O que devo eu então dizer sobre o próprio livro (Montanha Mágica) e ainda por cima, como deve ser lido? O começo é uma exigência muito arrogante, a dizer que se deva lê-lo duas vezes. É claro que essa exigência é retirada imediatamente para o caso de que na primeira vez se tenha ficado entediado. A arte não deve ser nenhum trabalho escolar nem dificuldade, nenhuma ocupação contre coeur, mas sim deve alegrar, entreter e animar e aquele sobre o qual uma obra não exerce esse efeito então este deve deixar a obra de lado e voltar-se para outra. Mas quem chegou uma vez até o final com a “Montanha Mágica” então eu aconselho a lê-la mais uma vez, pois seu feitio particular, seu caráter como composição traz consigo que o prazer do leitor aumentará e se aprofundará da segunda vez, - como se deve já conhecer uma música para poder gozá-la de acordo. Não casualmente utilizei a palavra composição, a qual se costuma reservar à música. A música sempre influenciou meu trabalho formando fortemente meu estilo. Os poetas são, na maioria das vezes, outra coisa no fundo, eles são pintores ou gráficos ou escultores ou arquitetos deslocados ou outra coisa qualquer. Quanto a mim, eu pertenço aos músicos entre os poetas. O romance sempre foi para mim uma sinfonia, um trabalho de contraponto, um tecido de temas no qual as idéias têm o papel de motivos musicais. Ocasionalmente aludiu-se - eu mesmo o fiz também - à influência que a arte de Richard Wagner exerceu na minha produção. Não quero de modo nenhum negar esta influência e eu segui particularmente Wagner também no emprego dos Leitmotives que eu transferi para a narração e não assim como Tolstói e Zola e também ainda no meu próprio romance de juventude, “Os Buddenbrook”, de um modo meramente naturalista caracterizante, assim por dizer de modo mecânico, mas sim na maneira simbólica da música. Isto eu experimentei pela primeira vez em “Tonio Kröger”. A técnica que eu exercitei lá está empregada na “Montanha Mágica” num limite muito mais abrangente, da maneira mais complicada e que perpassa tudo. E a isso se refere a minha exigência arrogante de ler duas vezes a “Montanha Mágica”. Podemos reconhecer e apreciar adequadamente o complexo de relações entre música e idéias que ela forma quando já conhecemos sua temática e somos capazes de interpretar não só para trás, mas também para diante a palavra-chave que alude a um símbolo. 

Com isso eu volto a aludir a algo que já toquei, a saber, ao mistério do tempo com o qual o romance lida de diversas maneiras. Ele é um romance de tempo num duplo sentido: uma vez historicamente, tentando esboçar o quadro interior de uma época, o tempo do pré-guerra europeu, depois porém porque o puro tempo mesmo é o assunto dele, que ele trata não apenas como experiência de seu herói, mas sim também através de si mesma. O livro é sobre aquilo mesmo que ele narra; e descrevendo o encantamento hermético fora do tempo de seu herói, ambiciona por seu meio artístico a abolição do tempo e através da tentativa de emprestar ao mundo universal da música e das idéias que ele abarca, a cada momento uma presença plena e produzir um mágico “nunc stans”.

Mas para trazer à plena congruência sua ambição de ser sempre ao mesmo tempo conteúdo e forma, ser e aparência, e ser sempre aquilo do qual se trata e fala, esta ambição vai mais longe. Ela se refere ainda a um outro tema fundamental, o tema da elevação, à qual é dado o epíteto alquímico. Os senhores se lembram: o jovem Hans Castorp é um herói simples, um filhinho de família hamburguesa e engenheiro comum. No febril hermetismo da montanha mágica essa matéria simples passa por uma elevação que o torna capaz de aventuras morais, espirituais e sensuais, das quais nunca teria sonhado no mundo que é sempre designado ironicamente como planície. Sua história é a história de uma elevação, mas ela é elevação também em si mesma, como história e narração. Ela trabalha com os expedientes do romance realista, mas não é, ela sempre ultrapassa o real elevando-o simbolicamente e tornando-o transparente para o espiritual e o ideal. Já no tratamento de suas figuras ela o faz que para o sentimento dos leitores todas são mais do que aparentam; elas são expoentes, representantes e mensageiros de regiões espirituais, princípios e mundos. Espero que mesmo assim não sejam sombras e alegorias andantes. Ao contrário, eu estou despreocupado pela experiência de que os leitores experimentam esses personagens, Joachim, Clawdia Chauchat, Peeperkorn, Settembrini como pessoas reais, das quais o leitor se lembra como pessoas com as quais travou realmente conhecimento. 

O livro cresceu espacial e espiritualmente no caminho da elevação muito além do que o autor originalmente planejou com ele. A short story tornou-se o volumoso romance de dois tomos - uma desventura que não teria acontecido se a “Montanha Mágica” tivesse permanecido aquilo que muita gente no início via nela e ainda hoje nela vêem: uma sátira à vida do sanatório para tuberculosos. Ela causou a seu tempo não pouca sensação no mundo da medicina, causou nela parcialmente adesão, parcialmente indignação, uma pequena tempestade nos jornais especializados. Mas a crítica da terapia do sanatório é seu primeiro plano, um dos primeiros planos do livro, cuja característica é ter um grande segundo plano. A advertência doutrinária dos riscos morais da cura pelo repouso e de todo o ambiente estranho fica na verdade por conta do senhor Settembrini, o racionalista e humanista retórico que é uma figura entre outras, uma figura humorística-simpática, às vezes também o bocal do autor, mas de maneira alguma o próprio autor. Para este, morte e doença e todas as aventuras macabras pelas quais ele deixa seu herói passar são justamente o meio pedagógico pelo qual se alcança uma imensa elevação e impulso do herói simples para além de sua situação original. Elas são, justamente como meio pedagógico, valorizadas amplamente de modo positivo, mesmo se Hans Castorp no decorrer de sua vivência ultrapassa sua devoção inata diante da morte e compreende uma humanitariedade que não nega e rejeita racionalmente a idéia da morte e todo escuro e misterioso da vida, mas as inclui sem se deixar dominar espiritualmente por ela. O que ele aprende a compreender é que toda saúde mais elevada deve ter passado pelas profundas experiências da doença e da morte, assim como o conhecimento do pecado é uma condição prévia da salvação. “Para a vida”, disse Hans Castorp uma vez para Madame Chauchat, “para a vida há dois caminhos: um é o usual, direto e ajuizado. O outro é mau, ele passa pela morte e este é o caminho genial.” Essa concepção de doença e morte como uma passagem necessária para o saber, para a saúde e para a vida torna a “Montanha Mágica” um romance de iniciação (initiation story). 

Eu não inventei essa denominação. A crítica ma deu à mão posteriormente e eu faço uso dela uma vez que eu devo lhes falar sobre a “Montanha Mágica”. Eu me deixo ajudar com prazer pela crítica alheia pois é um erro pensar que o autor mesmo seja o melhor conhecedor e comentador de sua própria obra. Ele é, talvez, enquanto ainda trabalha e está nela. Mas uma obra consumada, que já ficou para trás, se torna cada vez mais algo separado dele, estranho, na qual e sobre a qual outros com o tempo estão muito melhor informados do que ele, de modo que podem recordar-lhe muita coisa que ele esqueceu ou talvez até mesmo nunca tenha sabido claramente. A gente tem, em geral, a necessidade de ser lembrado de si. Não se está de modo algum de posse de si mesmo, nossa autoconsciência é quanto a isto fraca, uma vez que nós de modo algum e nem sempre temos o nosso ser integralmente presente. Apenas em momentos de rara claridade, concentração e visão geral nós temos conhecimento verdadeiro de nós e a modéstia de pessoas notáveis que surpreende muitas vezes, tem seu motivo em boa parte nisso: que elas geralmente sabem pouco sobre si mesmas, não estão conscientes de si mesmas e se sentem, com razão, como pessoas comuns.


Extracto de Conferência apresentada por Thomas Mann em Maio de 1939 aos estudantes da Universidade de Princeton