A palavra obrigado

[Bráulio Tavares]

Existe em nós um prazer maligno no ato de interferir na linguagem coletiva e estabelecer, “do nada”, que de agora em diante algumas coisas são proibidas e outras são obrigatórias.

Quando quem faz isto é o vizinho do lado, que se limita a bradar seus impropérios, tudo bem; o pior é quando quem faz isso é uma massa amorfa de gente ansiosa para aderir a uma moda qualquer e sentir-se significativa.

Na minha infância, certas palavras eram consideradas de mau gosto. Eram termos plebeus, grosseiros, que gente direita não usava. Algumas tias minhas, quando em reuniões um pouco mais formais, com pessoas de fora da família, nunca diziam: “Fulana está grávida”. Diziam: “Fulana está esperando”.  Ou, melhor ainda: “Fulana está em estado interessante”. Minha curiosidade sheldoniana era: Grávida é palavrão? Não, elas me asseguravam. É que é mais educado dizer assim.

Me vinha à mente o exemplo (se não me engano) do Conselheiro Acácio, de Eça de Queiroz, que não dizia “vomitar”, e sim “restituir”, e fazia um gesto ilustrativo.

Há sempre um eufemismo que serve para mostrar o quanto somos refinados, bem-falantes, o quanto sabemos o que é delicadeza e não precisamos olhar no dicionário o significado de circunlóquio nem o de cerca-lourenço.

Um eufemismo muito em voga atualmente é “gratidão” no lugar de “muito obrigado”. Vários amigos e amigas com quem converso preferem essa forma. E me explicam. “Muito obrigado” passa uma ideia de que você se sente coagido, preso, se sente forçado a agradecer, está sendo obrigado a agradecer mas por sua vontade não agradeceria. Ao passo que “gratidão”, este mero substantivo, tem a clareza e a pureza de exprimir, sem subterfúgios, o que você está sentindo diante do gesto alheio.

É sempre divertido xeretar as origens dos termos, e me veio à idéia buscar as origens de “obrigado”, até porque me interessava saber se havia alguma relação etimológica com o verbo “brigar”. Quantas vezes dizemos “’Brigado!...”, “ ‘Brigadão!...” (Spoiler: não tem.)



Fui olhar no útil etymonline.com a palavra “obligation”, e eis que ela advém do latim “ob-ligationem”, que envolve a idéia de “ligar”, unir, prender através de um laço (concreto, ou simbólico); a idéia de vínculo através de um compromisso, de uma promessa, de uma dívida, de um pacto, e assim por diante.

Daí vem a interpretação corrente, de que você me fez um favor ou uma gentileza, e por isto estou ligado a você por esse vínculo de gratidão; é algo que nos une simbolicamente.

A crítica que se faz a “obrigado” talvez se origine de um certo desconforto quanto à nuance de “estou te devendo um favor” “estou ligado a você por uma dívida que serei coagido a pagar mais cedo ou mais tarde”.

Essa dívida é real? Para muita gente, sim. O favor é uma moeda perigosa, sujeita ao câmbio flutuante das relações de poder. Às vezes o sujeito me dá uma carona numa noite de chuva e meses depois pede meu carro emprestado para ir a um show de rock.

A questão de “pagar de volta um favor” transforma a arte de ajudar alguém uma espécie de agiotagem da bondade. Como dizia um sábio, “cuidado com quem lhe dá alguma coisa que você não pediu, porque cedo ou tarde vai lhe pedir alguma coisa que você não pretendia dar”.


(Theodore Sturgeon e Robert Heinlein)

O gesto de pagar de volta um favor qualquer é sempre um gesto positivo. Mas igualmente positivo é o gesto de pagar para diante, “to pay forward”, como dizem os norte-americanos. Dizem que Theodore Sturgeon, o grande escritor de More Than Human, estava uma vez numa pindaíba que dava dó. O igualmente grande Robert Heinlein, que estava com um ou dois livros na lista de best-sellers, ficou sabendo e mandou-lhe pelo correio um cheque que lhe zerava as dívidas. Sturgeon agradeceu e disse que pagaria de volta, quando pudesse. Heinlein disse: “Não precisa me pagar. Quando vir alguém que precisa, e puder ajudar, ajude. Pague para diante.”
 
Eu não me sinto manietado nem jungido quando mando meu muito-obrigado a alguém. A carga de significado desse agradecimento está mais na posição que ele ocupa no encadeamento do diálogo do que no sumo semântico de seus termos. Esqueçam os termos em si. Como diz um amigo meu, quando a gente chama um sujeito qualquer de filho-da-puta não está tentando ofender a mãe dele, uma santa senhora que não merece o filho canalha que tem.

Na minha cabeça, a palavra “obrigatoriedade” evoca idéias de autoritarismo, perda do livre arbítrio, cerceamento da liberdade. Curiosamente,  a expressão “muito obrigado” não carrega (falo de minha leitura pessoal) nenhuma dessas conotações. Por alguma tresleitura feita na infância, algum entendimento enviesado do que os adultos estavam dizendo, sempre traduzi “muito obrigado” por “muito agradecido”, e essa fórmula para mim encerrava a questão. Você me faz um favor. Eu reconheço, registro, agradeço, e boa tarde.

Eu nada tenho contra quem usa “gratidão”, e na verdade nem percebo mais. Digo “obrigado!” há décadas e espero continuar a fazê-lo por muitas décadas mais. Embora atualmente me veja dando preferência ao popular “Valeu!...”. Ele me parece uma versão mais informal desse termo, uma versão mais calça-jeans-e-camiseta. “Obrigado” ainda é um pouco camisa-social-de-mangas-compridas.