A muriçoca e o calor insuportável desta noite

O inseto barulhento e a temperatura insuportável desta noite parecem compor um par perfeito e hoje a muriçoca já deu o ar de sua graça, num conto singular do geógrafo Guilherme Carvalho da Silva.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

   

 

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"(...) Quem nunca foi incomodado com o chato barulho de um mosquito enquanto dormia? Os mosquitos, pernilongos ou muriçocas  [carapanãs, na Amazônia], como são chamados em algumas regiões do Brasil, são diversos insetos da subordem Nematocera e da família dos culicidaeque que se alimentam do sangue do homem, de mamíferos e de aves. (...)".

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5.2.2010 - O silêncio do carapanã no calor insuportável desta noite - O contista Guilherme Carvalho da Silva é graduado em geografia e pós-graduado em arqueologia. Mora e trabalha em Brasília e escreve contos sempre que a inspiração lhe vem, mas a estória hoje aqui por ele contada fala-nos mais de transpiração ou suor do que de inspiração e expiração, exatamente por causa do calor medonho desta noite. Pedi a ele, para ser publicamente compartilhada nesta Coluna "Recontando...", uma narrativa onde aparecesse um animal qualquer, enorme, grande, médio, pequeno ou quase invisível, de tão pequenino. Invisível, mesmo, se se tratasse, digamos, de um vírus, que nem se sabe bem se é um bicho ou uma "outra coisa". Em vez de, por exemplo, uma cigarra, uma onça, um elefante, um louva-a-deus ou uma invisível bactéria causadora de moléstias contagiosas, mandou-me Guilherme um conto em que uma das personagens é nada mais, nada menos, do que uma chatíssima muriçoca. Aparece o insuportavelmente barulhento inseto numa noite muito quente. Como, por coincidência, esta noite está mesmo muito quente, falo, até aqui nesta nota introdutória, DESTA NOITE MUITO QUENTE. E também daquela, a do calorento conto de Guilherme. Mas... fora do conto desse escritor, que nasceu em Brasília há pouco mais de 27 anos, hoje algo de muito estranho está acontecendo: o medonho calor já chegou, mas a muriçoca ainda não deu o ar de sua graça. Quem poderá explicar o fenômeno? Passo ao conto - que, aliás, é todo ele contido num só parágrafo -, no qual a muriçoca faz muito barulho, bem perto dos ouvidos do leitor. A estória, não sei se você concordará comigo, é simplesmente ótima. O conto é mesmo excelente e, nele, numa atmosfera desagradavelmente suarenta, eis que a tal da muriçoca não faltou. Ela não poderia ter faltado! O horrível calor desta noite e a muriçoca zumbindo nos nossos ouvidos formam um mais-que-perfeito casal, pelo menos nesse novo conto de Guilherme Carvalho da Silva. E, ao menos, consegui escrever a presente nota num só parágrafo, nesta noite muito quente. F. A. L. B. ([email protected])

 

 

 
 
Quente 
                                                                  
                  
                                                                                                            Guilherme Carvalho da Silva
 

Noite quente. A muriçoca zumbi infernal sua busca por sangue e eu continuo com meus abscessos mentais. O suor escorre pela testa e se acumula também no nariz. O sono não vem nunca. A muriçoca continua. Há um misto de cansaço físico e mental e angústia pelo levantar cedo de manhã. A cerveja de ontem não caiu bem no estômago e a azia rompe ainda mais a madrugada. Eu poderia mudar de emprego, eu poderia fazer algo, eu poderia estar lendo alguma coisa e me deixar vencer pela insônia de vez, mas eu ainda brigo, ainda reluto, ainda continua sentindo o calor fluir em suor jorrado aos borbotões, sentindo essa ânsia de querer dormir, sentindo o zunido próximo da muriçoca. Sentindo. Parece que Descartes não tem sentido algum agora e meu sentir é o que é, à revelia de que eu pense agora. Noite passada foi a mesma coisa. E noite antes da passada também. E noite antes da antes da passada. E eu nem consigo lembrar quando foi a última vez que eu dormi. Lembro que Paulo está ao lado e dorme tranqüilo. Hoje ainda, agora há pouco, ele trocou meu nome. Já devem ser umas quatro horas da manhã. Daqui umas duas horas eu tenho que me levantar. Minhas olheiras são dois poços terrivelmente fundos e sei que lá dentro flui um oceano. Paulo chamou-me de Beth ou Bete, não faço idéia de qual seria a grafia, mas o que importa agora é o som: Beth. Fui Beth por um lapso de segundo. Creio que ele nem tenha se apercebido do fato, afinal, foi apenas uma palavra dita entre o meu gozo e o seu gozo, num sexo necessário aos dois e pelos dois. Foi exatamente assim: eu me contorcia em êxtase tencionando meus músculos e arranhando suas costas e ele apertava a minha bunda pingando seu suor em meu rosto, quando copiosamente nós dois gozamos e ele disse: “(Car.), Beth… (Car.)...”. A muriçoca ainda continua sua lida em meus ouvidos e eu me questiono porque diabos o Paulo nem se atina com ela. Como ele consegue dormir com esse calor e essa maldita muriçoca? Eu o invejo por instantes. Eu: Beth. Não me incomoda o fato de ter sido Beth para ele. Tudo está meio letárgico e eu apenas sigo junto com as horas. Puta que pariu, devem ser já umas cinco horas. Talvez eu durma agora, é sempre assim: faltando meia hora para levantar o sono me toca. Parece que ele se aflige em pensar que não veio até então e resolve me afligir com sua presença já não mais quista. Eu condigo com ele e se caem minhas pálpebras. Durmo ali minha meia hora, intensa, sofrida, quente, zumbida, sonho com nomes e cores, sonho com palavras querendo dizer algo e eu sendo enfiada em um tacho cheio de buchada fervendo. Acordo com o despertador mostrando que o mundo toca o foda-se para a minha falta de sono, ou para o meu sono problemático que anda a odiar-me esses tempos. Paulo levanta assustado. Olha pra mim por entre a penumbra já meio clara do advir das horas de verão, sorri tonto como todas as manhãs só ele consegue, esfrega as mãos nos olhos e tira a remela, estrala todos os ossos das costas e das mãos, sorri de novo com cara de bocó pra mim e faz uma careta, chega perto, me olha nos olhos e me beija na ponta do nariz, belisca minha bochecha, levanta devagar, vai ao banheiro. Escuto o barulho do xixi na água da privada, escuto o som da descarga, escuto a torneira se abrindo e a água caindo na caneca, escuto o barulho das escovas nos dentes freneticamente denso, escuto o cuspe, ele entra de novo me olha, pula em cima de mim, me abraça forte, beija meus seios, lambe meu umbigo e diz: “bom dia”, eu sorrio devagar e digo: “bom dia”, ele diz que tem que chegar cedo no colégio “pois vou ter que organizar um material pra oficina de teatro ainda hoje”, ele se levanta, se veste, me beija de novo, eu faço cara de dengo, ele se despede: “inté senhora moça… qualquer coisa me liga” e se vai embora. Eu ouço o som dos seus passos na sala, a porta se abrindo e se fechando. Isso é Paulo. E que coisa absurda pensar que esse ser que fez tudo isso é Paulo. Paulo nesse exato momento quer dizer isso tudo que eu senti. Isso é Paulo. Mas Paulo é também, além disso, outras coisas: é Leminski, é cerveja barata, é história sem fim, é piada sem graça, é filosofia barata, é desejo de corpo, é um puta tesão, é uma puta tensão, é um fim sem precedentes, é um acaso, é um destino, é um asco, é uma sina, é Paulo. Aí fico só eu novamente, como a noite inteira. A noite estava quente, o dia continua e eu estou meio angustiada. Faço o meu proceder: levanto, vou ao banheiro e cago, ligo o chuveiro e me banho, escovo os meus dentes, olho o espelho e vejo um recado feito em batom de uva com a letra de Paulo: “mão e luva”, eu sorrio leve, vou até a cozinha, faço café, acendo um cigarro, como um pedaço de pão, bebo o café, volto pro quarto, visto uma calcinha, uma saia, uma blusa, calço um tênis e vou pra redação. Faz calor ainda ou talvez mais. As minhas olheiras parecem um poço, de petróleo agora. Beth. Ele me chamou de Beth ontem a noite, em meio ao nosso gozo, em meio ao nosso suor. Se eu levasse a sério Freud como ele leva diria que foi um ato falho: Beth, a grande encarnação do prazer reprimido e posto pra fora num desligar da consciência. Mas não sei, pode ser apenas um lapso. Freudianamente pode ser que Beth seja prazer e naquele momento ele simplesmente tenha dito: prazer, quando gozou comigo. Mas afinal o que um nome quer dizer? Eu continuo sendo… peraí… sendo… eu continuo com o meu nome mesmo, é… continuo… Que estranho, não lembro do meu nome. Será o calor? Será esse ônibus que não vem? Será que meu nome é Beth e só agora eu entrei em desencontro com o mesmo?  Diabos, como eu saio dessa? Meu nome é qualquer coisa que me é, mas, só também e não sempre. Meu ser sou eu e eu tenho um nome, que por acaso esqueci, mas ainda o tenho, ele está aí em algum lugar. Em mim mesma talvez. Eu podia olhar os meus documentos e ver se me chamo Beth mesmo, ou perguntar pra alguém na redação, mas prefiro não arriscar. Se eu me chamar Beth realmente não sei se vou gostar. Será que isso condiz comigo? Será que alguém me vê assim: acorda, caga, banha, escova, sorri, faz, acende, come, bebe, veste, calça, sai: Beth? Eu coube Paulo numa rotina, mas não sei se caibo em algum ser assim com esse nome: Beth. Tenho a impressão de que não me chamo Beth, mas não posso afirmar tal. É confuso. Será que alguém cabe em algum nome? Ou nós sempre somos para além de nossos nomes? Um nome é uma palavra, uma palavra é uma conjunção de silabas que formam sentido, uma sílaba é feita de letras, uma letra representa um som, um som que quando junto a outros sons forma uma idéia: um simples “hum…” já diz mais do que se é possível imaginar, uma entonação diferente muda tudo, uma figura de linguagem e aí já era, tudo alterado. Beth. Seria de Elisabete, Lisabete, Elizabeth, Bethânia ou de Beth realmente? Não importa mesmo, cada um desses nomes é apenas uma figura de linguagem, um signo para o som do meu ser. O significado fica para além dele mesmo, fica para além de mim. Fica para quem se arriscar ver em calcinha rosa, saia vermelha, blusa branca, tênis preto, meias brancas, pele morena, cabelo vermelho: Beth e sua metafísica nominal. Mas não é Beth. Não pode ser, nunca fui Beth, não me recordo disso, não consigo me lembrar disso, mas também não consigo me lembrar do comum, do acostumado, do porto seguro dos nomes, do meu nome. Entro no ônibus. No primeiro outdoor aparece: Lojas Marisa. Será Marisa? Alguém fala ao meu lado: “pois é, e Carla não deu pra trás?”. Carla? Não… O melhor é continuar assim mesmo, sem saber meu nome, uma hora me chamam e eu descubro. Só espero que não seja tão terrível a descoberta de que é algo pior do que Beth. Não que Beth seja um nome feio ou coisa parecida, mas é que meu ser não está cabendo nele e se o for realmente, estou precisando de cuidados médicos, pois pra mim este nome não me assenta. Mas o que afinal se assenta em um nome? Uma palavra cabe algo? Provavelmente cabe, pois senão eu não estaria conjeturando tantas elucubrações por meio de palavras. Creio que o que sobra é só aproximações mesmo, tudo não consegue ser dito por meio destas santas. Tudo se aproxima. Meu nome é só um pequeno refúgio para mim e para os outros que insistem em se comunicar. E seriamente penso que Platão é idiota. Onde estará essa Beth no mundo das idéias? Algumas noites sem sono e basta pra mandar ele pro saco, não tem luz nenhuma. Só tenho eu, neurótica compulsiva a não lembrar meu nome. A minha palavra. Desço do ônibus, caminho até a redação, subo as escadas, pego café, deixo a minha bolsa na cadeira, vou até a área de fumantes, fumo, sento de frente ao computador, o ligo, entro na Internet e digito alguns comandos e descubro: “Elisabete, Elisabeth, Elizabete, Elizabeth: Significa consagrada a Deus e indica uma pessoa extremamente ativa, que, graças à sua persistência e à sua força de vontade, sempre alcança os objetivos a que se propõe.Uma de suas virtudes é a capacidade de planejar tudo com muito cuidado”. Fonte: Mulher Virtual. Putz, que (m.), de fato eu não posso ser Beth. A Deus? Com essa maiúscula ainda por cima? Putz, putz, putz… Como eu faço pra me aliviar e lembrar que isso não sou eu, porque se for eu vou tentar um processo para mudança de nome. Invento que sou transexual e que me conhecem por Jorjão e que devo mudar meu nome pra isso, prefiro Jorjão a Beth, ainda mais um diminutivo de um nome como este. Minha chefe chega e me olha: “Suas olheiras estão cada vez piores, heim Eliane? Anda trabalhando muito, é?”. Eu sorrio sem graça: “hoje eu tava mesmo era sem nome”, “como assim?”, “esquece, esquece que é viagem mesmo…”. Volto ao computador, procuro de novo: “ELIANE – “TALVEZ SEJA DE ORIGEM GRECO-LATINA (HÉLIOS). SOL, SOLAR, DE BELEZA RESPLANDECENTE”. Fonte: Os Nomes. Melhorou um pouco, mas me deu mais calor ainda, provavelmente hoje à noite eu não durmo de novo.

 

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
   
 
 
 
 
 
 
  
 
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