A NOVA CRÍTICA DE AFRÂNIO:  um capítulo de meu Projeto  de Pós-Doutorado, concluído e  aprovado   pela U.F.R.J. (2014),  cujo título é  Álvaro Lins  e Afrânio Coutinho: dois críticos e uma  polêmica. Supervisor: Professor  Doutor  Titular de Literatura Comparada da U.F.R.J., Eduardo de Faria Coutinho,    Ph..D. em Literatura Comparada  pela Universidade de Berkeley,  Califórnia, EUA.                                               

   

               É bem provável que possamos  -  digamos assim -, rastrear os primeiros sinais de vontade de transformações, i.e.,  de novas approaches no terreno da crítica literária e do ensaio no país manifestados por Afrânio Coutinho desde a publicação de sua obra A filosofia de Machado de Assis (1940).    Neste sentido, seria oportuno, antes de tudo, fazermos  uma  referência    a breves   dados  informativos  de natureza biográfica que, sem dúvida,  são  necessários à compreensão  da trajetória  desse crítico  a quem  os estudos   de literatura brasileira tanto devem   não somente no   campo da  atualização   e de  novas orientações que  imprimiu  aos estudos  literários no país, tanto no ensino médio quanto sobretudo na cátedra universitária.

        Não seria temerário ou exagerado  afirmar que seu papel  de crítico e historiado, na literatura  brasileira, tornou-se um divisor de águas.   Afrânio Coutinho era formado em medicina, porém, nunca  exerceu efetivamente essa atividade porquanto sua  vocação. ainda quando estudante de medicina,  o predispunha inelutavelmente aos estudos  literários,  históricos e filosóficos, vindo  mesmo a lecionar, ainda em Salvador, no curso secundário, literatura e história. Em 1941, fora convidado a fazer  parte do corpo docente da Faculdade de Filosofia da Bahia.  Ora,   àquela  altura também atuava  no jornalismo e ao mesmo tempo  ia se preparando para o que,  na realidade, viria a ser a sua  atividade  primordial na vida: a de escritor, sobretudo de alguém profundamente  motivado por questões de crítica literária e  de historiografia.  

        Não  sendo,  como os de sua geração, formado em Letras, uma vez  que  este tipo de curso só surgiria no país no final dos anos de 1930, mas sendo um moço estudioso e consciente de seus objetivos intelectuais, tudo indica que já estivesse ao corrente da leituras de alguns  autores  estrangeiros na área da  crítica literária, notadamente do que se vinha  publicando, desde os anos de 1920, na Europa e nos Estados Unidos nesse  domínio de estudos  de  Literatura. Dentro dessa  possibilidade de leituras feitas  por Coutinho, podemos  pensar na hipótese de que, na juventude, ainda em Salvador,  já tivesse lido a obra do crítico  inglês I.A. Richards,  Princípios de crítica literária, que saiu publicada em 1924, e cuja  tradução  em português  foi lançada, em 1967,  pela Série Universitária da Editora  Globo com a Editora da Universidade de São Paulo.

      Richards escreveu também,  na área de crítica literária,    entre outras  obras, Practical  criticism (1929), Coleridge on imagination (1935), The Philosophy of rhetoric (1936), Intrepretation in teaching (1938) e How to read a page (1942).  Entretanto,  como a confirmar aquele hipótese de que Coutinho, ainda em Salvador,  já estivesse  de posse das leituras  de alguns autores na direção que gostaria de imprimir à sua formação  literária,  o seguinte passo nos parece fornecer uma pista neste sentido: [...] "Pode o presente articulista oferecer também o seu testemunho acerca do assunto: ao chegar aos Estados Unidos em 1942,  levava no espírito muitos dos problemas e dúvidas, muitos dos anseios renovadores, que foi encontrar expressos em críticos americanos e outros, e lá, em contato com os meios universitários, foi-se identificando com o movi mento renovador, que vinha ao encontro de suas ideias e das necessidades que sentia quanto à crítica de palavras, com o valor do vocábulo..." [...]  (COUTINHO, A. Crítica e críticos. Rio de Janeiro: Organizações Simões,1969, p. 134) . Segundo  o crítico David Daiches, Richard, na fase de sua  produção, já andava investigando questões concernentes à “natureza do significado  poético”  como diferente do significado científico, conceitos estes que para Daiches iriam ter “influência considerável sobre todo o movimento crítico moderno” (DAICHES,David. A crítica nova. In: SPILLER, Robert E.(org.).   A renascença literária norte-americana (1910-1960). São Paulo: Editora Letras e Artes. Trad. de Francisco Rocha Filho, 1963, p.139).      

              Na vida intelectual,  Coutinho atuou  incansavelmente em  duas  frentes: na primeira,  no campo da crítica literária,  particularmente, na produção teórica – longe daquilo que, com certa  pressa e desconhecimento das ideias e do pensamento crítico-teórico  de Afrânio Coutinho, o julgara Adélia  Bolle ao definir sua  doutrinação  do new criticism como equivalente a   uma  “crítica de divulgação” (BOLLE, A.op. cit., p. 80, nota de pé de  página 64). Na condição de  introdutor e principal  propugnador entre nós   do new criticism americano, empregamos  este termo  por ora   como uma marca que lhe  ficou nas citações  em histórias literárias brasileiras, pois, na realidade,  o conceito que  Coutinho   tinha por  essa corrente crítica tem uma  significação e uma abrangência   bem maior  do que um  único   movimento de  renovação  crítica que veio  substituir o velho  impressionismo no país, por sua vez,   derivado, por importação,  do impressionismo  francês do século  XIX,  o qual teve representantes  ilustres  como  Anatole France,  Jules Lemaître, Remi de Gourmont, Faguet,  France Jaloux,  André Gide e alguns outros. Reconhece Coutinho que entre o new criticism e a Nova Crítica há  algumas convergências de princípios.  Todavia, acrescenta ainda que  a sua “afinidade” mais profunda era com  o formalismo  eslavo,  cujos ensinamentos foram  adquiridos em Nova Iorque, na Universidade de Colúmbia,   através das lições de René Wellek e de materiais  pouco conhecidos então  no Ocidente.

            No mesmo artigo, Coutinho aproveita para  reiterar que, ao regressar ao Brasil,  o que estava nos seus planos era iniciar uma campanha de esclarecimento  no meio literário procurando   “desacreditar” o “velho e sovado” impressionismo crítico, reduzido, então, a uma atuação praticamente apenas nos rodapés de jornais,  “...praticado  à larga pelos donos de rodapés da ‘crítica’ literária” (COUTINHO, A. Impertinências. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/EDUFF- Universidade Federal Fluminense, 1990, p.149.)

            De outra parte, Coutinho refuta, no artigo “Nova Crítica,”     que faz parte da sua  obra Impertinências. (Ibidem p. 148), um artigo de Wilson  Martins, segundo o qual  Coutinho  havia sido “divulgador” do new criticism norte-americano. Inclusive  ironizando que essa corrente crítica “... chegara ao Brasil dentro da minha bagagem.”(Idem,  ibidem, p. 148-149).  Coutinho,  já cansado de ouvir essa mesma história várias vezes, que ele chama de “balela,”  repeliu a visão de Wilson  Martins, negando, assim,  que tenha importado aquela  corrente crítica. O que, segundo  Coutinho  ocorrera  era o fato de que os conhecimentos  sólidos  que trouxera dos Estados Unidos não eram simplesmente a nova corrente, porém “...toda uma renovação da crítica literária.” (Ibidem, p. 149). Acentuava  que o new criticism e a Nova Crítica não eram a mesma coisa no seu conjunto de princípios e preceitos. A corrente norte-americana fazia parte de uma tendência “globalizante,” abrangendo  “métodos e doutrinas de várias tendências.”(Ibidem). Informa que a mesma situação que ele enfrentou  no país tinha acontecido na França nos anos de 1960, com o movimento crítico  denominada nouvelle critique e, segundo o crítico, era semelhante à nova crítica por ele inaugurada.

            Numa segunda frente,  atuou intensamente  no campo  da historiografia, nos estudos sobre  periodização literária, nos  estudos sobre o Barroco  em que se tornou um especialista  e um desbravador no  país, no tema da descolonização  literária. Além disso,  incluiríamos  os seus  estudos de temas sobre  educação, língua portuguesa,  ensino e pedagogia  na área da literatura, biblioteconomia, bibliografia, normas  técnicas de preparação de  trabalhos   acadêmicos. Alguns desses assuntos  comentaremos mais adiante. Segundo  o crítico David Daiches, Richard, na fase de sua  produção, já andava investigando questões concernentes à “natureza do significado  poético”  como diferente do significado científico, conceitos estes que para Daiches iriam ter “influência considerável sobre todo o movimento crítico moderno” (DAICHES, David. A crítica nova. In: SPILLER, Robert E.(org.).   A renascença literária norte-americana (1910-1960). São Paulo: Editora Letras e Artes. Trad. de Francisco Rocha Filho, 1963, p.139).        

         Recordemos, apoiados na síntese de Martins Gray (Dictionary of literary terms, p. ) que o movimento do New Criticism, mantendo a expressão em maiúsculas  do verbete  no original,  data  dos anos de 1930 a 1940 com  a edição  The New Criticism (1941), de John Crowe Ransom tendo sido  ele quem consolidou essa designação e  sintetizou as questões atinentes a essa corrente crítica, à qual se juntaram outros  “novos críticos,” como Allen Tate, R.P. Blackmur, Robert Penn,  W..K. Wimsatt, Cleanth Brook e Robert Penn Warren.

           As investigações dos dois últimos  resultaram na  publicação  conjunta da obra Undestanding  poetry (1938),  obra cuja repercussão logo  se fez sentir, graças às novas visões e métodos  que apresentava, com a sua ampla  adoção  tanto  em escolas secundárias quanto   em universidades americanas.  Martin Gray  esclarece  que os “novos críticos” americanos receberam também  subsídios das ideias de I.A. Richards no que tange à terminologia adequada empregada por aquele estudioso  inglês visando a “efeitos literários” e suas adaptações do pensamento de Coleridge relativo às “ideias de forma como elemento de síntese da poesia.”

           Da mesma maneira, Gray se reporta à atuação das ideias de Richards segundo  as quais a literatura é produzida por meio de uma “linguagem especial,” “não-referencial.”  Ainda Martin Gray, amparado em T.S. Eliot, sustenta que a literatura vista pelo New Criticism, tinha como pilar fundamental a “Autonomia” da obra literária: ”... deve-se estudar um poema como um  poema, não com uma peça biográfica ou sociológica, ou como matéria literário-histórica, ou por qualquer outro motivo” (GRAY, Martin, op. cit., p. ).      

           Finalizando sua síntese, Gray menciona o crítico americano F.R. Leavis que, segundo  relata a história da crítica americana, sofreu influência do New Criticism,  se bem que  Leavis não negasse a autonomia da literatura, realçava, contudo,  os componentes “morais” e de  “formação cultural’. (Idem, p. 196). Reconhece Gray  a enorme e duradoura  influência dão New Criticism nos novos hábitos assumidos pela  crítica literária, sobretudo  por  desbancar  o antigo amadorismo de natureza histórico-biográfica dos estudos literários. (Ibidem).  

           Voltando ao que afirmamos em  linha  precedentes acerca da formação  intelectual de Afrânio Coutinho, podemos, agora,  fazer uma inferência: ao escrever A filosofia de Machado de Assis, adotando no  seu estudo de Machado de Assis uma abordagem aplicada ao estudo de influências literárias no ficcionista carioca e elegendo  Pascal como  o principal  vetor de influência, além de Montaigne em menor intensidade e de outros  autores estrangeiros, Coutinho fazia  um tipo de aproximação crítica que já era conhecida em universidades americanas, conforme   declarou   o próprio Álvaro Lins dando  mostras de  estar atualizado com  o que  acontecia  no universo literário  americano.        

            Este fato de ordem  biográfica  demonstra  que Coutinho perseguia  objetivos específicos  visando a realizações que vislumbrava  em futuro  próximo  no plano da sua vida  intelectual  de  estudioso  de  Literatura, mormente no terreno  da crítica e da historia  literária.  Um primeiro passo   decisivo, conviria   reafirmar,  foi a  oportunidade que lhe veio de permanecer nos Estados Unidos, em Nova Iorque, de 1942 a 1947, fazendo  cursos na Universidade de Colúmbia, nas disciplinas da teoria literária,  história literária e crítica literária,                           Destarte,  pôs-se  em contato com  grandes  mestres e scholars norte-americanos e europeus que lecionavam naquele país, com os quais  desenvolveu  sólida  formação  intelectual.   Foi lá também que conheceu o teórico René Wellek e o linguista  Roman Jakobson,  dos quais  foi aluno. Ainda na sua permanência em solo  americano e naquela mesma universidade, realizou curso com  o filósofo  francês Jacques Maritain, de quem traduziu  para o português  as obras Humanismo  integral e Os direitos do homem. Além disso, fez cursos em outras universidades americanas.        

            De retorno ao  Brasil, Coutinho retomou seus planos de atuar no magistério, no jornalismo literário e no livro. Pode-se assinalar que, daí em diante vai,  inaugurar  duas “fases”  em sua  carreira  de escritor. O sentido que damos aqui a “fases” do percurso   intelectual de Coutinho se inspirou no que Eduardo Portella chamou de “momentos.”(Nota de página. Ver PORTELLA,  Eduardo. Em torno de um conceito de crítica literária. In: -- Dimensões I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Brasília/MEC.  3 ed., 1, p.32-40).      

           A primeira fase se circunscreve ao período em que se tornou  o principal propugnador do new criticism no país, caracterizada  pela predominância de uma ação de peleja  renhida tendo por  escopo  central conduzir a um novo rumo a crítica literária brasileira. Para isso, revelou-se Coutinho  um espírito  polêmico, “um notável polêmico,” segundo   as palavras de João Cezar de Castro Rocha ( CASTRO ROCHA,  João Cezar de. Op. cit., p. 75),  intransigente quanto a seus propósitos de atualizar os modos de  se fazer crítica no país. É a fase de combate e de virulência contra a  corrente do pensamento  crítico da época, o impressionismo, ou como  Portella  com muita perspicácia a compreendeu:    "Dois momentos assinalam a evolução presente da nossa crítica literária: o que se identifica pela ênfase polêmica, canalizando todas as suas energias para a liquidação das últimas resistências impressionistas, e o que,  indiferente àquela prolongada escaramuça teórica, dirige-se resolutamente para o texto poético, e procura  produzir sobre ele".(Idem, p. 32). Mais adiante, no mesmo  parágrafo supracitado,  Portela acrescenta: “No primeiro, momento, a preocupação não foi tanto  construir quanto destruir. E destruir violentamente uma crítica caudatória da simpatia para  a qual o subjetivismo era o valor absoluto.(Ibidem). (grifos nossos).        

               A segunda fase volta-se principalmente para a produção das suas melhores obras  e  para a da atividade docente tanto no ensino secundário quanto principalmente  no ensino  superior, a que, pouco depois, se dedicou inteiramente. É a fase construtiva e da vitória sobre o impressionismo.

               A esta fase Portella chama de momento de construção, ou melhor,  de produção, de mostrar serviço, “.. em cima de um universo prático-teórico nitidamente recortado.” O juízo de Portela prova ser  francamente  conciliador,  equilibrado, a ponto de  afirmar   (...) "E na própria A literatura  no Brasil, na sua introdução geral, a serenidade doutrinária se prejudica, às vezes, por certa agressividade que já não tem razão de ser. E não tem porque o momento atual já não é mais o de destruir o impressionismo crítico, porém, o de ultrapassá-lo,  incorporando o que teve de mais válido, e consequentemente, de mais transcendente (Ibidem, p. 33). (grifos do autor). 

               Porém, Portela, na citação que faz de eminentes críticos brasileiros, prudentemente  não menciona o nome de Álvaro Lins, contudo não esquece de reconhecer a importância que o impressionismo teve à história da crítica brasileira: [...] Sobretudo numa literatura,  como a nossa, onde a contribuição dessa crítica vem sendo verdadeiramente admirável, através mesmo de críticos que, fazendo ou não da atividade crítica o seu ofício sistemático, a ela trouxeram páginas surpreendentemente reveladoras. São os casos dos críticos Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Augusto Meyer, Otto Maria Carpeaux, Sérgio Milliet, Antonio Candido, Olívio Montenegro, Roberto Alvim Correa, Wilson Martins. É o caos principalmente de Alceu Amoroso Lima.(Ibidem)    Combate aguerrido:   a primeira fase.  A fase primeira, já anunciada na seção anterior deste capítulo, à semelhança das vanguardas  artística e dos movimentos literários de renovação  que sempre acompanharam a história cultural  do Ocidente, foi, no caso de Coutinho,  reagir contra o establishment da crítica literária que, nos anos de 1940 aos anos de  1950, é  conhecido como   o domínio quase  absoluto da impressionismo crítico no país.      

             Coutinho, com todo o reforço de conhecimentos adquiridos nos centros acadêmicos americanos, se via,  assim,  pronto e capaz de lançar as sementes do new criticism ente nós. E veio com toda a força de sua veemência e mesmo virulência, segundo  temos  tido o ensejo de frisar neste estudo, contra os que faziam crítica de rodapé nos principais  jornais do Rio de Janeiro e São Paulo,  seguramente com  repercussão em outras regiões  do pais. Coutinho não poupava ataques   contra não somente os praticantes  da velha crítica subjetivista como também  contra a situação  vexatória da vida literária brasileira, segundo vimos, de forma mais   detalhada no capítulo.2.  Coutinho, como é natural em todo  processo de subversão  de  modos e hábitos  da vida literária e do exercício  crítico, cometeu também  alguns excessos no calor da querela e um dos seus principais rivais, conforme já ressaltamos neste estudo, foi  Álvaro Lins.

              É dessa fase de polêmica que resultaram os artigos de Coutinho reunidos nas obras Correntes cruzadas, No hospital das letras, Da crítica e da nova crítica e, num estágio menos mordente,  na obra Crítica e críticos. Porém, o ciclo da reação de Coutinho pode remontar ao ano de 1943. Mesmo  durante sua estadia  em Nova Iorque, enviava artigos que  foram estampados em jornais do Brasil.  Se sabíamos que entre os dois êmulos,  Lins e Coutinho,  havia o abismo da discordância de princípios de militância judicativa e de ideias estético-metodológicas,  também sabíamos que, com o tempo,  a querela entre os dois – pode-se aventar esta hipótese – já não  se situava  unicamente no desforço pessoal, ou da mera animosidade resultante do calor da polêmica.      

               Grande parte da obra de Coutinho, ou seja,  da fase de combate aguerrido, não obstante seja escrita com a intenção polêmica, ficou  muito mais concentrada na doutrinação da “Nova Crítica,” na demonstração de que, para a época, o mais coerente seria um desvio de rota da crítica brasileira, que, para ele, teria que passar do amadorismo de lidar  com o exame das obras literárias e passar para os novos  postulados de uma crítica centrada nos elementos intrínsecos, na autonomia do produto da imaginação, em suma, num olhar para o texto  literário, não mais subordinado aos elementos extrínsecos.   

              Quer dizer,  reconhecer a literatura na sua  natureza  autotélica,  ergocêntrica,  poética, aristotélica, literatura como mímesis da lição aprendida com  a Poética de Aristóteles que, para  Coutinho,  era fundamento de toda  perquirição do fenômeno  literário. Naquela conferência originalmente   proferida em Salvador e, depois,  publicada em opúsculo, com o título  A crítica,  ensinava Coutinho sem hermetismos  de exposição,  conforme era característico de seu  estilo de escrita, seja na crítica, seja no ensaio, seja na condição de historiador, seja no  artigo de jornal. Na simplicidade de apresentar considerações teóricas,  Coutinho   sintetiza os dois componentes   essenciais dos princípios da Nova Crítica:  "Os elementos extrínsecos são: - o meio, a raça, em que o autor nasceu, a  geografia, o autor, enfim, a língua, uma série de elementos sem os quais  não se pode fazer a obra de arte literária, nenhuma literatura pode existir, Mas esses  elementos são comuns à obra de arte literária em geral, como  às outras formas de vida. Qualquer forma de vida surge nesses elementos".

            Quer dizer: - as formas de trabalho, as formas de convivência, são todas  fenômenos da vida que têm com a Literatura esses elementos comuns. Ao passo que na Literatura, na obra de arte, há elementos que são específicos da   obra de arte, só ela os possui. É o que se chama os elementos  intrínsecos, os elementos propriamente  literários, os elementos estéticos. São, no romance, a técnica de narrar, a ordem da narrativa, uma série de elementos que são específicos: só o romance possui, só a obra de arte literária possui – nenhuma outra forma de vida possui esses elementos. Tanto assim é que esses elementos são específicos, são os elementos intrínsecos, os elementos estéticos, propriamente estéticos (COUTINHO, Afrânio. A crítica.  Ensaios – Série Miniatura. Salvador: Livraria Progresso Editora/Universidade  da Bahia, 1957, p.37-38).  (itálicos do autor).                          

             De resto,  as reflexões de Coutinho quanto à explicitação dos elementos  extrínsecos e intrínsecos, por ele largamente  repisada, não se colocaram no Brasil de forma facilmente aceitas. Lembremos  de que Antonio Candido, na obra Literatura e sociedade, no capítulo inicial, de título “Crítica e sociologia,”  discute,  em chave de crítica estético-sociológica, mas muito distante de qualquer  condicionamento  operativo impressionista, as relações entre  “aspectos” da realidade e a obra literária. Em síntese,  traz à baila os conceitos que, em sentido geral, correspondem ao que Coutinho denomina  elementos  extrínsecos e intrínsecos.

            Candido chama-os externos e internos; os primeiros fariam parte  da dimensão social; os segundos,  da dimensão literária. Se levarmos  para  o que Coutinho  define como   unidade da obra  literária, da lição do new criticism, ou da Nova Crítica,  as divergências praticamente não existem.  Porém,  Candido se comporta   teoricamente diferente e, convocando    os termos “texto” e “contexto,”  advertia que, na época  da escrita do seu ensaio,  “.. a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas ...” e que, com tal,  a obra só seria  entendida pela fusão do texto e contexto. Isso o leva, mais adiante, do mesmo parágrafo,  a afirmar que o “externo” se torna” interno.”

              As ponderações de Candido – convém salientar – são, nesta visão do ensaísta  atrelada a  uma “interpretação  dialética.”  No penúltimo  parágrafo do  seu ensaio, Candido acena para um possível diálogo com  seu tempo cultural no domínio da crítica literária:    "Outro perigo  é que a preocupação do estudioso com a integridade e a autonomia da  obra exacerbe, além dos limites cabíveis, o senso da função interna dos elementos, em detrimento dos aspectos históricos, - dimensão essencial para apreender o sentido do objeto  estudado." (CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade:  estudos de teoria e história literária. 7 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, , 1985, p.3-8). 

              Essa alteração epistemológica na crítica literária tem seu nível de aprofundamento nos estudos incansáveis que  realizou na Universidade de Colúmbia, fato já referido por mais de uma vez neste estudo em virtude da pertinência que teve no percurso crítico de Coutinho. Essa mudança de compreensão da obra literária, traço da objetividade do new criticism, como novidade no pensamento crítico  nacional, em posição  antagônica  ao subjetivismo anatoleano, saint-beuveano, a todo  tradicionalismo   crítico  taineano, evolucionista,  decimononista do século  XIX, é fruto do que Coutinho  costumava chamar de scholarship, base do conhecimento erudito da tradição combinada   com os avanços  dos estudos literários dos  tempos modernos naquilo  que já ofereciam os centros europeus de alta cultura e as grandes universidades americanas.

               Toda essa disponibilidade advinha do que Coutinho defendia como a  ruptura de uma crítica que já estava sendo superada nos  grandes centros mundiais. E não pensemos que, nos Estados Unidos,  a mudança entre a velha  crítica  tradicional  foi  uma operação fácil. Lá, assim como no Brasil,  houve escaramuças de críticos  que cerraram fileiras contra o new criticism. O próprio T.S. Eliot foi vítima de incompreensões  na aplicação e na divulgação  do new criticism. Eis o que Coutinho informa  a respeito  da resistência de autores  americanos ao new criticism: Em toda parte, a reação contra a nova crítica mobiliza precisamente os corifeus do impressionismo, seja na  forma legítima, seja nos seus descendentes, os comentaristas do ‘review,’ que a isso reduzem a crítica, como um J. Donald Adams, com o seu quartel-general estabelecido no importantíssimo suplemento do New York Times, e de onde saíram talvez as mais venenosas  flechadas às novas tendências da crítica. Apoiados em pontos de vista  do liberalismo crítico  tradicional ou então do historicismo é que se têm  levantado contra a nova crítica um R. Hillier, um Douglas Bush, um Karl Shapiro, e diversos outros. Não faltam adversários em todos os centros  intelectuais. Os Estados Unidos são a fortaleza do conservadorismo e da reação no particular (COUTINHO, Afrânio. Da crítica e da nova crítica, p. 105).

           Daí a razão de, em artigos  doutrinários, propugnar pela renovação  crítica não como mera subserviência à Europa e aos Estados Unidos, mas como  necessidade urgente dos novos tempos que se iniciavam no pais no âmbito dos estudos literários e na práxis da crítica e do ensaio, assim como na conveniência de implantar outras disciplinas importantes no meio universitário, como a teoria literária, a literatura comparada, a história literária  e, num estágio mais  adiantado, a ciência da literatura. 

             Por outro lado,  os ataques contra suas ideias de renovação foram igualmente veementes e duros. Por serem julgados formalistas os princípios da Nova Crítica, priorizando o exame da obra  literária nos seus aspectos intrínsecos,  formais e relegando a segundo plano os elementos  extra-literários, os opositores se puseram frontalmente hostis como foi o exemplo do crítico e tradutor Antônio Houaiss ao enxergar na pregação de Coutinho  algo equivalente à “castração” da literatura e do Brasil” (Apud SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira,  p. 639-640).

             Veja-se aí até que ponto, em dado momento histórico, pode ser levado um intelectual de reconhecida competência a  assertivas não bem fundamentadas  quanto aos objetivos da campanha de Coutinho  para  ver  aplicadas no país as suas ideias de renovação  crítica. Nos quatros livros mencionados, ou seja,  Correntes cruzadas, No hospital das letras, Da crítica e da nova crítica e Crítica e críticos estão  consubstanciadas as principais discordâncias de Coutinho quanto ao que no país lhe parecia uma vida intelectual  já envelhecida, estagnada e, portanto,  carecendo de um novo alento, reformador, de ”uma limpeza do terreno,” enfim, de uma  modernização  tanto da vida literária em franca deterioração moral e de  ausência,  muitas vezes, de qualidade estética de sua produção literária, quanto da crítica  que, na maior parte de seus praticantes,  estava presa ao que David Daiches denominou “o borbulhar romântico.” (DAICHES, David. Op. cit., p. 140).

             Cumpria,  por isso,  a Coutinho  lutar pelas transformações e para dois ambientes iria lançar  suas setas de reação:  contra o que chamou  de “comédia da vida literária e contra o impressionismo exercido sobretudo nos rodapés de jornais. O primeiro já comentamos neste estudo; o segundo, detalharemos  agora. É preciso elucidar um fato relevante. Coutinho aprofundava  o seu proselitismo da Nova Crítica  expondo nas citadas obras  polêmicas o que veio a ser a nova corrente crítica que, nos seus fundamentos mais  decisivos, não se diferenciava das lições aprendidas nos Estados Unidos e,  de regresso ao país, na continuidade de seus estudos e  investigações dos métodos e aplicações que deveriam nortear os adeptos representados  pelas gerações de críticos com formação, em geral, oriunda dos cursos de Letras, realizados no país,  ou, ainda e alguns casos,   no exterior, como foram  os exemplos de Eduardo Portela, Mário Faustino e, mais próximos de nós, Luiz Costa Lima, Silviano  Santiago,  Roberto Schwarz, José Guilherme  Merquior, entre outros. Largamente familiarizado com os principais críticos do new criticism anglo-americano, acompanhando, passo a passo,  os lançamentos de novos estudos e revistas  aparecidas nos países sobretudo de língua inglesa, Coutinho,  no batente semanal do Diário de Notícias do Rio de Janeiro, pelo menos durante duas décadas, foi a liderança maior da Nova Crítica considerada em suas diferentes   vertentes de métodos, porém todas  mostrando-se  eficazes na prática crítica e na teoria  crítica de tal  sorte que, em termos gerais, estavam bem distante do impressionismo.

          O que,   todavia,   unia as novas gerações  de críticos,  a despeito de divergências de abordagens teóricas,  era o fato já tão lucidamente  anunciado por  Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde): “O novo elemento é o  estilo,  a forma,  de modo que é, afinal,  na linguagem, no estudo da linguagem como  síntese e finalidade de toda obra literária que se concentra a crítica formalista.”  AMOROSO LIMA,  Alceu. Quadro sintético da literatura  brasileira. Rio de Janeiro: Edições de Ouro,  149). Naturalmente, os ataques de Coutinho contra os críticos de rodapé e em defesa da nova crítica receberam também o revide dos adversários em várias instâncias exegéticas. Coutinho  fora  tachado de americanófilo, de inimigo dos rodapés, de que  da Nova Crítica  fazia um abordagem levando em conta apenas a dimensão formalista com base na unicidade do  objeto literário.

             Por outro lado, na sequência de seus artigos em jornal e, depois,  coligidos  naqueles quatro livros já citados,   frutos de sua  doutrinação crítica,   procurou rebater os adversários e o fez com a convicção de que as censuras  que se  lhe imputaram  não resistiriam  ao seu programa de renovação: Um primeiro equívoco  é pensar na Nova Crítica em termos de unidade. Não há dúvida  de que a Nova Crítica possui um caráter de movimento geral  de intenção  renovadora no que respeita aos estudos literários do presente e do passado. Há inúmeros postulado comuns, como a reação anti-historicista e anti-biográfica. (COUTINHO, A. A crítica e críticos, p. 110). 

              Grande parte de sua  defesa se insere em alguns  estudos mais amadurecidos da Crítica e da nova crítica e da Crítica e críticos. É curioso notar que,  não obstante tratar de temas semelhantes e, por isso,  mostrar-se redundante,  essa forma  de  voltar aos temas já repisados e em   círculos   se exprime,  de obra para obra, com mais  verticalidade, vigor argumentativo, concisão estilística e, o que é mais  sintomático e positivo, com  uma sede constante de ser um  scholar  atualizado nas questões atinentes à Literatura, à Educação e à Universidade.  Por exemplo, em obras como Universidade, instituição crítica (1977), O processo da descolonização (1983) e Impertinências (1990), ali  está o  velho crítico atento, rejuvenescido intelectualmente, ainda  disposto a discutir temas  que lhe foram   sempre muito   caros como  a literatura brasileira,  a Nova Crítica,  a literatura  comparada, o ensino de  Letras, a crítica literária, o problema da “língua brasileira,” a educação, sendo de destacar na obra Impertinências, acima-citada,  numa espécie de  síntese autobiográfica intelectual,  intitulada  “Crítica de mim mesmo” – admirável relato, depoimento pleno de  sinceridade e emoção de uma   vida de escritor que nunca hesitou na opção que fez na vida de ser o que  foi,  um crítico, um historiador,  um pesquisador pertinaz dos estudos  literários e sobretudo da literatura brasileira.

             Espécie da “Itinerário de Pasárgada,”   esse depoimento abarca toda uma vida  de lutas, sacrifícios e de conquistas,  de  incompreensões, mas também  de adesões às suas ideias e às suas concepções no domínio da crítica literária e da renovação  dos estudos  de Letras no país. Se algumas de suas  ideias e conceitos sobre a arte literária podem ser  controversos e discutíveis,  isso faz parte do debate  elevado  do conhecimento  humano de todas as épocas da História e da Cultura. Sem nenhuma intenção nossa de fazer trocadilho,  esse depoimento que  trata da formação intelectual  de Coutinho passa a ser tanto um documento quanto um monumento na história do pensamento  crítico  nacional.

            Para ilustrar,  vejamos uma  passagem  desse texto,   como observou Eduardo Portela,  o título deste livro é uma definição do espírito contestatório e revisionista do autor na área literária. Constitui, para o grande crítico, um fiel retrato de seu temperamento, sua vida e  atuação intelectual, assim como da família espiritual a que pertence, bem representados nestas páginas, espécie de autobiografia intelectual. (COUTINHO, A. Impertinências. Rio de Janeiro:  Tempo Brasileiro; EDUFF – Universidade Federal Fluminense,  1990, p. 14-15). (grifos nossos)  Nas obras Crítica e da nova crítica e Da crítica e críticos, Coutinho não propugnava por uma nova crítica dissociada por inteiro  dos elementos extrínsecos. O que advoga é o grau de importância que cabe ao crítico  atribuir no estudo de uma obra literária, ou seja,  na Nova Crítica os valores intrínsecos, estéticos  se sobrepõem aos extrínsecos. Os últimos  são apenas complementares, mas não deixam de fazer parte da “unicidade da obra literária,” para empregarmos uma expressão de Coutinho.”

           O  trecho  seguinte  explicita  melhor  esse tópico: A questão é de ênfase [a crítica  oitocentista, genética,  historicista, extrínseca]: enquanto uma colocava a mira sobre os fatores circunstantes  e ambientais, o foco de interesse da nova é o núcleo intrínseco do fato literário. A primeira era histórica, a atual é estética. Um ponto é, todavia,  fundamental na  compreensão: a Nova Crítica não isola o fato literário como um bólide no espaço,  mas o encara nas suas relações com os outros fatos da vida, sem contudo sacrificar o que deve ser o ponto precípuo da análise crítica, isto e,  o núcleo intrínseco. COUTINHO, A. Da  crítica e da nova crítica. Op. cit., p. 96-97).

            À vista disso, Coutinho não concebe o produto da imaginação, o poético,  como um  constructo que nasce por geração espontânea. Vida e arte se completam e, neste ponto, ele se afasta de qualquer dogmatismo   ou radicalismo, mesmo vindo de alguma vertente   da Nova Crítica,  que renegue  componentes  culturais,  históricos,  sociológicos,  psicológicos. Por isso,  toda contribuição que venha  subsidiar a compreensão da análise e julgamento de valor em literatura não se pode negligenciar.

           Na defesa e propagação da Nova Crítica teve sempre em vista  que ela não representava uma corrente do pensamento crítico isoladamente, um mero monopólio doutrinário  e teórico de procedência anglo-saxônia. Para  Coutinho, a Nova Crítica   fazia parte de um vasto movimento diversificado e universal que ia se espraiando pelo Ocidente. Demos a palavra a  Coutinho: ”O movimento [da Nova Crítica] é, portanto,  internacional, não depende de nacionalidade nem culturas regionais, em  que pesem às contribuições locais, diferentes em aspectos, mas de mesmo  propósitos gerais”.(Idem, p. 134).

             Urge reafirmar uma ponderação diante de movimentos do pensamento  crítico daquela época: não só nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Europa em geral, a reação a correntes críticas   antecessoras   em todos os tempos da arte literária, e possivelmente de todas as artes em geral,   só se tornaram vitoriosas após muita resistências e controvérsias, e até mesmo  de  resistências que teimam em se mostrar monolíticas ainda que tenham sido ultrapassadas por novas tendências, o que levou o teórico  René Wellek  a essas observações digna de atenção  no tumultuado e multiforme domínio da crítica literária do século XX:    "Naturalmente,  mesmo hoje muita crítica  não é nova: estamos cercados de sobrevivências, de sobras, de regressões a velhas fases da história da crítica.  [..] Em todos os país  há escritores,  e muitas vezes  bons escritores, que praticam esses métodos característicos da crítica do século XIX: apreciação impressionista,  explanação histórica e comparação realista[...].  As novas tendências da crítica, sem dúvida,  têm também  raízes no passado, não são sem antecedentes e não são absolutamente originais". (WELLEK, René. Conceitos de crítica. Introdução e organização de Stephen G. Nichols,Jr. Trad. de Oscar Mendes.  São Paulo: Cultrix, s.d., p. 295-296).

               Por conseguinte, julgamos serem as correntes críticas realidades culturais que  se distinguem por durações provisórias,  as quais,  com o passar do tempo e de novos aportes resultantes de pesquisas e investigações mais avançadas, são surpreendidas por outras tendências e estas,  por sua vez,  vão  reagir contra uma outra, numa  espécie de dinamismo multiplicador de visões e métodos diferentes. Umas e outras podem permanecer vivas por muito tempo e concomitantes, mas decerto um dia  serão superadas. É pensando nessa tendência à multiplicidade de movimentos do pensamento crítico que  nos vem à mente aquela declaração de – e novamente nos apoiamos em  Wellek -,  em tom  de censura e exaustão a  propósito de certo desvirtuamento dos objetivos inerentes à crítica literária:        

            "A cada instante a crítica recente desliza para psicologia, a sociologia, a filosofia e a teologia. Somente aquelas que aderem à tradição idealista alemã na versão kantiana ou coleridgeana, ou aquelas que redescobrem Aristóteles, ainda têm uma compreensão da natureza da arte e reconhecem a necessidade de uma estética e o ideal do estudo da literatura como  literatura.(Idem, p. 294).  

A ação construtiva e a vitória sobre o impressionismo. 

         Ao introduzir os princípios da Nova Crítica, Coutinho revelou-se  um estudioso dessa questão não  com uma atitude de querer importar ou transplantar um approach crítico por mera vaidade ou pretensão de superioridade de conhecimentos hauridos  fora do pais. Ele tinha  metas a serem cumpridas em dois  passos, na renovação da cultura literária brasileira, com o objetivo de  demolir o status quo do impressionismo crítico, que, então,  ainda estava  em alta, com também  reformular drasticamente   o ensino de literatura, os padrões vigentes, ou melhor, a falta de padrões de orientação  no ensino de literatura  brasileira e portuguesa.                           Recorde-se  que, pelo país afora,  o ensino de literatura brasileira, portuguesa  e mesmo de língua  portuguesa,  era improvisado, obsoleto,  tanto no curso secundário  quanto, depois, com o surgimento  dos curso de Letras. Havia programas oficiais,  portarias, recomendações etc.  mas faltava a um professorado   a didática do ensino, metodologias,  enfim, faltava o essencial,  a  formação de professores naquelas áreas. Por exemplo,  no estudo de literatura,   as aulas  eram  apenas expositivas, sem haver  a necessária aplicação de trabalhos  de análise literária,  de rudimentos de teoria literária.    

             O que imperava era o domínio de professores não preparados profissionalmente para  se dedicarem a aulas  bem  desenvolvida,  criativas e atualizadas. Muitas vezes,  o corpo docente dos curso secundários era  constituídos de professores formados em outras áreas. Portanto,  eram amadoristas, autodidatas, se bem que deles havia muito talentosos, cultos, sobretudo nos centros mais atrasado do país, onde os curso de Letras surgiram com muito  atraso se comparados às grandes capitais.  

           Coutinho tinha, de volta ao país, seguramente  refletido  sobre tudo isso. Ele próprio tinha sido vítima das deficiências:  “Inconformado com as deficiências da sua formação intelectual, na terra natal, a Bahia, procurou o autor aperfeiçoar-se nos Estados Unidos...”, confessa no  texto “Crítica de mim mesmo”.(COUTINHO, A.  Impertinências. Op. cit., p. 14)  Foi pensando nessas carências todas que  ele estava determinado em  modernizar, atualizar os fundamentos  de nosso ensino  secundário e universitário.

           Foi o que fez, e isso lhe é  uma marca de desbravador, de atitude  pioneira  de nossos estudos literários,  da pedagogia  da literatura. Ele bem sabia que a nova  abordagem nos estudos literários seria útil e necessária, mas também  tinha convicção de que haveria que flexibilizar o método importado, adaptando-o às condições de nosso meio literário, de uma país  com grandes diferenças  de mentalidade,  por exemplo, em relação aos  Estados Unidos e à Europa.   O texto sofreria  ajustes  do contexto histórico, com outros condicionantes em vista. O seu desiderato de avançar  em certas questões de real valor para os estudos de literatura  brasileira, com o tempo e o amadurecimento e, com o background de conhecimentos adquiridos em universidades americanas, abriu- lhe mais a mente no que tange ao que poderia  concretizar no país  no campo da investigação e da pesquisa, para época, de ponta.  Daí haver  se aprofundado  nos estudos do Barroco alicerçado pelos  estudos de Wöfflin, e, como ele próprio  diz no seu “Crítica de mim mesmo, ”   “... procedeu a uma revisão da literatura  seiscentista, erradamente chamada ‘clássica’, aplicando  o conceito à reinterpretação das figuras brasileiras dos séculos XVI a XVIII ...”  

              Foi, assim, a partir dos seus  estudos do Barroco   que percebeu  que  o  traço deste estilo literário era carfacterístico  da “alma brasileira,”  que repercutia  em diferentes  manifestações culturais: artes plásticas, visuais, música, literatura,  festas populares, costumes.(COUTINHO, A.. Impertinências. Op. cit., p. 15). As pesquisas  do Barroco lhe renderam  uma tese,  Aspectos da literatura barroca,    depois,  publicada em livro. O que havia  investigado sobre ese estilo lhe deu uma nova  perspectiva histórica de compreensão da literatura  brasileira, o fez pensar em delinear uma nova história da literatura brasileira, que resultaria na sua conhecida  obra, A literatura no Brasil, idealizada e planejada a partir de 1951,  portentoso trabalho coletivo por ele organizado. Esta obra,  fundamental à bibliografia da literatura  brasileira,  teve    seu primeiro volume editado em 1955, e seu último volume, em 1959,  perfazendo   seis volumes.

               Aquela  obra,  até o ano de 2004, editada pela Global,  de São Paulo, já contava com  sete edições.( COUTINHO, Eduardo F. Op. cit., p. 17). Obra  ambiciosa empreendida  por uma  equipe de especialistas, mobilizando  uns 50 colaboradores de diversas orientações  críticas.  Obedecia, no entanto,  a uma orientação escrupulosa de Coutinho,  que determinou a cada  colaborador  um estudo, na medida do possível, sem fugir ao  critério  estético. Vejamos como Afrânio  Coutinho  explica  os princípios  a que a equipe deveria  se ater tanto quanto possível na elaboração de cada ensaio: Em comparação com obras anteriores do gênero, ressalta a olhos vistos a novidade de seu plano e de sua base conceitual, tal como se indica na introdução geral devida ao seu   organizador e diretor: um princípio diretor de natureza estética que é o conceito  estético ou poético da literatura, literatura concebida como arte, a arte da palavra, produto da imaginação criadora, com valor e finalidade em si mesma,  dotada de composição específica e elementos intrínsecos [...] (COUTINHO, A. Crítica e poética. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1968, p.148).

            Para cada volume Coutinho preparou uma  introdução.  As “introduções,” criteriosamente  preparadas,   entusiasmaram tanto o  crítico e pensador Tristão de Ataíde que, com justiça,  as considerou um feito grandioso, um “epoch making” na  história editorial brasileira. A reunião dessas introduções resultaram numa outra  obra grandiosa até hoje,  que é a Introdução à literatura brasileira. Esta obra mereceu uma tradução para o inglês,  a cargo de Gregory Rabassa e foi publicada pelo Institute of Latin American Studies, Columbia University Press, New York & London, 1969, assim como  foi também  traduzida para o espanhol, segundo informa Eduardo F. Coutinho.(COUTINHO, Eduardo  F. Afrânio Coutinho. Série Essencial.  Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2011, p. 17).

             Obra de grandes méritos, representa,  junto com Aspectos da literatura barroca e A tradição afortunada, em nosso juízo, as três melhores  obras de Coutinho. Até hoje,  nenhum outro historiador brasileiro   conseguiu, como o fez Coutinho,   preparar uma bibliografia  tão  magnífica  quanto  à da Introdução da literatura brasileira. As três obras citadas  confirmam, pelo menos para  o autor deste  trabalho,   o mais alto  nível de amadurecimento  do autor tanto ao nível de escrita quanto de seriedade  e consciência  de realização  literária e de pesquisa acadêmica. Outras pesquisas ocuparam a mente de Coutinho, como a questão do nacionalismo na literatura brasileira, da qual resultou  a obra A tradição afortunada que da crítica  abalizada  de Fábio Lucas recebeu o seguinte comentário num ensaio sobre a crítica moderna: A esse propósito, o mais minudente estudo da independência literária brasileira pode ser encontrado no livro  A tradição afortunada ((Rio, 1968) de Afrânio Coutinho, fruto de pesquisa metódica e de obstinada campanha   intelectual. Tal volume de informações ali contidas e de ideias necessariamente polêmicas que merece análise à parte. O objeto do autor foi essencialmente valorizar a civilização brasileira,  fixar um tema e uma posição para a historiografia literária nacional,  de modo especial, dar realce à contribuição, a esses mesmos fins,  prestada pela nossa crítica do século XIX. (LUCAS, Fábio. Fronteiras imaginárias – crítica. Rio de Janeiro: Cátedra/MEC,  1971, p. 37).

          Alguns autores, porém, veem nesta obra,  apesar de não lhe negarem  o grande valor, uma contradição de Coutinho, por se mostrar um defensor da Nova Crítica e empreender um trabalho  nitidamente  historicista..  Acontece, que, à altura da publicação dessa obra, Coutinho  percebeu que o melhor  caminho de abordar  o tema seria pelo viés historicista, de vez que a historiografia aplicada ao tema do nacionalismo estaria dentro de uma perspectiva, não mais submissa à historiografia  caudatária da portuguesa e de seus  seguidores brasileiros, como um Varnhagem, adepto de uma historiografia  oficial submissa culturalmente a Portugal. Varnhagen deixou  discípulos que  lhe seguiram a orientação de caráter colonial.  Não haveria, pois,  a contradição alegada  porque Coutinho tinha uma  visão arejada, não monista,  sobretudo na fase da preparação de A tradição afortunada: "O estudo da literatura tem deve ser  feito de maneira global, através de um caleidoscópio, por todos os ângulos. Nenhuma obra é igual a outra, por isso exigem-se métodos de abordagem diferentes, de acordo com essa peculiaridade, É a morte dos monismos, que só veem a literatura por um aspecto, julgado o principal. E não há em literatura aspecto principal. Todos são válidos e importantes. (COUTINHO, Impertinências. Op. cit., p. 154).      

             De outra parte,  Fábio Lucas,  ainda se reportando à obra A tradição afortunada,  e ao discutir  a questão dos elementos extrínsecos da obra literária, nota com  argúcia que tais elementos, que chama também de exógenos, não podem ser  descartados da crítica literária ainda daquela crítica,   segundo ele,”.. mais obstinadamente tributária do close reading.(LUCAS, Fábio. Op. cit., p. 73-74).   Tal posição desse crítico   é indicativa  de uma visão partilhada  com o pensamento  crítico de Coutinho e às opção deste pela abordagem  adotada  na escrita de A tradição afortunada.

              Lucas nega que Coutinho tenha se afastado  de  sua  crítica de base estética e do princípio de autonomia  da obra literária. Em outras palavras,  não vê no desenvolvimento   da exposição historicista de Coutinho  uma  “.. ruptura  do seu autor com  o se  passado de defensor da ‘nova crítica’, nem sequer uma concessão”. (ibidem). Para Lucas Coutinho  expressa  sem temores um compromisso   com o sentimento  de  defesa  da ideias de nacionalismo de afirmação da  autonomia da literatura  brasileira, num ensaio,  segundo  Lucas,  realizado pelo critério  periodológico, uma   concepção de historiografia  literária  que Coutinho já vinha utilizando desde os seus estudos do Barroco, da publicação de Introdução à literatura brasileira (1959) e  dessa se  estendendo à obra O processo da  descolonização literária (1983) (Cf. LUCAS, Fábio. Op. cit., p. 74).        

             Da mesma maneira,  cremos que esse “processo de descolonização” tenha também  levado Coutinho às reflexões acerca da questão do conceito de “língua brasileira”   uma vez que o foco de  interesse de suas pesquisas sobre  a “identidade nacional”  como forma de ruptura  de nossa forma de comunicação  escrita e oral em relação à Metrópole  portuguesa. a partir desse conjunto de posições afirmativas de quebra de submissão  a Portugal, literária,  linguística e politicamente considerada, é possível que sejam os móveis  que  levaram Coutinho a cada vez mais  se concentrar  em temas e propostas teóricas  enfatizando  formas de pensar  nossos  problemas  culturais por um anglo   especificamente  brasileiro mas sem  isolamentos  com  as culturas  adiantas do mundo.     Daí  vermos sair de sua pena artigos  bem  indicadores  dessa posição nova e amadurecida: “Por uma crítica  brasileira”, “Que é língua brasileira?,” “Por uma filologia  brasileira”, todos  inseridos na obra Impertinências. Outros dois  temas que lhe absorveram a atenção foi o de periodização literária   e o problema da “língua brasileira, este último bastante discutível. Até hoje, pelo que temos notícia, ainda permanece  indefinido e  não  resolvido.

             Vejamos, em síntese, cada um. O tema da periodização foi um avanço  nos estudos literários e, em particular, na historiografia brasileira. Coutinho há muito vinha refletindo sobre  ele, assim como  havia  assimilado  lições de René Wellek e Helmut Hatzfeld,  quando da sua  permanência na América do Norte. O velho esquema empregado  por historiadores brasileiros  pautava-se por formas  cronológicas  de enquadramento  de escolas literárias, ou por divisões meramente  historicistas, como o fez José Veríssimo e outros.

               Data essa preocupação concernente  à divisão de períodos tanto da   história geral quanto da literária dos tempos em que ainda estava em Salvador  e lecionava história. Aplicou o conceito de periodização à sua obra  Introdução à literatura brasileira. Substituiu o historicismo  das cronologias ou  conceitos de ordem  político-histórica que vigoraram no país por muito tempo por concepções ligadas à estilística.  Na obra Introdução à literatura brasileira,  dedica, no texto “Introdução Geral,” setenta e cinco  páginas discutindo minuciosamente problemas  de alta relevância aos estudos de historiografia  literária.

                É um vasto e admirável  painel,  no qual o autor  nos transporta para dentro do espaço  do fenômeno literário visto em toda a sua complexidade e em todos  os seus objetivos  de realizar um história literária atualizada, que ressalta, a par da organização e metodologia que presidiu à escrita   da obra Introdução à literatura brasileira, discutindo tópicos de profunda significação aos estudos literários  e culturais em geral,  tais como a “Questão da História Literária”,  “As Soluções Brasileiras”,  a “Periodização,” “Definições e Caracteres da Literatura Brasileira”, “Influências Estrangeiras," ”Conceitos e Plano Geral da Obra.”    Os diversos  períodos  de estilos literários  brasileiros, estudados  não pelo desenvolvimento  historicista, mas pela compreensão dos estilos que se formam na universalidade dos fenômenos  literários,  nas mudanças de um estilo individual ou  estilo de época.

               A periodização - ponto crucial das preocupações teóricas  de Coutinho  - desde os tempos  da mocidade,  tem, enfim, com objetivo agrupar  traços  de uma  forma literária não subordinada à mera datação  do surgimento de um escritor, mas procura  reunir  traços específicos  de linguagem e de ideias,  de formas de escrita,  de campos culturais   diversos e sem marcas de preconceitos com a alta cultura e a cultura popular que, independentemente da tradição  cronológica, podem identificar  escritores  de tempos históricos diversos com  as mesmas características   e a mesma visão  da vida e da  literatura.  Ou seja,  não vê divididas    ou estanques   as formas literárias, os gêneros,  que podem ultrapassar  épocas posteriores da História. E, assim,  ficam  tipificados nessa  história  literária os seguintes estilos: Barroco, Neoclassicismo, Arcadismo, Romantismo, Realismo, Naturalismo, Parnasianismo, Simbolismo, Impressionismo e   Modernismo.

             A sua proposta de história literária atinge duas faces que se completam: a literária sob o primado da estética e da autonomia  da criação artista e a crítica literária que lhe corresponde. O problema da “língua  brasileira”, que tem suas raízes nas discussões de José de Alencar, no Romantismo,   depois, no Modernismo, com Mario  de Andrade, e ocupou  a atenção de  filólogos e escritores e,  desde então,  tem sido objeto de  reflexões de  críticos brasileiros,  como  o próprio  Álvaro Lins, o jornalista  Barbosa Lima Sobrinho, o linguista e filólogo  Sílvio Elia e, entre outros,  Afrânio Coutinho  que,  em diversos  artigos,  sempre retornava a discuti-lo e  formulava a sua defesa com muita tenacidade. Propunha  a designação de “língua brasileira” para diferenciar-se da língua portuguesa do além-mar.  Esta vexatio questio  permanece ainda sem solução.

          Em nosso entender,  a questão  não oferece tanta bulha e é na língua inglesa que, em princípio, vemos uma  maneira de contornar  o problema, i.e., no inglês costuma-se  fazer a distinção terminológica de forma prática: inglês  britânico e inglês americano. Esta lingua franca, instrumento  internacional  há tanto tempo, que saibamos,  não tem  provocado  tanta celeuma. As diferenças básicas  fonéticas,  ortográficas e de vocabulário, em que este último apresenta  palavras diferentes para significações iguais, ou de idiomatismos  para os quais  o inglês oferece uma riqueza  impressionante, além das gírias que se multiplicam com alguma rapidez, até agora não provocaram   tantas discussões acaloradas.

              Talvez aqui se possa falar de um caráter democrático da língua inglesa que o português não possui. Cremos que os argumentos  de Coutinho  sejam mais  motivados por implicações do uso  culto  oral e escrito da língua portuguesa, e especificamente, do  estilo de linguagem  de alguns  escritores  brasileiros contemporâneos que não fazem  distinção  entre a linguagem  da ficção ou da poesia no que tange à oralidade, da “estilização”  da língua para efeitos estético-literários. Isso se pode ver em escritores como  Guimarães Rosa, João Antônio, por exemplo. (Cf. COUTINHO,  A. Impertinências. Op. cit. Ver nessa obra o tema da “língua brasileira” discutido com muito vigor  e espírito de defesa na III Parte sob o título “Ainda e Sempre a Língua Brasileira”, p.165-205).

           Outra    tarefa, na área da literatura   brasileira, que mereceu  um atenção especial de Coutinho  foi no campo editorial, um verdadeiro legado à posteridade a ponto de um escritor e ex-professor  da Faculdade de Letras da UFRJ,  Samuel Rogel, ficcionista,  cronista,   poeta,   ensaísta e crítico, haver dito, certa vez, numa crônica,  que Afrânio Coutinho tinha sido um dos mestres brasileiros que praticamente   mais reservou energias intelectuais  de incansável  pesquisador, publicando obras de autores  de  indiscutível valor para as letras brasileiras,  como,  entre  os críticos, Araripe Júnior, Capistrano de Abreu; na ficção,  Machado de Assis, Euclides da Cunha, Raul Pompeia, Afrânio Peixoto,  e, como  organizador da Coleção “Fortuna Crítica,”  conseguiu publicar os seus  cinco primeiros  volumes tendo como  autores: Carlos Drummond de Andrade,  Graciliano Ramos,  Cassiano Ricardo,  Cruz e Sousa e Manuel Bandeira.

                 As  introduções de edições de obras formam uma  vasta produção sua  de natureza  crítico-ensaística digna de ser reunida em volumes de crítica, porquanto tivemos a oportunidade de ler  muitos desses textos e confirmar  a importância que  especialistas  e críticos  deveriam  dar  a essas introduções, estudos críticos  da melhor  qualidade. Para finalizarmos  considerações  sobre a sua produção literária,  queremos  salientar   uma obra coletiva  organizada por Coutinho e J. Galante de Sousa - Enciclopédia de literatura brasileira  - de inegáveis  méritos e de consulta  obrigatória como já dissemos em trabalho de nossa autoria.(Cf..  SILVA FILHO, Cunha e. Breve introdução ao curso de Letras: uma orientação.  Rio de Janeiro: Litteris/Quártica, 2009, p.99). O lado polêmico enfrentado por Coutinho, no plano da reação contra o impressionismo – diga-se melhor,  contra o mau  impressionismo -,  ficara para trás, não obstante esse traço forte e combativo lhe fosse inerente à personalidade de intelectual.

              Agora, seria tempo de  Coutinho  se colocar como um crítico, ensaísta  e historiador, ainda com tempo bastante disponível às realizações  que combinariam a cátedra universitária, as publicações de obras e a sua intensa e contínua participação como educador – no caso dele como pedagogo da literatura na universidade -  estudioso  do ensino e da educação superior, sempre, porém, com aquele rigor crítico e espírito  combativo. Coutinho, já no final das décadas de 1970, 1980, aproximadamente,  compreendia  que a situação  da crítica literária brasileira tomava outro rumo em direção ao que propugnara por, pelo menos, durante   duas décadas. Todo o esforço praticamente  tinha sido benéfico, pois os cursos de Letras já funcionavam plenamente.

               A crítica transferiu-se do rodapé para  a cátedra, revistas especializadas e livros, não se falando da mudanças operada na  mentalidade dos professores universitários que mobilizaram seu aparato teórico assente em métodos críticos de diversas linhas do pensamento estético linguístico,  filológico, cujos desbravadores no Rio de Janeiro foram, para citar apenas, entre outras figuras ilustres,   alguns  nomes de destaque:  Tristão de Ataíde (literatura brasileira),  Joaquim Mattoso Câmara Jr. (linguística),   Augusto Meyer (teoria literária) Eduardo Portella (teoria literária),  Celso Cunha (filologia),  Sílvio Elia (linguística), Ernesto Faria ( latim, filologia), Gladstone Chaves de Melo (filologia), Cleonice Bernardineli (literatura portuguesa),   Roberto Alvim Correia ( literatura francesa, ensaísta)e   Afrânio Coutinho (literatura brasileira, história literária,  crítica literária).

               O jornalismo literário abrigava, agora,   não mais  os “massudos” artigos de rodapés dos anos de 1940 e 1950.  Modernizou-se acompanhando os novos tempos de pressa, objetividade e impessoalidade nas matérias publicadas  em jornais,  em geral,  dirigidos, nas seções sobre literatura (os suplementos literários),  por editores-chefes que passaram a ser jornalistas  profissionais, alguns formados  em Letras, e até com  graus de mestres e doutores,  com esquema de  equipes,  agendas,  contatos internacionais,   reportagens, artigos  encomendados e aprovados,  ou não,  pelos editores e com  intenso  intercâmbio  nacional e internacional, junto a editoras e a complexas engrenagens de caráter   comercial-editorial.

                 Coutinho, nesses tempos mais próximos do final do século passado,  encontrava-se ainda na atividade docente e de pesquisador, num período da vida universitária   intenso, já havia  se tornado um nome acatado no seu papel de educador, de pedagogo do ensino de Letras. Talvez não lhe interessasse mais as canseiras das polêmicas. O que pretendeu mesmo era  devotar-se ao magistério, publicar mais livros e orientar gerações que lhe  pudessem  dar continuidade  àquilo por tanto se empenhara: manter o nível de seriedade nos estudos superiores de Letras, manter atualizado o ensino de Letras,  o currículo dessa área e, ainda mais,  não permitindo que  a universidade se isolasse do contato permanente com os grandes  centros  europeus  e norte-americanos. Essa posição não poderia ser acoimada de  submissão colonialista, mas, ao contrário,  o conhecimento   daquela  época , como o da contemporaneidade ainda mais exigente no que tange à necessidade da intercomunicação   entre culturas. É certo que enfrentara muitas barreiras, sobretudo ideológicas que não viam com bons olhos os caminhos que, na crítica literária e nos curso de Letras, se estavam  abrindo e, por isso,  atacaram o que Nelson Werneck Sodré chamou de “formalismo” do neocriticismo em nosso estudos de Letras.   Os adversários não viam estas inovações cm bons olhos e julgaram que deformariam a crítica literária, por verem nelas a dissociação entre a obra literária e a realidade, ou seja, por entenderem que o formalismo crítico destruiria os valores  humanos e estéticos da Literatura.  Formariam, segundo ele, mentalidades  elitistas, “ ...de pretenso cientificismo”, numa escolástica que [a crítica] distancia cada vez mais do juízo  popular”. (SODRÉ, Nelson  Werneck. História da literatura brasileira, p. 655). Entretanto, a insatisfação e o repúdio de alguns estudiosos mais antigos se deviam ao receio de transformar-se a crítica brasileira numa   espécie de desumanização da Arte por julgar o fenômeno literário apenas como  veículo a serviço da linguística e do Estruturalismo.

              É evidente que a Nova Crítica, ou melhor,  as novas formas de  abordagem da obra literária não trariam só embaraços e confusões para os jovens estudantes  de Letras. Ate hoje,  professores  há que ainda  têm  certo ódio a obras  que foram  obrigado a ler  na época do surgimento do Estruturalismo. Porém, isso se deveu, em nosso juízo,  a maneiras  errôneas  de professores  não suficientemente preparados a fazerem  exposições em aulas sobre o que nem eles mesmo dominavam bem.

               E isso acontecia mais na área da linguística. Todavia,  isso não foi por culpa da Nova Crítica, cujos princípios  não se limitavam a ver na obra literária só a dimensão da autonomia. Coutinho cansou de  afirmar durante anos de  doutrinação que para ele, assim como para muitos  críticos do new criticism americano ou inglês, o exame da obra literária, com foi o caso de F.R. Leavis, não se  detinha apenas na autonomia da literatura, mas também dava  atenção ao “... seu valor na educação moral e cultural.” (GRAY, Martin. Op. cit., p. 196).

             Por esses motivos, não hesitaram em asseverar que alguns críticos hostis ao formalismo crítico, se apostaram no insucesso doa nova crítica, não tiveram sucesso. Não se quer  significar com isso nenhuma adesão cega a alguns defeitos e deformações tanto no ensino de Letras quanto por vezes  nos excessos cientificistas trazidos  mormente a partir do Estruturalismo. Linhas  atrás aludimos à monumental A literatura no Brasil. A realização dessa obra em seis volume e, até o ano de 2004, na edição da Global,  de São Paulo, já contava com  sete edições.( COUTINHO, Eduardo F. Op. cit., p. 17). A realização dessa obra coletiva, reiteramos,   obedecia a uma orientação escrupulosa de Coutinho,  que determinou a cada  ensaísta  a elaborar  um estudo, na medida do possível, sem fugir a uma abordagem estética  

             Como é natural, envolvendo diferentes  críticos e ensaístas que professavam abordagens variadas mas dentro de um sistema de corpus de valores estéticos e exegéticos  modernos, era de se esperar que, no conjunto, aquela  obra  de equipe não resultasse perfeita em todos os aspectos. Contudo,  foi o que de melhor  Coutinho poderia ter escolhido como colaboradores. Lida  por gerações de estudantes, professores e pesquisador de Letras, A literatura no Brasil sofreu críticas de Wilson Martins que, a bem da verdade, também lhe dirigiu  elogios. Martins, velho crítico e historiador, com experiência docente no exterior, Universidade de Nova Iorque, implicou até com o título da obra de Coutinho; no entanto, contraditoriamente, foi a essa obra de  Coutinho  que destinou a mais demorada análise,  o que, em nossa opinião,  foi uma forma de nela  reconhecer  muitos méritos. (MARTINS, Wilson. A crítica literária no Brasil. 3 ed., atualizada, vol. 2. Rio de Janeiro: Francisco Alves / Imprensa Oficial do Paraná,  2002. Ver sobretudo a seção sob o título “A nova batalha de Azincourt”, p.55-118; ver também  a seção “As surpresas de 1968”, p.167-174). Nos anos de 1960, Coutinho  intensificou sua obra de educador numa    missão especial que a si tomou,  que foi a de organizar e elevar o nível de estrutura da vida acadêmica  universitária.

              Neste ponto, seu esforço foi igualmente  notável Conseguiu desmembrar, em 1968, o curso de Letras da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio e Janeiro UFRJ), com a ajuda dos professores Celso  Cunha, Thiers Martins  Moreira  e outros professores, conforme  declarou Eduardo  Coutinho, filho de Afrânio, em palestra  por ocasião de uma homenagem comemorativa ao  centenário de nascimento de Afrânio Coutinho, prestada  ao velho crítico no Instituto de Letras da UERJ, através de seu Departamento de Letras. O desmembramento do curso de Letras da Faculdade  de Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil,  e, como dissemos acima, da  sua  consequente  transformação na Faculdade de Letras  da UFRJ foi uma iniciativa  pioneira no ensino de Letras do Rio de Janeiro, digno de ser  imitado  por outras cursos de Letras ainda agregados   ao conjunto de cursos  reunidos no mesmo  espaço geral  de uma universidade.

             Em suas  muitas viagens ao exterior (Estados Unidos, Alemanha, França), países nos quais também foi  professor visitante, Coutinho examinou minuciosamente as estruturas burocráticas e curriculares de cursos de humanidades que, naqueles países, constituíram suas Faculdade de Letras e que  tiveram forte influência nas modificações  que  imprimiria à Faculdade de Letras da UFRJ.  como   seu primeiro diretor. No início, a parte burocrática deixou um pouco a desejar, sobretudo  com a novidade da implantação do sistema de créditos, bem diferente do regime anterior, que era seriado. No entanto, no plano pedagógico, como diretor da Faculdade de Letras,  Coutinho revelou-se dinâmico, empreendedor e progressista, compensando, dessa forma, deficiências pontuais de natureza administrativa.

             Um  exemplo de seu espírito  avançado  foi outro passo  de grande  relevância para os destinos  do curso de Letras, que foi criação dos cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado), os quais obrigaram alguns professores, que  ainda não  tinham  nem mestrado, e   pela necessidade legal  de continuarem  docentes da  Faculdade e urgência de  aperfeiçoamento,  a cursarem o mestrado  e doutorado.  Foi, naquela  época,  final da década de 1960 e inícios dos anos de 1970, que recém-graduados, entre os quais  alguns tinham sido  colegas de  graduação do autor deste  estudo, foram  realizar  curso  de mestrado e doutorado no exterior, principalmente,  Estados Unidos e Inglaterra.

               Da mesma maneira,  ex-professores  nossos  foram  cursar o doutorado  no exterior. De regresso ao  Brasil,  alguns se tornariam  ilustre  professores da Faculdade de Letras da UFRJ. Com o tempo,  os cursos de  pós-graduação stricto-sensu e latu-sensu foram se expandindo  na própria Faculdade de Letras,   e se transformando  em  centros de alta  qualidade  dos estudos de Letras no país. Não devemos  esquecer igualmente  que Afrânio Coutinho, antes de ser docente da Faculdade de Letras, para a qual,  em 1965,  ingressou  por concurso de títulos e provas a fim de  preencher a vaga  de literatura brasileira  deixada por Tristão de Athayde, que se aposentara em 1963. Antes, Coutinho, em 1958,  prestou  concurso para livre docente de literatura brasileira da Faculdade Nacional de Filosofia.

                Com a livre docência, obteve o título de Doutor em letras clássicas e vernáculas. Convém ressaltar que Coutinho havia também lecionado na Faculdade de Filosofia do Instituto  Lafayette e nela fundou a cadeira de teoria literária e técnica  literária, tendo sido, assim,  o  pioneiro, no país,  na implantação  dessa disciplina. A obra crítica de Coutinho não foi  um produto de hesitações e falta  de rumo. O historiador  sabia aonde iria  chegar. Planejara bem  seus objetivos. Sabia o que  queria para si e para seu país. Vencera o domínio e monopólio do impressionismo crítico.

                 Entretanto,  sabia também  que enfrentaria  dissabores e decepções, até alguma ingratidão.  Ninguém, contudo, pode negar-lhe   o papel  decisivo e fundamental  de,  ainda em vida,   ver que o combate, as polêmicas não foram em vão. No país havia uma nova mentalidade  de críticos e ensaístas  que a ele devem  reconhecimento pelo que construiu no terreno da crítica literária, na historiografia  literária e no ensaísmo.

                  Tendo orientado  gerações de estudiosos da literatura brasileira, da teoria literária como orientador de  dissertações e teses, sua lição e ensino  se espalharam pelo país afora através de suas aulas e da sua produção  escrita. .Ensaístas e críticos  das gerações mais novas o colocam ao lado dos grandes críticos-scholars, como fez Leda Tenório da Motta em Sobre a crítica literária no último meio século, estudo denso e original abrangendo  esse recorte de tempo onde discute  as relações tensas entre conhecidos críticos brasileiros, como  Antonio Candido, Sergio Buarque de Holanda, Álvaro Lins, Afrânio Coutinho, Haroldo Campos e outros mais.  Coutinho teve também suas diferenças com Candido derivadas de  posições doutrinárias  conflitantes.

              Leda Tenório chega a falar  no “duelo” entre Candido e Coutinho, nos anos de 1960.”Duelo”  foi o que Flora Sussekind lembrou em relação às desavenças “ entre os dois e o termo ela  foi buscar num conto de Guimarães Rosa no qual dois personagens inimigos sempre hesitam em chegar ao enfrentamento  real, o duelo é “esperável” mas se adia, e aos opositores  só resta o  “rastro do  outro,”  que nãos apaga de vez.(Cf. MOTTA, Leda Tenório da. Sobre a crítica literária brasileira no último meio século. Rio de Janeiro: Imago,  2002, p. 192).                 Num artigo de título “Crítica superada?” publicado em 1985, Coutinho,  respondendo, em tom de ironia  e sarcasmo aos por ele chamados de   “resenhadores e propagandísticos de livros em jornais”,  que decretavam , então, estar morto o new criticism, o crítico  retruca  nestes termos: O new criticism anglo-americano, tal como o formalismo eslavo, que renovaram  a crítica literária a partir da década de 20 não morreu, apenas foi incorporado, mas suas sugestões e contribuições mais válidas, ao acervo da prática crítica e do ensino literário em todos os centros em [que] a literatura é levada a sério. O  close reading por ele introduzido é método precioso, como também o explication de texte francês (COUTINHO, Afrânio.     Impertinências.  Op. cit., p. 143).      

             Foi assim a sua defesa a princípios de ordem estética consubstanciados na sua nova crítica que,  por seu turno,  já se ia tornando   menos dominante e, como toda corrente do  pensamento crítico,  ia cedendo seu espaço para novas abordagens, contribuições também válidas e diversificadas  que Coutinho  acompanhou até pelo menos os anos  de 1990, porquanto  veio a falecer no ano de 2000.( Nota de pé de página: Segundo Eduardo Coutinho,  pouco tempo  antes do falecimento do pai, o crítico, já impossibilitado fisicamente de escrever,  ainda  continuava ditando  artigos para  publicação. (COUTINHO, Eduardo de F. Afrânio Coutinho. Op. cit., p. 30)      

               Ainda no texto autobiográfico, “A crítica de mim mesmo,” (COUTINHO, Afrânio. Impertinências. Op. cit., p. 25)  o combativo crítico faz  surgir,  diante de nossos olhos, nomes  que ganhavam  espaço  literário no Ocidente e, no país também. E é o próprio Coutinho que  aproveita,  mais uma vez,  para  afirmar sua insatisfação diante de uma observação  do que lhe parecia censurável:  "Ultimamente, assistimos a vários modismos que circulam sem qualquer reparação prévia entre os seus cultores. Luckács, Heidegger, Adorno, Benjamin são ingeridos e passam ao uso sem a menor deglutição nem assimilação. Somos homens do derradeiro livro ou autor aparecido nas vitrinas europeias, mais particularmente francesas, embora estas   estejam um pouco desacreditadas.

          Ninguém, em sã consciência, pode penetrar na obra de um filósofo moderno sem percorrer a dos que o precederam. É mister  uma preparação prévia para que se  possa dominar um pensador do nosso tempo. Do contrário, permaneceremos na epiderme, utilizando  os termos e ideias sem propriedade". (Idem, ibidem, p. 135).   São muitos e podemos citar apenas algumas deles que tiveram, por sua vez,  a atenção dos estudiosos brasileiros de  Literatura.  São o exemplos de citações metonímicas: Bachelard, Lucian Goldman, Emil Staiger, Adorno e a Escola de Franfurt, Gennette, Greimas, Lotman, Todorov,  Hans Robert  Jauss Wofgang Iser, Derrida, Umberto Eco,  Jonathan Culler,  Paul de Mann, Roland Barthes, Mikhail Bakhtin, Blanchot. 

        Paremos aqui que a história da crítica literária  continua e os   estudiosos brasileiros,  da mesma  forma, continuam discutindo alguns daqueles nomes da relação acima e remetendo os  leitores a muitos deles em  aulas, congressos, ensaios,  revistas especializadas, monografias,  dissertações, teses   e – por que não? -  em  outro  espaço indiscutivelmente  indispensável   ao avanço  do conhecimento literário,  espaço, ainda que com  dificuldade de penetração, dos grandes jornais. Os estudiosos,  finalmente,  podem contar com  outra possibilidade de debater questões culturais, que são os sites e os blogs numa escala de qualidade do ruim a excelente.

Nota de pé de página : Todos esses nomes e outros que não citamos estão  na lista que Coutinho  elenca na obra Impertinências, o que demonstra a curiosidade  perene do velho crítico  por tudo aquilo que na vida lhe foi parte integral  e razão  de sua vida: a crítica e as obras de literatura.