – que falam do que foi (do que seria o verdadeiro) – e os poetas (os ficcionistas) – que falam do que poderia ter sido (do possível).
Hoje isso já foi colocado em questão e bastante relativizado, e há vários anos vem se desenvolvendo, no campo dos historiadores, toda uma discussão que procura entender a narrativa do historiador como um texto articulado a partir de suas escolhas subjetivas, o que implica em reconhecer sua parcialidade, enquanto ressalta que, por sua vez, também a ficção é narrativa entranhada pelo real e, portanto, também parte da “verdade” que se procura.
Literatura e História seriam assim, de certa forma, se não irmãs, pelo menos boas vizinhas que moram na mesma rua do conhecimento do mundo como ele foi ou ainda está sendo.
Mas ao contrário do historiador que busca o que, do seu ponto de vista, seria o verdadeiro, a literatura trabalha, não necessariamente com o falso, mas com o verossímil (a impressão da verdade).
As relações entre literatura e verdade, portanto, são também muito peculiares.
O compromisso do escritor é com a qualidade da literatura e não com a verdade factual, isso é certo. Mas é preciso que ele apresente sua invenção de tal forma que crie a chamada “suspensão da descrença”, fazendo o que todos sabem que é mentira passar por verdade.
Para isso, ele tem a liberdade que o historiador não tem. Para o ficcionista, tudo – ou quase tudo – é permitido.
Sem pudores e sem pedir licença, ele vai entrando nas intimidades, nos bastidores e cantos ocultos, no “hardcore” da alma humana, e de lá volta preenchendo sombras e vazios, articulando os comportamentos sociais e culturais de uma época, conferindo inteligibilidade à trama dos eventos, idéias e episódios.
A imaginação abre para o ficcionista uma porta por onde o historiador, com a carga de seus métodos, não pode passar. É por essa porta que o escritor penetra na subjetividade de seus personagens e tenta chegar ao fundo do seu poço de desejos, necessidades, e inquietações mais íntimas. Essa é sua prerrogativa, e é por onde ela se separa da História e segue seu caminho único, o da linguagem.
Isso faz parte do jogo mágico entre a literatura e seu leitor e, sem isso, ela não é literatura.
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Agora, se todo romance está, do ponto de vista que estou colocando aqui, mergulhado na História, onde fica o romance chamado “histórico” por tratar de uma trama que acontece em algum momento do passado?
A rigor, essa classificação, é vazia de sentido, e só pode ser considerada como, talvez, uma catalogação para efeitos de organizar o mundo literário colocando seus textos em diferentes escaninhos, como quem arruma um armário de roupas: calças aqui, vestidos ali, lingerie naquele canto.
Pois o assim chamado “romance histórico” é escrito hoje, como qualquer outro tipo de romance contemporâneo, por um autor do presente, ou seja, por um indivíduo que está imerso no imaginário do presente, utiliza os instrumentos do presente, e parte das perguntas e inquietações do presente.
O romance que ele escreve, portanto, é uma obra contemporânea como qualquer outra e com o mesmo tipo de olhar e voz. Também trabalha com a linguagem (seu ritmo e beleza), e mistura gêneros (se quiser). Apenas a paisagem e o contexto de sua trama mudam.
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Não sei até que ponto essas questões interessam a outros escritores, mas a mim elas tocam de perto.
Sou uma escritora com um pé, digamos assim, muito assentado na história porque o projeto da minha ficção é político – não no sentido estrito e panfletário que lamentavelmente se costuma dar a essa palavra, mas em sua acepção mais fascinante, a dos conflitos que levam à transformação das sociedades. Em decorrência dessa escolha, portanto, a história costuma estar mais explicitamente presente nos meus textos.
Assim, os quatro romances que escrevi até agora e o livro de contos que está no prelo acabam provocando a pergunta: são ou não históricos? Questão que carece de relevância, porque se é verdade que tratam de algum momento de uma história passada, é verdade também que todos partiram de questões absolutamente contemporâneas.
Apenas para dar um exemplo, um dos meus romances conta um pouco da vida de Eleanor Marx, a filha caçula de Karl Marx. É um romance, portanto, que se passa na Londres do século XIX, mas o que me levou a escrevê-lo foi o interesse em saber por que uma mulher como ela, filha de quem era, militante do movimento socialista internacional, divulgadora privilegiada das idéias do pai, feminista – como uma mulher assim se deixou envolver por um cara sem escrúpulos e terminou se suicidando aos 43 anos de idade? Ou seja: na verdade o livro é uma história de amor que procura entender os componentes do desespero extremo de uma pessoa frente à vida. O que me parece um tema bastante contemporâneo.
Meu último romance, também, “Guerra no Coração do Cerrado”, que tem como personagem uma figura da colonização de Goiás, é a história – e, nesse caso, bastante ficcionalizada pois os documentos a respeito são muito precários – de uma índia panará que foi criada por um governador e serviu de mediadora entre os colonizadores brancos e sua tribo que em poucos anos, como era de se esperar, terminou praticamente extinta. E o que me levou a me apaixonar pelo tema a ponto de me dedicar a escrever esse livro, foi a questão do conflito mortal entre duas culturas muito diferentes e a incapacidade da chamada civilização ocidental de reconhecer e respeitar os direitos do “outro”. Existe tema mais atual do que esse?
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Fazer literatura, portanto, com seu método e sua linguagem e seus temas mais diversos, significa participar da história presente. Literatura e História estão ligadas por laços indissolúveis e fazem parte da mesma vontade de compreender o ser humano em seu tempo, e contínua transformação.

(A partir do Encontro de Interrogação (Itaú Cultural) em Buenos Aires/ 2009)

Maria José Silveira nasceu em Jaraguá, Goiás, e mora em São Paulo. É formada em Comunicação e em Antropologia, e mestre em Ciências Políticas. Foi sócio-fundadora da Editora Marco Zero e trabalhou na Cosac&Naify Edições. Tem vários romances publicados, entre eles “A Mãe da Mãe de sua Mãe e suas Filhas”, com o qual recebeu o Prêmio Revelação da APCA, 2002, “O Fantasma de Luís Buñuel” e “Guerra no Coração do Cerrado”. Escreve também para jovens e crianças.