ENTREVISTADO:

Cunha e Silva Filho

Doutor em Literatura, Cunha e Silva Filho, natural de Amarante-PI e radicado no Rio de Janeiro, publicou em 1996, Da Costa e Silva: uma Leitura da Saudade. Em entrevista para Entre-textos, ele conversa sobre a poesia do mais expressivo nome da poesia piauiense

Dílson - Inicialmente, professor, por que o interesse por pesquisar sobre a saudade em Da Costa e Silva?


Cunha e Silva Filho - Em 1991, quando iniciei o mestrado em tinha dois temas para desenvolver na dissertação de final de curso: a ficção de O.   G. Rego de Carvalho, que me impressionou muito com a leitura dos seus três romances, e a obra poética de Da Costa e Silva. Estava num impasse. Decidi-me, finalmente, por Da Costa e Silva. Quanto ao aspecto fulcral do tema na poesia dacostiana, me vinha martelando  muito a cabeça o tema da saudade.
Sempre me insurgi intelectualmente contra injustiças no domínio da literatura, contra erros de julgamentos, contra falhas de classificação periodológica de autores, e a obra de Da Costa e Silva se incluía nessa situação e  era preciso resgatá-la.
Por outro lado, me vinham borbulhantes as ressonâncias do culto no Piauí ao poeta de Amarante. Todos respeitam  Da Costa e Silva. Assis Brasil chega a afirmar em livro que nenhum piauiense que se preza desconhece o soneto “Saudade” do grande vate.
Tinha eu, portanto, descoberto a  mina do meu projeto de dissertação. Foi  um trabalho suado de quase quatro anos, mas me proporcionou grandes  alegrias.

Dílson - O que  é  a saudade na poesia de Da Costa e Silva?

Cunha e Silva Filho - Explico,  no meu ensaio sobre o poeta, que, em resumo, o tema da saudade está vinculado a um lado romântico da sua poesia, pelo menos, nele esse sentimento tipicamente ligado à subjetividade, foi sua força-motriz  predominante. Daí o sucesso imediato e prolongado que o soneto “Saudade” conquistou. È provável que, n o domínio da literatura em língua portuguesa, nenhum  outro lírico conseguiu  compor um poema sobre este tema  tão perfeito e ao mesmo tempo tão singelo.
A saudade no poeta Da Costa e Silva associa-se fundamente ao tema da infância, ao retorno, ao primitivo, às origens, à terra natal, ao ventre materno, aos amigos, à distância  no sentido metafísico e ao tempo eterno.
Mas, Da Costa e Silva, poeta culto, viajado [ainda que no próprio  país], conhecedor de línguas, à medida que amadurece sua experiência  com a linguagem, transmuda o sentimento da saudade, que lhe é inerente na personalidade,  em matéria de elaborada poesia, na qual aquele sentimento passa a ser poetizado dentro de uma espécie de macropoema, quer dizer, a saudade torna-se um componente num plano  mais da linguagem, da metáfora, do artefato estético e, por isso, ela invade outros poemas, outras obras do poeta.

Dílson - O que, além da saudade, encanta na poética de Da Costa e Silva?

Cunha e Silva Filho  Em Da Costa e Silva há outras virtualidades, outros aspectos a serem explorados e todos eles têm um encanto especial. Por exemplo, em Zodíaco, a natureza é cantada de forma esplêndida, seja na descrição, seja na capacidade de construir poemas com uma força pictórica incomum. O poeta aqui conseguiu conduzir o leitor ao universo virgem e viril da flora e fauna e, além disso, com um sentido moderno de ecologia, chegando mesmo à denúncia:

O destruidor devasta
Os arbustos do campo, os altos arvoredos,
Extinguindo com o exício das folhagens
Os aspectos, encantos e segredos
Do doce  bucólico das paisagens. (“A derrubada”)

Os poemas da natureza em Da Costa e Silva se elevam a nível épico e  parecem ressoar  o poder verbal retratando os crimes contra os sertanejos de Antônio Conselheiro, em Os sertões, de Euclides da Cunha.
Um outro tópico que me  encanta n a poética dacostiana é a sua perícia artesanal, a sua carpintaria, não no sentido meramente parnasiano, simbolista, clássico ou romântico, mas no seu consciente labor que atinge – digamos assim -, os arcanos da linguagem, do experimentalismo, da consciência metapoética, do ludismo poético, tal como pouco  adiante iria  ocorrer com Manuel Bandeira.
Essa faceta do poeta é suficiente para definitivamente incluí-lo entre os grandes líricos brasileiros, sem bairrismos, sem puxar a brasa para nossa sardinha de piauiense.

Dílson - Ao realizar uma crítica temática, sua pesquisa é uma crítica temática, quais procedimentos metodológicos o senhor utilizou para colocar a preocupação estética num primeiro plano?


Cunha e Silva Filho - Feito o recorte  na obra multifacetada de Da Costa  e Silva, tendo selecionado o tema, e, como você assina em sua pergunta, sendo o meu estudo  uma crítica temática, com  o que concordo plenamente, a dificuldade seria agora encontrar o caminho, as diretrizes metodológicas. Abro um parêntese: todo trabalho de dissertação ou tese é um trabalho de criatividade, sendo  que, na tese, deve haver como condição essencial a originalidade.
Não é preciso dizer que aí está o busílis da questão. Mas, no meu caso, houve um achado no tocante à metodologia, ao suporte teórico.Fui encontrá-lo, no meio do levantamento bibliográfico, num livro de procedência galega, uma coletânea de textos sobre a temática da saudade. Num dos ensaios descobri o caminho: “Pra unha filosofia da saudade”, do ensaísta galego Ramón Piñeiro Lopez. Lendo e relendo a obra de Da Costa e Silva – a poesia nos permite isso por causa da síntese -, observei que o ensaísta divisava três tipos de saudade; anoranza, noltalgia e arela. A partir daí pude “velejar” no alto mar lírico dacostiano.

Dílson - Da Costa e Silva, conforme o senhor ressalta em sua dissertação de mestrado, foi autor que dialogou sistematicamente com a tradição. Com quem dialogou o poeta e como isso se revela nos textos dele?

Cunha e Silva Filho - Para um lírico como Da Costa e Silva, de formação intelectual invejável, conhecedor, como já mencionei, de línguas, dado ao experimentalismo, é muito fácil rastrear esse lado sempre  presente nos grandes poetas, que é o diálogo com  a tradição, com os contemporâneos dele.
Mostro isso no meu trabalho e inclusive mostro a sua, vamos chamar,  técnica no uso da intertextualidade. É bom lembrar que em Da Costa e Silva essa prática intertextual e mesmo intratextual, minimamente falando, é em geral muito mais presente do que em outros poetas brasileiros. Somente Manuel Bandeira, pouco adiante, iria radicalizar tal recurso.

Dílson - No ensaio  ”O aprendizado de Orfeu”, o filho do poeta, o também poeta Alberto da Costa e Silva, ao investigar as  influências de Da Costa e Silva e a gênese  da criação literária dele, vê aproximação entre o autor de Sangue e a poesia de Cesário Verde e Augusto dos Anjos. O senhor concorda com a aproximação de Da Costa e Silva e esses dois poetas?

Cunha e Silva Filho - Não sou especialista em literatura portuguesa. Porém, já estudei a obra de Cesário Verde no doutorado e sobre ele escrevi uma monografia. Não vejo que Cesário Verde tenha deixado vestígios assim tão visíveis em Da Costa e Silva.
Já Augusto dos Anjos é outra  história. Aproximando este de Da Costa e Silva, teríamos, em  alguns pontos em comum, um certo desespero dos dois poetas, sobretudo  o tema da morte, a riqueza de ritmos, de sonoridades, o lado por vezes  lúgubre. E isso mesmo só evidente, em meu juízo,  em Sangue.
Já em Cesário Verde o que n os surpreende é a visão realista, para fora, e   prática da vida, seja na urbe, seja no campo. A poesia de Cesário Verde, a exemplo dessa obra-prima que é o poema “Sentimento de um ocidental” é m mergulho notável no mundo vivo de Lisboa, no seu poder cinematográfico de captação  poliédrica da urbe, da vida, da sociedade nos seus variados estratos sociais.
Agora, voltando ao dialogismo do poeta com outras vozes, é bem explícita a contribuição de poetas como Cruz e Sousa, Baudelaire, Antônio Nobre, Teixeira de Pascoaes, Antero de Quental, Verhaeren, Verlaine, Mallarmé, Rubem Darío, Dante, Camões, Shakespeare.

Dílson - Não obstante os diversos estudos sobre Da Costa e Silva e diversos manuais literários sobre literatura piauiense, ainda se questiona como classificar Da Costa e Silva quanto à filiação literária. Como realmente  é sensato  classificar a poesia de Da Costa e Silva?

Cunha e Silva Filho - Isso tudo está desenvolvido na minha dissertação, mas para lembrar aqui, posso lhe  dizer que Da Costa e Silva viveu e se formou numa época de transição poética [ belle époque], na qual coexistiam Parnasianismo, Romantismo, Simbolismo, Romantismo epigônico. Essa quase simultaneidade de estilos, com prógonos e epígonos, certamente dificultava as classificações de estilos poéticos, dada a contaminação entre eles. Por conseguinte, Da Costa e Silva, pode-se afirmar, por ser inclinado à maleabilidade de formas poéticas, compôs poemas simbolistas, parnasianos, românticos, clássicos, românticos e até de feição medieval, sem falarmos, é claro, de poema com marcas precoces do Concretismo de 56. Estou me referindo a marcas, a certas técnicas compositivas. Sem  falarmos também que ele próprio em depoimento dera sinal de que avançaria para o Modernismo. Vejam-se poemas como “Carnaval”, “Refrão do trem noturno”, “O carrocel fantasma.”  São, pois, fortes indicações de virada para o moderno.
Preferia antes defini-lo, acompanhando outros estudiosos, inclassificável, e acho que aí reside a força e o valor do seu estro.

Dílson - O senhor vê em Da Costa e Silva a antecipação de procedimentos poéticos de modernismo. Quais são esses procedimentos e o que representam na poesia de Da Costa e Silva?


Cunha e Silva Filho - Praticamente lhe respondi a essa pergunta na resposta à pergunta anterior.Entretanto, sim, há alguns indícios de abertura para o moderno. Em primeiro lugar, a extrema heterodoxia de seus processos de composição poética, o uso da paródia, da ironia, da descontrução, do ludismo, do livre-metrismo, da disposição gráfica, da oralidade, da transgressão do código do discurso lírico. É exemplo dessa alta elaboração estética o inventivo  poema “A margem de um pergaminho”, do qual fiz uma análise recorrendo  ao  conceito da “negatividade da poesia”  estudado pelo crítico e poeta Gilberto Mendonça Teles  no  excelente ensaio A retórica do silêncio. Esse conceito, de resto,  foi retomado por ele da obra Introdução à semanálise, de Julia Kristeva.
No meu ensaio “Da Costa e Silva: do cânone ao Modernismo”, publicado como capítulo do livro Geografias literárias, organizado  pelo Professor da UERJ, Francisco Venceslau dos Santos, editora Caetés, 2003, eu retomo e aprofundo esse  aspecto modernista em Da Costa e Silva.

Dílson - Nas palavras de Alberto da Costa e Silva, escrevendo sobre o pai, “uma das grandes alegrias da leitura é perseguir um texto no outro, confrontar o que se tem diante dos olhos com o que  persiste na memória, verificar, por exemplo, como duas sensibilidades diferentes (...) tratam um mesmo assunto”. Ao examinar a intertextualidade em Da Costa e Silva, qual sua maior alegria?

Cunha e Silva Filho - O conceito de intertextualidade é uma das questões mais profundas da teoria  literária contemporânea. Lembro-me de que, no início do mestrado, é que passei a me interessar por ela de forma mais apurada.Todavia, é inegável e sempre fascinante este trabalho de rastrear essa polifonia disseminada nos textos da  poesia e,em menor grau,  também da ficção.
A minha grande alegria foi poder encontrar pontos comuns de estratégias composiconais entre Da Costa E Silva e Manuel Bandeira, dois mestres geniais nesse recurso. Nada verdade, muita gente desavisada pensa que,  por um  poeta usar e às vezes abusar desse recurso, ele não seja um poeta original. Manuel Bandeira foi até  vítima  desse estreiteza  crítica.
Ora, a prática da intertextualidade continua forte entre os  grandes poetas do Ocidente pelo menos.
Num estudo que fiz sobre um renomado poeta português contemporâneo, Vasco Graça Moura, ao constatar que, n um poema havia alguns versos de Cesário Verde, eu pude sentir quanto a minha análise empobrecera pela minha omissão ou  desatenção com esse recurso no poema. Não poderia deixar de salientar tal  procedimento. Foi imperdoável.
Uma outra alegria que poderia aqui mencionar foi encontrar um poema talvez pouco valorizado pelos leitores, o referido “À margem de um pergaminho” e ver que, no subtexto do mesmo, iria descobrir, admirado, tantas marcas de cunho modernista e até  concretistas no grande poeta do Piauí.

Dílson - Um livro de Da Costa e Silva  é leitura obrigatória para o ingresso à UFPI, o livro Sangue. Como estudioso do poeta, o que o senhor diria e recomendaria sobre esse livro aos estudantes?


Cunha e Silva Filho - Sangue, livro de estréia  é de 1908. A obra  foi bem recebida pela alta crítica da época. Sua primeira edição logo se esgotou.A importância dessa obra reside nos temas, mas sobretudo na dicção do poeta que, embora revelando influências simbolistas da época, se singularizava pela novidade da linguagem numa dimensão logo observada pelos críticos, a tendência aos experimentalismos dos versos, a temas relacionados  com a autobiografia do poeta, temas que lhe  foram sempre caros e se lhe tornaram recorrentes, como a terra natal, a saudade, o  rio Parnaíba, a natureza piauiense. Temas que vinham ressoar uma multiplicidade de vozes nativas e estrangeiras, elevando o nível de sua lírica ao patamar dos  maiores nomes da  poesia brasileira. Na realidade, no passado, Da Costa e Silva foi o autor piauiense mais respeitado em nível nacional. Seu soneto “Saudade” fez-se porta-voz de sua lírica, fez fortuna e ainda o faz como é exemplo o fato de ser citado em recente livro publicado pelo poeta e ficcionista gaúcho Carlos Nejar, com a sua  História da literatura brasileira: da carta de Perco Vaz de Caminha à contemporaneidade, da editora Relume Dumará.
Ao poeta de Amarante, ao contrário de outros historiadores,  dedicou mais de uma página comentando a obra dacostiana e louvando-lhe a importância como simbolista e poeta aberto às formas modernas de linguagem, chamando-o de “revolucionário para a época, distinguindo no poeta ressonâncias das Églogas de Virgílio e até antecipações em poemas de Raul de Leoni e Cecília  Meireles, quer dizer, descobrindo novas vozes nas quais  a poesia dacostiana deixa reflexos. Vê-se, desse modo, o  quanto Da Costa e Silva pode ser visto por outros olhares, por outros ângulos  e percepções críticas.
Não podemos deixar de deixar  de mencionar  os registros  e comentários elogiosos de mais de uma página sobre a poesia de Da Costa e Silva  que aparecem na História da literatura brasileira ,v.. ll – Realismo e Simbolismo , de Massaud Moisés e na História da literatura brasileira, v.2, de Sílvio Castro, cujo capítulo  sobre o Simbolismo  ficou a cargo de Assis Brasil. Entretanto, o mesmo não acontece com a  bem fundamentada  História da literatura brasileira, de Luciana Stegagno-Picchio, que, lamentavelmente, arrola  Da Costa e Silva entre poetas menores. O que me parece é que a historiadora italiana não pode ter lido  com cuidado a obra de Da  Costa e Silva.
      Aos estudantes piauienses, sugeriria que não ficassem na leitura apenas de Sangue, que é uma grande obra, sem dúvida. No entanto, lhes recomendaria que lessem a obra toda do poeta, o que seria mais proveitoso para um melhor entendimento das reais  potencialidades do poeta. Até porque Sangue, a meu ver, não é o seu melhor livro. É o todo em Da Costa e Silva que provavelmente o faça  grandioso entre os líricos brasileiros.

Dílson - Finalizando nossa conversa, professor, qual  poema de Da Costa e Silva mais toca a sensibilidade do senhor? Por quê?

Cunha e Silva Filho - Até é fácil de adivinhar, não é? É óbvio que aludo ao soneto “Saudade” que analisei no meu ensaio e a análise poderia ter-se estendido mais.
O poema foi a gênese do meu estudo. Está entranhado no  inconsciente coletivo do piauiense. Vira quase um fetiche dos leitores da obra do poeta amarantino.
Além do mais, ele é exemplo de simplicidade que encobre complexidade temática, pois ali estão aspectos centrais  de Da Costa e Silva: a terra natal, o rio Parnaíba, a saudade. Com isso apenas ele edificou essa obra-prima de poema  nos limites de catorze versos. Nele divisamos suas qualidades ímpares;  a musicalidade, a cadência, o ritmo,  as palavras comuns, poucas  metáforas, descritivismo, espontaneidade. Segundo nos conta Cristino Castelo Branco, em Homens que iluminam, o soneto veio-lhe de improviso, num jato, pronto, completo, ideal.
Outro lado dele relevante é ser um poema no qual podemos destacar traços românticos, simbolistas, parnasianos e modernos. Aqui a inspiração elucida o mistério da  poesia e a derrota do formalismo e da imanência do objeto poético.
Por outro lado, há que nele apontar outros recursos, a antropomorfização da natureza, as metáforas de teor simbolista, a subjetividade romântica, entrevista no olhar da mãe rezando, na referência da nota nostálgica, a pintura da natureza, a sua plasticidade, a sinestesia, a fauna, a flora, o espaço aberto, o anelo pelo retorno do estio com o afastamento do frio das noites. “Saudade” é, portanto, uma peça literária irrepreensível, inteiriça, obra de amor que vai ressoar nas palavras do poeta que, longe do Piauí, numa fase de “crise e desencanto”, confessaria numa carta de 1931 a seu conterrâneo Esmaragdo de Freitas:

A nostalgia de minha terra vem-me, quando em vez, numa toada de reza. E tenho a idéia de revê-la, com a vontade de  Anteu: experimentar a vista  no estirão do rio, penetrar os pulmões dos eflúvios da mata e ouvir ,  a mão em concha, o mugido dos bois