A Metaliteratura de Carola Saavedra

“Everything is autobiographical, and everything is a portrait, even if it´s only a chair” 

(Tudo é autobiográfico e tudo é um retrato, mesmo que seja apenas uma cadeira)
Lucian Freud
 
 
Fui apresentada a Carola Saavedra por “Flores Azuis”, seu terceiro livro publicado, que há um ano me fisgou durante uma visita à livraria. Mas ainda não consigo falar sobre ele – sua história e personagens, tudo ainda reverbera em mim, e é impossível escrever com clareza enquanto se desce ou sobe a crista de uma onda (embora seja durante este movimento que a inspiração me surge). Então, para não frustrar minha vontade de escrever sobre a autora, vamos falar de “O inventário das coisas ausentes”, meu segundo contato com ela.
 
Há algo na escrita de Carola que me prende e influencia – tanto que é impossível não usar a primeira pessoa quando falo de sua obra. Grande parte deste “algo” fica por conta dos personagens; peculiares e tão absurdamente bem construídos, é impossível não criar empatia por eles. Nina, por exemplo, que faz o tipo que tem lá suas próprias estranhezas, é tão real que se torna quase palpável.
 
 “Muito tempo depois Nina me diria; sabe aquela vez quando nos reencontramos e eu te convidei para ir ao cinema, sim, lembro, sabe, foi uma espécie de declaração. Declaração de quê?, eu perguntei distraído, de amor, Nina colocou a mão sobre o meu braço. Como assim? Não costumo chamar um desconhecido para ir ao cinema, a menos que eu esteja apaixonada. Lancei-lhe um olhar incrédulo, declaração de amor estranha essa, ela decide explicar, é que ir ao cinema é algo extremamente íntimo.” (pág. 21)
 
No entanto, personagens não bastam; é preciso boa trama, linguagem, muitos outros fatores. E todos eles o livro tem. Dividido em duas partes por uma citação de Lucian Freud (destacada no início deste texto), “O inventário das coisas ausentes” investiga o fazer literário, uma metaliteratura. Na primeira parte temos as anotações do escritor e na segunda, o romance em si. Dessa forma, o leitor participa do livro em co-autoria, dele é demandado o trabalho constante de reconstrução da história juntando o que leu nas duas partes do livro.
 
O livro acaba sendo, portanto, um deleite para qualquer leitor que se interesse pelo processo, uma declaração de amor para o mundo dos livros. E assim, com uma estrutura narrativa radical, Carola nos introduz quase clandestinamente no universo de um escritor. Literatura dentro de literatura, “literaturaception”, conhecemos Nina, seu marido, um gato e o amor.
 
“Eu te amo, diz o texto. Talvez entre o eu te amo e o amor propriamente dito haja um espaço intransponível. Talvez o tempo que passa. Mas não apenas. Talvez um inevitável desencontro. Essa incoerência. Leio o texto como se fosse parte de um romance. Talvez seja isso, e quando o amor acaba resta apenas ficção” (Pág. 64)
 
A autora tem um estilo único, que à primeira vista, assim de relance, pode lembrar Saramago, mas que em pouco tempo se distingue sem esforço. Sua escolha por não destacar as falas dos personagens com aspas ou travessões torna a leitura mais fluida, permitindo que o leitor submerja com mais facilidade. Tudo isto faz de “O inventário das coisas ausentes” um livro para ser relido em seguida e de tempos em tempos. Talvez esta seja a especialidade da autora, construir personagens, cenas e frases que ecoam por muito tempo dentro de nós, mesmo após a última página.
 
“Entre ele e minha mãe estava aquele ano, as palavras impossíveis daquele ano. Entre eles, um ano para sempre em suspenso e eu” (Pág. 118)
 
“São cinco e meia da manhã. Escrevo: gosto desse horário, quando o mundo ainda não acabou de acordar” (Pág. 35)
 
E como não há nada melhor que ouvir a própria autora falando de sua própria história, o booktrailer da Companhia das Letras:
 
 
Título: O inventário das coisas ausentes
Autora: Carola Saavedra
Páginas: 128
Editora: Companhia das Letras
Sinopse: Como começa o amor? À primeira vista, num encontro casual, depois de anos de convivência? Qual é a distância entre dizer “eu te amo” e amar alguém? O que resta quando o tempo passa, as pessoas mudam e o amor acaba?
Nina tem vinte e três anos quando ela e o narrador se conhecem na faculdade. Os dois têm um envolvimento amoroso, mas certo dia ela desaparece sem deixar notícias. A partir da reconstrução ficcional dos diários deixados por Nina, o narrador conta a história de seus antepassados e assim vai delineando seus contornos, numa tentativa de recriar a mulher amada. Mas como falar do outro sem falar de si? E como falar de si quando a sua própria vida é marcada pelo abandono, pelo impalpável?
Essas são algumas das questões que O inventário das coisas ausentes lança ao leitor e à sua própria estrutura narrativa. Com uma abundância de tramas paralelas que por vezes se entrelaçam e por vezes seguem independentes, o romance de Carola Saavedra investiga o fazer literário, a memória, o amor e as marcas deixadas pela ausência do outro.