A máscara de Cristo
Em: 02/04/2010, às 05H13
Manila Bulletin, published in Manila, Philippines
A MÁSCARA DE CRISTO
Rogel Samuel
Ele parecia a máscara de Cristo.
Não a máscara sofredora, como no Gólgota.
Mas a face bela, altiva e majestosa face de Cristo.
Ele era um mendigo que morava na Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro.
Eu o assistia, todos os dias.
Pois ele sempre por ali estava, em qualquer canto e ângulo da velha e decadente praça.
Às vezes eu o via caminhando para algum lugar... do nada para nenhum lugar.
Caminhava por ali, sem rumo, sem saber, sem olhar, apenas se movia, como flutuasse.
Mas ele era tão belo quanto a figura do Cristo de Fra Angelico.
Deixava um rastro fétido no ar. Mistura de sujeira, fezes, suor e urina ressecada, de quem nunca tomou um banho. Por isso, quando eu passava eu o evitava, fazia uma curva no caminho, evitando-o. Vestia calças sobrepostas, camisas de mangas muito compridas, e em farrapos, tinha o pudor do corpo escondido.
Quem era? De onde viera? Impossível era saber se era moreno como um palestino, ou se pintado daquela sujeira cinza, de fuligem, sedimentada na pele escamosa, e nos cabelos e barbas sujos, longos.
Quem seria? Pois se nos olhos escuros ele tinha a profundidade e a loucura místicas... Como compreendê-lo?
Eu o alimentava diariamente.
Ele não aceitava dinheiro.
Quando se lhe dava dinheiro, aquilo permanecia lá, sem valia, sem valor, sem serventia, que o vento levava pelo chão.
Ele bebia? Nunca pude saber.
Quando eu lhe trazia comida, ele estendia ambas as trêmulas mãos, grunhia algo em desconhecida linguagem, talvez fosse uma bênção, talvez fossem uma língua arcaica, talvez aramaico.
Mas de alguma forma me olhava com amizade.
O que eu sempre desejei fazer era sentar-me ali, com ele, conversar com ele, partilhar de sua companhia.
Mas nunca tive coragem, como em outra época fiz com menino de rua, que levei para casa. Agora os tempos eram outros, a Praça tinha grande movimento, muitos olhares desconfiados, principalmente agora, cercada pela grade que a protegia de nós, pedestres.
Mas todos os dias, quando eu passava para almoçar, eu dava uma volta para vê-lo, e para que me visse. Havia um pacto, entre nós.
Outras vezes, eu voltara para ver se ele tinha comido.
* * *
Na última vez que o vi estava transtornado.
Era a máscara da morte, pálido.
Parecia ter sido atacado por uma matilha de cães.
As roupas estavam rasgadas e abertas, e deixavam aparecer o corpo ferido de estocadas, ferida.
Parecia mortalmente doente, e eu sabia que ele voltara ali apenas para a última ceia.
Nada comeu.
A marmita permaneceu no chão ao lado, esquecida.
* * *
Um súbito relâmpago quebrou o céu por cima de nós em grandes estilhaços de vidro e aço, como se rasgasse uma cortina gigantesca e o céu rugiu de par em par.
Abri o guarda-chuva.
As pessoas começaram a correr, aflitas, fugindo da chuva.
Então Ele se levantou lentamente.
Era Ele, e irradiava luz.
E, levantado, começou a andar, lento.
A chuva escorria por suas vestes.
Andava devagar, muito devagar, sob a chuva.
No meio da praça, voltou-se para mim e, pela primeira vez, sorriu, acenando com sua mão.
Então eu pude ver claramente a ferida do cravo na palma de sua mão.
E desapareceu na esquina. Tudo se escureceu.
Chovia mansamente.