(Miguel Carqueija)

(Resenha de “As Crônicas de Nárnia” de C. S. Lewis)

    Em monumental volume único de mais de 700 paginas, a Editora Martins Fontes reeditou em 2001 a coleção completa das “Crônicas de Nárnia” — originalmente The complete Chronicles of Narnia (Harper Collins, Londres, 2001). A primeira edição brasileira foi de 2002.
    Com exceção do último livro, traduzido por Silêda Steuernagel, o tradutor da célebre epopéia de Nárnia é Paulo Mendes Campos.  
    C. S. Lewis (1898-1963) é um autor britânico exponencial, muito conhecido por suas obras sobre religião e também na ficção cientifica. Seu romance “Além do planeta silencioso” (lançado no Brasil pelo lendário editor Gumercindo Rocha Dorea) é um clássico do gênero.
    No campo da fantasia Lewis é um gigante, na tradição de seu xará Lewis Carrol e amigo de J. R. R. Tolkien (criador da trilogia “O Senhor dos Anéis”) com quem é frequentemente comparado. Anglicano, Lewis carrega seus textos de religiosidade cristã combinada com um forte senso de imaginação, ao qual não falta uma dose de humor além de um detalhismo fascinante. “As Crônicas de Nárnia” totalizam sete volumes.

O SOBRINHO DO MAGO

    Publicada originalmente em 1955, esta narrativa é na verdade uma prequela (sequência anterior) ao primeiro livro, “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa”, de 1950. Ao que parece, na reunião dos sete livros Lewis quis que este ficasse na frente, por conta da ordem cronológica.
    “O sobrinho do mago” explica como, pela primeira vez, humanos — um “filho de Adão” e uma “filha de Eva” — chegaram à terra mítica de Nárnia, num planeta de outra dimensão. A menina Polly e o garoto Digory chegam mesmo a flagrar Aslam, o Leão (assim constantemente grafado, ou seja, com inicial maiúscula) no ato de criar Nárnia do nada, já com seres adultos, inclusive animais falantes. Aslam, sabe-se que é uma metáfora de Jesus Cristo — o “Leão de Judá”.  A história também esclarece como e´que a Feiticeira Branca — que parece uma nova versão da Rainha da Neve, de Hans  Christian Andersen — chegou a Nárnia.
    Lewis, além da aventura e da fantasia, também coloca algum humor nas suas narrativas. Aqui, por exemplo, vemos como Polly e Digory, ao se conhecerem, trocam infantis farpas em torno da qualidade de seus nomes. Querendo levar vantagem na discussão meio sem sentido — quem é que tinha o nome mais sem graça — a menina saiu-se com essa: “Bem, pelo menos eu lavo o rosto”.

O LEÃO, A FEITICEIRA E O GUARDA-ROUPA

    A mais conhecida crônica, porque filmada duas vezes, é a que dá realmente origem à saga. Ciente de estar criando um universo mágico para encantar as crianças, Lewis fez questão de centrar suas narrativas em crianças tornadas heroínas. Pedro, Suzana, Lúcia e Edmundo formam o quarteto básico que irá testemunhar o drama de uma terra transformada em gelo e submetida ao domínio de uma pessoa cruel, pérfida e impiedosa. E como nem sempre os heróis são perfeitos, Edmundo, nitidamente levado por birras de criança, resvala para a traição aos amigos.
    Num clichê explorado tanto pela fantasia como pela ficção cientifica, uma passagem dimensional — ou “portal” — leva Lúcia ao mundo paralelo de Nárnia (na verdade um país dentro de uma Terra alternativa), habitado por náiades, dríades, centauros, faunos, gigantes e outros seres fabulosos, além de animais falantes.
    No desenvolvimento da história haverá lugar até para a morte e ressurreição de Aslam, um evidente simbolismo cristão (como ocorre com Nausicaa, de Hayao Miyasaki).
    O detalhe mais estranho ou menos lógico, para mim, é que castores (que são vegetarianos) tenham presunto em casa e o ofereçam às crianças. É possível imaginar matadouros em Nárnia?

O CAVALO E SEU MENINO
    
    Publicado originalmente em 1954, esta história recua na cronologia de Nárnia e por isso, na edição em um volume só, foi colocada em terceiro lugar, mesmo tendo sido escrita após as três seguintes.
    Desviando um pouco o foco de Nárnia, Lewis aborda o reino próximo de Aquelândia e o drama de um menino criado por um padrasto cruel e explorador. A jornada de Shasta com o cavalo falante e narniano Bri, aos quais se juntam a menina Aravis e a égua Huin, entrelaça-se com o drama de Suzana — rainha de um dos tronos de Cair Paravel, em Nárnia — que estando hóspede com seu irmão, o Rei Edmundo, na cidade de Tashbaan, capital de Aquelândia, vê-se assediada por um dos príncipes locais, um individuo perverso e disposta a casar com ela à força.
    No decorrer da aventura Aslam irá reaparecer — ele sempre vem de uma terra misteriosa de além-mar e é filho de um imperador igualmente misterioso, que nunca aparece (metáfora de Deus Pai).
    O que é notável na prosa de C. S. Lewis é a riqueza do vocabulário e o detalhismo, trazendo à tona todo um mundo de relações complexas envolvendo vários tipos de seres.          

PRÍNCIPE CASPIAN

    O volume, diga-se de passagem, vem acompanhado por ilustrações — uma por capítulo de cada livro — assinadas por Pauline Baynes. Ao que parece, os mapas também são dela. “Príncipe Caspian” — lançado em 1951 e que é, de fato, a sequência de “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa” — é precedido de um mapa que mostra, entre outras coisas, o “dique dos castores”, o “gramado da dança”, a “casa dos ursos barrigudos” e o “ermo do lampião”, onde se deu a entrada do quarteto de crianças em Nárnia.
    Nesta segunda vez é numa estação de trem que se dá a transposição mágica, e lá vão de novo Lúcia, Suzana, Pedro e Edmundo. O chamado mágico — semelhante ao que acontece no mangá e anime “Guerreiras Mágicas de Rayearth”, da CLAMP — vem atender uma situação estranha e assustadora. Não existem mais animais falantes e outros seres em Nárnia. Aslam é apenas uma lenda. Há séculos que usurpadores tomaram o país e seu legítimo soberano, o Príncipe Caspian, é um fugitivo com poucas forças leais. Que a salvação venha pelas crianças — embora os dois meninos saibam lutar a espada e as duas meninas, com arcos — é uma idiossincrasia das Crônicas de Nárnia, um detalhe simbólico e, de resto, compartilhada em outras fantasias, inclusive muitas do Japão.
    Uma cena interessante é quando o anão Trumpkin, depois de contar às quatro crianças a história de Caspian, lamenta não ter surgida a ajuda pedida pela trompa mágica, o que leva Lúcia a explodir:
    “— Mas ainda não percebeu quem somos nós? — gritou Lúcia. — Que anão mais bobo!”
    Como em outras narrativas, há lutas, manifestações de coragem e amizade, e a presença redentora do Leão. Uma presença tanto mais rica e marcante quanto rara.    

A VIAGEM DO PEREGRINO DA ESPERANÇA

    A saga prossegue com Lúcia, Edmundo e uma nova criança, Eustáquio, que a princípio é bastante antipático. Caspian retorna e, desta vez, os heróis singram os mares desse estranho mundo, em busca da terra do Leão, e outra notável presença é o ratão espadachim Ripchip (1ª edição de 1952).
    Lewis faz um amplo exercício de imaginação e seu texto é aliciante e surpreendente a cada passo. Lewis é, de resto, um detalhista que não esquece coisas que podem parecer óbvias mas que muitos autores olvidam, como por exemplo a descrição das refeições. Assim, no décimo capítulo, podemos ler:
    “De qualquer modo, foi uma boa refeição, com sopa de cogumelos, galinha cozida, fiambre, groselhas, passas, requeijão, manteiga, leite e hidromel.”
        Aos poucos vão achando as pistas dos narnianos exilados e chegam por fim a uma região encantada — o “mar de lírios” — que prefigura a misteriosa terra de Aslam.
    O sentido místico, o simbologismo cristão de C. S. Lewis torna-se bem evidente em algumas passagens — como a do Cordeiro que se transforma em Aslam.

A CADEIRA DE PRATA

    Para o prosseguimento da história Lewis providenciou uma nova protagonista infantil, Jill Pole, que vai parar em Nárnia com o Eustáquio. Nesta trama é de grande importância seguir as instruções, o que foi combinado. O valor da lealdade é importante em C. S. Lewis.
    Os gigantes que moram ao norte de Nárnia são gigantescos mesmo, como os das “Viagens de Gulliver”. E requintados o bastante para terem receitas para preparar seres humanos em seus livros de culinária. Assim começa uma das receitas, a de “pastelão humano” (sic): “Este elegante bipedezinho há séculos é apreciado pela delicadeza de seu paladar”. Todavia, o mesmo livro não recomenda muito o prato à base de “paulama”, “por causa de sua consistência fibrosa e do sabor de lama”. Esse tipo de criatura é um humanóide com aspecto de espantalho, mais um tipo exótico das narrativas de Lewis. Também entram em cena os deprimidos anões dos subterrâneos e outra bruxa gananciosa e perversa.
    Aliás eu fiquei imaginando que a Feiticeira Branca, única vilã que realmente deu trabalho a Aslam, iria reaparecer; mas isso não acontece, a não ser na mencionada prequela. O que talvez tenha sido um erro de C. S. Lewis.

A ÚLTIMA BATALHA

    Lançado em 1956, este último livro das “Crônicas de Nárnia” apresenta um vilão inesperado, um macaco falante e maquiavélico, o Manhoso, que manipula um jumento muito influenciável, chamado apropriadamente de Confuso. Não se sabe bem por que cargas d’água o macaco resolve tomar de golpe o poder em Nárnia, disfarçando o jumento de leão para fingir que ele é Aslam e, como seu oráculo, passar a ditar ordens aos múltiplos habitantes do país. O rei, inclusive, é deposto.
    Manhoso não hesita em fazer um acordo com a potência vizinha de Calormânia, que logo passa a requisitar narnianos como escravos. A trama seria muito forçada se não fosse divertida e narrada com grande vivacidade. Como quer que seja, Jill e Eustáquio reaparecem e, posteriormente, outros personagens da Terra que tiveram ligação com Nárnia, mesmo os pioneiros Polly e Digory — com exceção de Suzana. Pareceu-me uma escolha errada do autor, que uma heroína do quarteto original de “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa” ao crescer renegasse Nárnia, relegando-a à categoria de mera fábula ou invencionice de crianças. Ela, que fôra rainha em Nárnia. E a memória?
    Ao encerrar sua saga com uma apoteose apocalíptica, C. S. Lewis provavelmente teve a intenção de impedir continuações apócrifas mesmo após sua morte. Nas metáforas desta apoteose final transparece a fé cristão do autor, que era anglicano.

Rio de Janeiro, 25 de março a 4 de maio de 2013.