A MORTE DO FILHO DO CORONEL
Por Elmar Carvalho Em: 01/04/2011, às 11H19
ELMAR CARVALHO
Estêvão Amorim era o maior comerciante da região de Luzilândia. Sua enorme casa comercial era constituída de três departamentos: a imensa mercearia, de venda a varejo; o sortido armazém, que vendia por atacado e tinha por clientela os bodegueiros e merceeiros do município e adjacências, e o de compra e venda dos produtos produzidos na região, como peles de animais, tucum, cera de carnaúba, amêndoas de coco babaçu, farinha de mandioca, algodão, cereais, etc. Com o crescimento do valor desses produtos regionais chegou a se tornar exportador, o que lhe rendeu muito dinheiro e prestígio no estado. Com isso, pode comprar a sua patente de coronel da Guarda Nacional.
Teve condições de mandar os filhos estudar nas capitais de outros estados, sobretudo em Salvador e no Rio de Janeiro. Porém, o filho mais velho ficou para lhe ajudar na administrações dos negócios. O rapaz era incansável e totalmente dedicado ao serviço, sem hora certa para encerrar suas atividades. Trabalhava de segunda-feira a sábado, sem de nada se queixar e sem nada exigir em troca dessa quase escravidão. Tão dedicado era, que pouco se divertia. Raramente ia às festas, com seus poucos amigos. Sua diversão era o próprio trabalho.
O coronel começou a envelhecer. Seus cabelos e bigodes ficaram grisalhos, e seu corpo magro principiou a vergar sob o peso dos anos. Já não tinha a mesma energia e saúde de antes, de modo que teve de delegar mais atribuições ao primogênito. Autoritário e centralizador que era, passou a ter que confiar cada vez mais em Silvestre. Este continuava dedicado como sempre fora, e aceitou de bom grado as novas tarefas que o pai lhe dava. Um acidente vascular cerebral afastou o pai do trabalho por vários meses. O coronel Estêvão Amorim passou vários meses no Rio de Janeiro, em tratamento médico, para tentar minimizar as sequelas que o AVC lhe deixara. Ao retornar, seguiu à risca as recomendações e as prescrições médicas, mantendo o repouso recomendado, tomando os medicamentos conforme a receita e evitando envolver-se nos negócios.
Todavia, após alguns meses, sentindo-se melhor, voltou, aos poucos, a participar da administração da firma, e a verificar os registros contábeis. Notou, e Silvestre já lhe falara a respeito, que o faturamento começara a declinar, sobretudo os provenientes da compra e venda dos produtos regionais, mormente os do extrativismo. O filho lhe explicara que a cotação desses produtos caíra muito, originando mesmo, a partir de certo momento, prejuízos. Com a baixa dos preços, os produtores já não tinham mais tanto interesse na sua comercialização. Com isso, o poder aquisitivo da população diminuíra, e consequentemente a venda da mercearia e do armazém também minguara consideravelmente. O coronel fazia perguntas e mais perguntas, questionando tudo, exigindo explicações e justificativas. A pretexto de modernizar os registros contábeis, mandou contratar contador formado, em troca de bom salário, pois o coronel desejava as modernas demonstrações de resultado. O velho parecia não querer aceitar as explicações do filho. Parecia irritado com suas justificativas e não queria entender que a borracha sintética e outros produtos industrializados tivessem feito despencar o preço dos produtos que exportava. Voltou a centralizar a administração da empresa, ficando o filho quase como um empregado subalterno, sem autoridade e desprestigiado.
Silvestre Amorim, que já era de pouco sorriso, vivia ensimesmado, imerso em sombrios pensamentos. Vivia sem ânimo, sem alegria com o trabalho, que antes representava tudo para ele. Guardava mágoa da desconfiança do pai, que reputava injusta, pois não poderia ter culpa da mudança de ventos na economia mundial, que afetara o comportamento do comércio nacional e local. Quando o pai lhe expunha algum problema ou dúvida, já não ficava orgulho disso, até porque sentia que ele adotava essa atitude apenas como uma espécie de cortesia paterna, já tendo tomado a decisão por conta própria, ou após ter ouvido o contador, que lhe merecia total confiança.
Tão logo deixava a empresa, Silvestre se recolhia a seu quarto. Quando comia, comia muito pouco, pois já não tinha o menor prazer em alimentar-se, e muitas vezes se esquecia dessa necessidade. Definhava a olhos vistos. Somente o coronel parecia não notar a tristeza, o desânimo, o definhamento e a palidez acentuada do filho. Sem que ninguém notasse, silenciosamente, discretamente, Silvestre morreu. Órfão de mãe há vários anos, somente a velha empregada da casa, naquele domingo chuvoso, sombrio, friorento, melancólico, sentiu a falta de Silvestre, na hora do almoço. Bateu-lhe à porta do quarto e o chamou, mas nenhuma voz respondeu. Abriu a porta, que estava apenas encostada, e viu o rapaz deitado em sua cama. Chamou-o novamente, em vão. Não precisou tocá-lo para ter a certeza de que havia morrido. Quando alguém lhe perguntava de que ele morrera, respondia, triste e laconicamente:
– De tristeza... Morreu de tristeza... Foi se amofinando, se amofinando até morrer.
A velha serviçal foi a única pessoa que, realmente, sentiu-lhe a morte e a ausência.