Abertura do Sarau Poético
Abertura do Sarau Poético

A NOTÁVEL POESIA DE CLÓVIS MOURA

 

Elmar Carvalho

 

1° MOVIMENTO – ABERTURA

 

Sendo eu um cidadão amarantino por vocação, devoção, coração e por livre e espontânea vontade de mim mesmo, mas também o sendo por Título de Cidadania, para glória e gáudio meu, é para mim uma incomensurável honra falar do imenso poeta Clóvis Moura, ainda mais porque sou o titular da cadeira 35 da Academia de Letras do Médio Parnaíba, da qual é ele o patrono.

Tive a satisfação de estar em Amarante, em várias oportunidades. Sempre a admirei pelo seu folclore, pelas suas danças portuguesas e rodas de São Gonçalo, pela sua beleza bucólica, arquitetônica e paisagística, e pelos seus valorosos poetas, que a cantaram e louvaram. Dessa forma colhi o ensejo para escrever o meu poema Amarante. Isso foi uma ousadia muito grande, depois de Da Costa e Silva e Clóvis Moura terem escrito magníficos poemas sobre esta bela e aprazível urbe, referta de beleza e emoldurada pelas serras e pelos rios Parnaíba, Canindé e Mulato, quase podendo ser considerada uma encantadora ilha fluvial. Na crônica Recuerdos de Amarante, escrita há algumas décadas, tive o ensejo de dizer:

“A primeira vez que visitei Amarante foi em meados da década de oitenta, quando estive nessa cidade na condição de fiscal da extinta SUNAB. Embeveci-me com a sua beleza. Li os versos do poeta, estampados em placa de bronze. Era a cidade azul do poeta, das serras azuis, do céu mais azul, das águas azuis de seus três rios. Afinal, Amarante é quase uma ilha paradisíaca, rodeada pelos rios Mulato, Canindé e Parnaíba, o hoje decrépito Velho Monge, tão grandes são as atribulações que lhe causam com as queimadas e desmatamentos, já denunciados pelo excelso poeta, muitos anos atrás. Vi suas casas antigas, que nos fazem viajar no tempo, que nos fazem retornar a uma época mais morosa, mais amorosa e mais manhosa. Nessa ocasião, hospedei-me em uma pousada, antigo solar, que parecia habitada por antigos fantasmas de afogados e poetas. De madrugada, quando acordei, fazia frio e caía uma chuva fina. Senti uma forte vontade de urinar. Tentei resistir, pois o banheiro ficava distante, tendo que percorrer um comprido corredor até chegar a esse anexo. Resisti também porque estava com certo medo, por causa da lembrança de almas penadas, que talvez vagassem pelas alcovas e alpendres do vetusto casarão. Contudo, a necessidade fisiológica foi mais forte, e tive que ir ao mictório. Quando lá cheguei ouvi uns gemidos penosos, doridos, como se partissem de um moribundo. Não urinei direito, e voltei quase correndo, imaginando que aqueles gemidos, que aqueles ais doloridos bem poderiam ser de almas penadas, os fantasmas dos poetas e dos afogados. No dia seguinte, qual não foi a minha surpresa, quando soube que no quarto perto do banheiro dormira um casal em plena lua de mel. Em lugar de dormira, retifico para passara a noite. Então, num lampejo, compreendi que as minhas almas penadas, eram duas almas ‘penando’ na volúpia ardente dos esponsais.”

Em minha gestão como presidente da União Brasileira de Escritores (1988/1990), promovi uma campanha para que os restos mortais do poeta Antônio Francisco da Costa e Silva fossem inumados em sua terra natal. Usei como fundamento o seu pedido, expresso na última estrofe de seu soneto Amarante: “Terra para amar com o grande amor que eu tenho! / Terra onde tive o berço e de onde espero ainda / Sete palmos de gleba e os dois braços de um lenho!” Infelizmente a campanha não obteve sucesso, mas ainda acho que eu estava fazendo a coisa certa. Em sua terra, seu túmulo seria visitado e admirado pelos seus conterrâneos amarantinos e piauienses. Dez anos atrás, o meu amigo e poeta Virgílio Queiroz, com o meu apoio, tentou retomar essa empreitada, mas novamente fomos vozes clamando no deserto da indiferença do poder público.  

Da referida crônica, citada acima, retiro ainda a seguinte passagem:

“O professor Marcelino Leal Barroso de Carvalho, que foi meu mestre no curso de Direito, na Universidade Federal do Piauí, e que hoje é o diretor geral do conceituado Instituto Camillo Filho, depois de ter feito brilhante carreira no magistério superior piauiense, houve por bem lançar o meu livro Lira dos Cinqüentanos em Amarante, da qual é ilustre filho. O evento aconteceu dentro da parte cultural da festa religiosa da Irmandade do Divino Espírito Santo, cujo ritual sacro ele ressuscitou, uma vez que essa tradicional festa religiosa estava adormecida há várias décadas. O lançamento de meu livro aconteceu num casarão secular, na avenida Desembargador Amaral, em noite memorável e agradabilíssima, em que notáveis personalidades amarantinas compareceram, entre as quais os amigos Álvaro e Raimundo Luís Cutrim, Geraldo Majella Nunes de Carvalho, vindos especialmente de Teresina para esse fim. Foi exibido, na oportunidade, o documentário Elmar Carvalho – O Poeta e seus Labirintos, em que ocupa lugar de merecido destaque a velha e graciosa urbe do médio Parnaíba. Foram distribuídos aos presentes baners do poema de louvação (a) Amarante. Um deles, devidamente emoldurado, encontra-se exposto no museu da Casa Odilon Nunes.

            Numa tarde agradável de um tempo que não sei fixar no calendário comum, mas apenas no do espírito, da emoção e da saudade, encontrava-me com o poeta Virgílio Queiroz, no cais do Velho Monge, bebericando umas pingas com água tônica, quando inesperadamente, como um sortilégio, veio uma ventania que sacudiu as faveiras, debaixo das quais estávamos. As favas secas começaram a emitir um som de chocalhos e de maracás. Foi como se aquele som evocasse uma época muito antiga e ancestral, em que os índios perlustravam aquelas terras, aquelas serras azuis encantadas e perlongavam o curso sinuoso do Parnaíba.

            Ainda hoje escuto a música encantatória dos maracás daquelas faveiras e a dança requebrada do arvoredo. E ainda perpassa em minha pele o afago daquele vento, que ninguém sabe de onde veio, que ninguém sabe para onde foi...”      

Tive a oportunidade de conhecer pessoalmente o poeta Clóvis Moura e vê-lo a pitar o seu inseparável e emblemático cachimbo. Cheguei a lhe enviar, pelo velho Correio, algumas cartas, que ele prontamente respondia, pois era um homem bom e educado. Em algum dia do ano de 1997, creio, recebi um exemplar do periódico LB – Revista da Literatura Brasileira, edição n° 6, um volume magro, de apenas 45 páginas, enviado pela saudosa amiga Clea Rezende Neves de Melo, escritora e professora universitária em Brasília. Em sua capa, ela escreveu pequeno recado, me chamando a atenção para a página 33, na qual constava a seção 4 Poetas do Piauí. Eram eles Da Costa e Silva, H. Dobal, Clóvis Moura e Elmar Carvalho. Não sei quem colocou este pigmeu no meio desses gigantes do parnaso piauiense. Penso, talvez, tenha sido Clóvis Moura, mas jamais poderei ter certeza quanto a isso. Como uma homenagem a esse grande bardo brasileiro, transcrevo um dos poemas de sua autoria, constante na revista:

MINHA VOZ

 

Minha mãe deu-me um cravo cristalino

quando nasci. Guardei-o na garganta.

Por isto a minha voz parece o eco

de todo sofrimento que não canta.

Com isto a minha voz se fez desejo

dos surdos-mudos, das mulheres mancas.

É o plenilúnio dos abortos tristes

e o girassol dos cegos que não andam.

Minha garganta já sentiu o travo

da palavra guardada e não ditada

por causa dos fonemas mutilados.

Há na voz desse cravo que não toca

um desfilar de mortos e de enterros

e gritos por silêncios soterrados.

 

2° MOVIMENTO – SÍNTESE BIOGRÁFICA E O SOCIÓLOGO

 

Clóvis Moura nasceu em Amarante; quanto a isso não há dúvida. Mestiço de branco e de afrodescendente, dizem que entre seus ancestrais existiria um barão prussiano. Contudo, a sua data de nascimento é um emaranhado de contradições. Vejamos o que escreveu o grande ficcionista e crítico literário Assis Brasil, na antologia A Poesia Piauiense no Século XX:

“A Enciclopédia de literatura brasileira (Afrânio Coutinho, org.) registra a data de nascimento de Clóvis Steiger de Assis Moura como sendo 1929 e o dicionário de Raimundo de Menezes, 1925, ambos no dia 10 de junho na cidade de Amarante. Na antologia Mão Dupla (1994), o poeta nasceu no dia 1 de junho de 1928. O poeta sai cedo da terra natal, pois estuda até o segundo ano ginasial no Colégio Santo Antônio, dos Irmãos Maristas, em Natal, Rio Grande do Norte.

‘O resto foi autodidatismo’, registra Menezes, mas naquela Enciclopédia fala-se num diploma de Filosofia (1950). Nos dois livros que temos em mãos do poeta, Argila da memória (2ª edição/1982) e Flauta de Argila (1992) nada consta sobre a vida do escritor, embora o estudo introdutório de M. Paulo Nunes ao último. Tampouco os dicionários de Adrião Neto e Wilson Carvalho falam sobre a vida de Clóvis Moura.”

Essas contradições e lacunas apontadas pelo notável romancista e crítico piauiense Assis Brasil parecem indicar que o escritor era um tanto infenso à vaidade, já que, ao que tudo indica, pelos livros que Assis cita e por outros que tenho em meu poder, ele não costumava divulgar a sua biografia.

O certo é que, com diploma ou sem diploma, ele foi sociólogo, ensaísta, poeta, historiador e jornalista. O livro Duelos com o infinito, publicado pela SEDUC e FUNDAC, em 2005, também não traz dados biográficos, senão breve comentário na orelha, da lavra de Aluysio Mendonça Sampaio, do qual retiro este pequeno trecho: “(...) dotado de enorme talento e cultura, fez-se polígrafo, publicando contos e sobressaindo-se como um dos melhores poetas nacionais”.

Um texto sobre Clóvis Moura, publicado na revista Presença, ano XX, nº 34, 2005, sem indicação de autoria, informa que Clóvis Moura nasceu em 1925, em Amarante, mas que “mudou-se cedo para Salvador, Bahia, onde construiu sua juventude, iniciando, ainda na década de 40, militância política de esquerda. Seja como for, conforme citação anterior, o nosso Assis Brasil informa que ele teria estudado até o segundo ano do ginásio em Natal, Rio Grande do Norte.

Em rápida pesquisa internética, também encontrei desencontros com relação ao dia de seu nascimento, todavia todas as informações davam o ano como sendo 1925. Até prova em contrário, considerando a maioria das informações, creio seja razoável aceitar como sua data de nascimento o dia 10 de junho de 1925.

Um texto que me pareceu confiável, publicado no sítio da Sociedade Brasileira de Sociologia (acesso em 23/11/2023), na seção Bionotas, titulado Clóvis Moura, da autoria de Fábio Nogueira (UNEB), afirma que ele nasceu em 10 de junho de 1925, em Amarante. E que foi na cidade de Juazeiro (BA), nos anos 1940, “que deu início à escrita de seu mais conhecido livro, Rebeliões da Senzala, publicado pela Editora Zumbi, em São Paulo, em 1959”. Portanto, era ainda bem jovem, quando começou a escrever esse livro. Essa mudança constante de endereço residencial, creio, se devia ao fato de o seu pai ser funcionário da Fazenda Nacional (Receita Federal). Radicou-se em São Paulo em algum momento dos anos 1950.

Nesse trabalho de Fábio Nogueira, há importantes considerações teóricas e analíticas sobre a obra sociológica de Clóvis Moura e sobre como ele interpretava o que seria um quilombo. Aliás, Clóvis esteve na sua Amarante, ou na segunda metade dos anos 1980 ou nos anos 1990, para fazer pesquisa na comunidade de pretos Mimbós, durante algumas semanas, porém não sei se as suas análises, interpretações e conclusões se encontram em algum trabalho de sua lavra, e se esse estudo acaso teria sido publicado.

Para mostrar a sua importância e a sua autoridade sobre os seus estudos e pesquisas, na seara da negritude brasileira, transcrevo o seguinte parágrafo do estudo de Fábio Nogueira:

“Radicou-se em São Paulo a partir dos anos 1950. Vinculou-se ao círculo de intelectuais comunistas que orbitavam em torno de Caio Prado Júnior e colaborou com as Revistas Brasiliense e Fundamentos. Clóvis Moura divergiu da linha política e teórica hegemônica no PCB o que o fez ingressar, em 1962, no Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Moura atuou na imprensa paulista como redator e crítico literário em jornais como Diário da Noite, Diário de São Paulo, Última Hora e Folha de São Carlos e, ao mesmo tempo, produziu obras sobre a contra-violência do escravizado como elemento ativo na desagregação do modo de produção escravista. Em 1975 funda o IBEA – Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas (IBEA) e estende a sua interlocução a intelectuais norte-americanos e africanos. Integrou, em 1974, a delegação brasileira que participou da Conferência de Cultura Negra em Dakar, no Senegal, organizada sob os auspícios de Leopold Senghor (1906-2001), presidente daquele país e uma das principais referências do movimento da Negritude francófona. Participou de encontros acadêmicos nos anos 1970 no Panamá, Porto Rico e Estados Unidos. Em 1977 publicou Negro: Bom escravo, mau cidadão? obra que condensa os reflexos do escravismo à sociedade capitalista competitiva e a ideologia do negro como “mau cidadão” que tinha por finalidade justificar barragem social deste, assim como, a negação de direitos sociais como saúde, educação, acesso à terra e aos direitos trabalhistas. Nesta obra relaciona os processos de resistência ao escravismo de uma perspectiva comparada dialogando com suas expressões em outros países da América Latina e do Caribe. Clóvis Moura contribuiu particularmente ao campo da sociologia histórica e da sociologia do conhecimento sendo autor de dois livros emblemáticos a este respeito, A Sociologia posta em questão (1978) e as injustiças de Clio: o negro na historiografia brasileira (1990).”

No referido trabalho, Fábio nos informa que Clóvis efetivamente cursou Filosofia, Ciências e Letras, nos anos 1940, no período em que morou em Salvador. Todavia, somente nos anos 1980 recebeu o Título de Notório Saber, concedido pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo. A obtenção desse título lhe possibilitou funcionar como examinador em bancas de mestrado e doutorado na USP e na UNICAMP. Na década de 1980 participou de um amplo círculo de intelectuais, do qual faziam parte, entre outros, Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Jacob Gorender, Vivaldo Costa Lima, Yeda Pessoa de Castro, Manuel Correia de Andrade etc.

Na Revista Presença, acima referida, o escritor Eneas Athanázio publicou a matéria A Escravidão de A a Z, na qual nos é informado que “depois de trinta anos de pesquisas incansáveis e solitárias, enfrentando toda sorte de dificuldades, o cientista social Clóvis Moura (1925/2003) concluiu sua obra Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, publicado pela Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP)”.

Eneas Athanázio nos explica que a obra contém mais de 800 verbetes, distribuídos ao longo de 440 páginas; que muitos abordam fatos importantes da história da escravidão negra no Brasil, e que muitos traçam o perfil biográfico de importantes abolicionistas. Alguns dos verbetes são longos, para o padrão de um dicionário, e são quase um artigo ou pequeno ensaio. Outros temas são estudados, como os referentes a trabalho, alforria, instrumentos de tortura, costumes, religião, danças etc. Em seu projeto inicial, Clóvis pretendia incluir verbetes sobre a escravidão indígena, mas desistiu por não haver no Brasil uma consistente bibliografia sobre esse assunto. Foi um trabalho que requeria, talvez, uma equipe de pesquisadores, mas que foi realizado por um único homem.

Na seara da poesia, publicou as seguintes obras: Espantalho na feira, Argila da memória, Flauta de Argila, Âncora no Planalto, Manequins Corcundas e Duelos com o infinito, o qual, segundo seu “orelhista” Aluyzio Mendonça Sampaio, é uma antologia, “que ainda mais se qualifica pela inclusão de novos poemas, inéditos ou publicados na imprensa literária”.  

Para finalizar esta parte, citarei as principais obras sociológicas de Clóvis Moura: Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas (1959), O negro: de bom escravo a mau cidadão? (1977), Os Quilombos e a Rebelião Negra (1981), Sociologia do Negro Brasileiro (1988), A Dialética Radical do Brasil Negro (1994), A Sociologia Política da Guerra Camponesa de Canudos – Do desaparecimento de Belo Monte ao MST (2000), A encruzilhada dos Orixás: problemas e dilemas do negro brasileiro (2003) e Dicionário da Escravidão Negra no Brasil (2004).

Após duelar com o infinito, Clóvis Moura empreendeu sua viagem rumo ao infinito em São Paulo, no dia 23 de dezembro de 2003.     

 

3º MOVIMENTO – CONSIDERAÇÃO SOBRE A POESIA DE CLÓVIS MOURA

 

Nos vários livros que tenho sobre a Literatura Piauiense e Brasileira – tais como história da literatura, dicionários, antologias e mesmo dois livros de poemas de Moura – não encontrei nenhum comentário sobre a sua poemática, exceto uma brevíssima apresentação da autoria de M. Paulo Nunes, em que encontrei apenas esta passagem, de caráter crítico:

“Lendo este belo e comovente livro sentimos que, se em Da Costa e Silva a identificação com a cidade natal é feita através do sentimento de exílio, presente em sonetos como Saudade ou Amarante, em Clóvis Moura ela se faz porosamente pelos sentidos, pelas vivências, pela memória, pela reconstituição proustiana de um mundo perdido, mas guardado intacto na lembrança.”

Assim, o que a seguir eu disser sobre a sua arte poética, para honra minha ou para minha vergonha, sairá exclusivamente de minha cabeça, por minha conta e risco, e os equívocos deverão ser a mim atribuídos, e a mais ninguém. São as atribulações e consequências de eventual ou pretenso pioneirismo.

Mesmo o livro Duelos com o infinito, com poemas de sua autoria, publicado postumamente, não traz nenhum comentário de natureza crítica, exceto esta informação, da autoria de Aluysio Mendonça Sampaio: “este Duelo com o Infinito, no qual se reúnem poemas já publicados nos livros anteriores, em seleta que ainda mais se qualifica pela inclusão de novos poemas, inéditos ou publicados na imprensa literária”.

Portanto, em se tratando de uma antologia de 256 páginas, enfeixando poemas de seus livros anteriores e outros (poemas) inéditos, é uma expressiva amostragem de toda a sua obra poética.   

Alguns de seus poemas são metrificados e apresentam rimas, embora sem o espartilho da rigidez parnasiana. Podem ser encontradas redondilhas maior e menor. Em nenhum dos textos encontrei versos que contenham calão ou que possam ser rotulados como de mau-gosto, mesmo os de conteúdo sensual.

Também os seus poemas políticos ou sociais são sóbrios, contidos, e em momento algum descambam para um tom panfletário, e tampouco para um timbre de escancarado proselitismo ideológico ou de doutrinação política, embora Clóvis Moura tenha sido militante do PCB e, depois, do Partido Comunista do Brasil – PCdoB.

É sabido que a poesia contém muito mais desvio de linguagem do que a prosa, mormente por causa de sua escrita mais metaforizada, por seu alto grau de simbolismo, de imagens, de comparações, e de concisão, além de que utiliza em maior grau as figuras de estilo, as aliterações, as rimas, as coliterações etc. Fora o fato de que alguns poetas têm tendência deliberada ao hermetismo, em maior ou menor intensidade.

Com isso podem surgir dificuldades na interpretação dos poemas. Em minha condição de poeta, considero que um poema seja muito mais rico ou eficaz, quanto mais possibilidades de interpretação possa suscitar, conforme a experiência do leitor, sua vivência, suas leituras, sua inteligência e criatividade. Particularmente, fico contente se o leitor tiver uma interpretação diferente da minha, se ele descobrir aspectos e nuanças que eu próprio não tenha visto em algum poema de minha autoria. Por outro lado, um bom poema pode ser rico em sentidos conotativos e em jogos de palavras, que remetam à polissemia, conforme o objetivo e o talento do poeta.   

No poema Desarticulações Ferozes observo um nítido surrealismo, de difícil interpretação, em que se pode vislumbrar uma linguagem algo apocalíptica, mas de grande beleza, como nestes versos:

Um sonho de leopardo amarelo

está se condensando, um pedaço de memória felina

desdobra-se em nuvem de ácido amarelado.

Os dentes do rinoceronte trituram carne de cabritos

Monteses. E os dromedários contam libras esterlinas

sentados em uma palmatória. (...)

Esse mesmo poema, em outra parte, mais adiante, de forma insólita, surpreendente, adquire uma coloração epigramática, revestida de uma espécie de humor, com algo de nonsense:

A mulher que dança can-can

ficou apavorada com o ruído das espingardas

e suicidou-se com perfume francês

depois de beijar a boca do alemão desconhecido.      

Em muitos de seus versos sentimos perpassar inquietações, ainda que de forma implícita, ante as grandes indagações metafísicas sobre o sentido da vida, em que o poeta parece perquirir até sobre o destino de um inseto; em que parece tentar, como Drummond, escancarar as engrenagens da máquina da vida e do mundo, para lhes descobrir os mistérios e segredos e, quem sabe, desvendar os enigmas da vida e da morte, conforme se pode ver nestes versos do poema Interrogativo:

Quantos anos vive um vaga-lume?

Será que a sua luz, depois da sua morte

continuará iluminando pequenos caminhos

e veredas incontaminadas?

Será que ela se extingue com a sua morte?

Muitos poetas, críticos e teóricos acham que um poema deve causar no leitor alguma estranheza, algum espanto e certa perplexidade. Muitas imagens e metáforas do nosso vate são inusitadas, extravagantes e inesperadas, como se pode comprovar nos versos abaixo (do poema Por que ninguém falou?):

Dentro da noite alguém chegou.

Tinha nas mãos um facho que sangrava

e não era luz. Mas, sangue, simplesmente.

O poema Fábula sem animais, que, não obstante o título, refere alguns animais, como um bicho-da-seda, a encasular o sonho, um calangro de sal, a fazer gestos e caretas no espelho do espetáculo, parece ser uma verrina ou catilinária sutil, em quase surdina, contra os crimes e pecados dos gananciosos, dos usurários ou agiotas, e, sobretudo, das mazelas do capitalismo selvagem. Estes versos me parecem sintetizar o texto em comento:

Depois da queda, o grito da vingança,

o apanhar das urzes, o velório do

avião que despencou na neve:

o sangue que esguichou manchou o dólar.

No poema acima comentado, aparecem trechos lavrados num surrealismo hermético, de difícil exegese, frutos talvez da chamada escrita automática, em que o poeta, de forma quase mediúnica, deixa jorrar o seu pensamento ou inspiração, sem lhe analisar a racionalidade ou a lógica, ou, quiçá, sejam filiados à vertente do onirismo, em que a realidade se mistura com a estranheza mágica de um sonho, conforme vislumbrei nestes versos:

O sangue ensanguentado de uma estrela

lavou o frigorifico do espelho;

foi a mensagem que o governo deu

à casa de misericórdia dos camelos.

Lua e sentença foi elaborado em prosa e verso, mas em prosa rítmica e altamente metaforizada, com imagens insólitas, de grande beleza, todavia de conteúdo social, em que o poeta nos parece advertir que o ser humano é um “antropófago”, que o homem é o lobo do próprio homem. Vejamos, como exemplificação, essa pequena parte de um dos trechos em prosa: “A lua. Somente a lua espreita, é um cata-vento que tem dentro de si a rosa dos ventos de todos os loucos. É o horóscopo dos gnomos que obstruíram o canal uretral da princesa que acordou no vácuo”.    

Agora, passarei a tratar, de forma breve, do longo poema Argila da memória; longo, sobretudo, para os dias apressados de hoje.

Em suas páginas preambulares, o próprio autor o rotulou como sendo uma “Rapsódia dedicada à cidade de Amarante, no Piauí”. Por essa razão, o vejo como um poema longo, contudo composto de vários poemas (ou segmentos) menores, de inúmeras temáticas e formatos, inclusive de poemas em prosa, mas de alta voltagem lírica e metafórica.  

Sem dúvida essa “rapsódia” é também uma espécie de crônica memorialística e uma viagem de retorno espiritual, sentimental e poético à sua cidade natal, a nossa encantadora e encantada Amarante, que o grande Da Costa e Silva, impregnado da mais pungente saudade cantou, exilado por força de seus estudos e de suas funções públicas. Creio estes versos comprovem o que acabo de dizer:

            Aí me encontro. A música da noite

diz dessa origem humilde. Qual espelho

confidente, solerte, deslumbrado.

Dizem que nas matrizes encontramos

a sombra que ficou de quando éramos.

Em sua dicção evocativa, percebemos a beleza da paisagem, o encantamento de seus rios, de suas margens, das serras azuis dacostianas. Mas nem por isso são esquecidos o pranto da família, a canção do vizinho, a percepção de que sofremos, “a humilhação, a infâmia, / a corrupção do encanto / e a morte da pureza”. Como se pode ver, essas memórias se revestem, muitas vezes, de dolorosa pungência.

Em pinceladas altamente elegíacas o poeta chora a decadência da cidade, a sua tristeza, que, todavia, persistem, nos parentes que estão morrendo, nos defuntos que repousam lado a lado, nos tatus que perfuram o cemitério, nas enchentes do rio. Não posso deixar de transcrever estes poucos versos:

há cheias, invasões, o rio sobe,

Chega ao muro dos despojamentos

E a cidade permanece.

Em grande parte dessa rapsódia, em versos límpidos, claros, contudo, elegíacos, o vate lamenta as suas perdas, as moças que não se casam e que, “salpicadas de desejos, definham”. Quase toda a obra é permeada de excelentes versos, recheada de lindas e melancólicas metáforas, que nos comovem e nos enchem do êxtase da estética do sublime.

Os hábitos familiares, os costumes, as superstições, as crendices, os tabus, os preconceitos, a religiosidade, a igreja e o padre que ouve os pecados da cidade, nada escapa à crônica saudosista e ao olhar perscrutador e arguto do bardo, como nesta brevíssima passagem:

... As andorinhas sujam a hora sagrada.

E a lua nova salpica de lobisomens as sombras das gameleiras.

Em versos pungentes, mas de inefável beleza, o bardo canta o rio, as suas enchentes caudalosas e assustadoras, os seus redemoinhos ou sorvedouros traiçoeiros, que tragaram a vida de muitos meninos inocentes, os gargarejos das águas, a ânsia dos afogados, o esplendor das moças que com o rio se casaram. No meio dos vários poemas, de diferentes metros e formas, se encontra um excelente soneto, que me sinto compelido a transcrever na íntegra:

O Rio Parnaíba

Gargarejo de mortes de afogados

e brilho de luar sobre o silêncio

ruídos sem barulho de asas brancas

invisíveis na esteira do mistério.

 

Embarcações fantasmas com seus remos

violando o espelho da corrente

e a história dos antigos moradores

que perlustraram a estrada do degredo.

 

Nas margens as perguntas os inquéritos

o tiro a interjeição e a morte cinza:

gargalhada de álcool nas bodegas.

 

A indiferença escorre como gosma

e o rio na derrota da incerteza

leva faunas estranhas no seu ventre. 

Argila da Memória, conquanto seja uma rapsódia permeada de pungente saudade e melancolia, por sua beleza ímpar, comovente, parece ser o canto de exaltação e de louvação de Clóvis Moura à sua cidade. É um grande poema, uma espécie de épico moderno, não pelo seu tamanho, mas por sua magnífica beleza e impacto emocional que nos causa.

Como já disse, não encontrei nos livros de que disponho, e são muitos, nenhum comentário crítico sobre a notável poesia de Clóvis Moura. Dessa forma, penso ter dado um fraco e modesto pontapé inicial ao estudo de sua obra poética. Espero que outros desenvolvam trabalhos, com mais vigor e beleza, sobre o grande poeta, e possam marcar um belo “gol de placa”, que não pude, por falta de preparo e competência, fazer.   

 

4º MOVIMENTO – PEQUENO FINAL

 

Concluo esta palestra, evocando a memória dos grandes poetas Clóvis Moura e Da Costa e Silva, com as mesmas palavras com que iniciei minha crônica Recuerdos de Amarante, na qual relato fatos acontecidos há mais de 35 anos:

“Tenho gratas recordações da encantadora e bucólica Amarante. Quase diria que algumas remontam à minha infância, através dos belos versos de Da Costa e Silva, que sempre me comoveram, quando falava da igreja branca, do bando de casas estampadas na paisagem verde, dos saudosos mugidos dos bois de sua terra, dos rangidos plangentes dos engenhos, ou ainda do Velho Monge, alongando suas barbas brancas, feitas de água e espuma. Da Costa é um poeta que ainda hoje me comove e encanta. Tanto que, quando presidi a União Brasileira de Escritores do Piauí, porfiei em trazer seus restos mortais para a sua Amarante. Na campanha, como um dos mais fortes argumentos, usei os seus versos imortais, em que ele pedia para ser sepultado em plagas amarantinas, quando disse que ali tivera o berço e que ali esperava ter “sete palmos de gleba e os dois braços de um lenho”. Lamentavelmente a campanha não obteve êxito, mas ainda acho que eu estava no caminho certo. Em sua terra, seu túmulo seria um monumento, e seria visitado e reverenciado pelos seus conterrâneos amarantinos e piauienses.”

Agora, nos aproximando de 2025, quando Clóvis Moura fará o seu Centenário e serão comemorados os 140 anos do nascimento de Da Costa e Silva, não seria o momento apropriado para ser construído em sua cidade natal um Museu/Mausoléu/Memorial a estes dois magníficos poetas amarantinos e brasileiros?

Deixo a pergunta e a sugestão aos detentores do Poder Público de Amarante e do Piauí.

 

(*) Palestra proferida por José Elmar de Mélo Carvalho, no dia 1º de dezembro de 2023, em Amarante, no Museu das Letras, dentro do evento Colóquio Poético Clóvis Moura, promovido pelas entidades Confraria Camões, Observatório da Língua Portuguesa, Museu do Divino, Academia de Letras de Amarante e Academia de Letras do Médio Parnaíba.