À margem de um leitura do poema
Por Cunha e Silva Filho Em: 04/05/2015, às 20H25
Cunha e Silva Filho
(IN)DECISÃO
Cai o sereno nas notas da noite
e o coração do sol se assombra.
Cai sobre a máscara do mar
e a face cega do amor
canta uma canção de despedida.
Cai sobre as pálpebras da boneca
despenteada pelo calor dos olhos.
Cai sobre as mãos
que acenam o adeus.
Poemas há que se dirigem diretamente a uma realidade palpável, ainda que subjetiva. Poemas outros existem apenas para exprimir sensações indizíveis, nas quais as palavras valem por si mesmas. Os últimos são da linha de poemas feitos dos impulsos estéticos, ou seja, de criar uma realidade que, sem declinar de ser humana, sem desdenhar a sensibilidade de atos comunicativos, se ocultam, criam imagens sinestésicas e visam a um estado d'alma de uma geografia humana universal. São os que estão mais próximos dos velhos simbolistas.
Ao primeiro tipo pertencem os românticos do século 19. Ao segundo tipo se filiam os poemas modernos, já completamente despojados da métrica e da rima tradicionais.
Desta forma, diria que os modernos, aqui usando o termo num sentido bem elástico, sem as muletas dos traços distintivos da métrica clássica, são de fatura distinta ,em que o poema assume outros modos de expressão poética, seja na forma, seja na sua materialidade física e na sua capacidade de traduzir os tempos de hoje pela palavra, pela construção e ousadias das imagens, embaralhamento dos planos dos sentidos e das sensações estranhas provocadas pelo poeta.
O poema moderno comunica-se por caminhos transversais, onde a busca da mensagem tem como epicentro a aparente incomunicabilidade entre o emissor, “eu subjetivo”e o receptor – elemento este que, de fora da realidade do poema, torna-se um dado relevante de apreensão dos seus sentidos e de suas múltiplas formas de leituras.
Isso não significa que o verso moderno seja de elaboração mais fácil ou mais complexa, pois suficiente seria enunciar frases dando-lhes a espacialização grafica de um poema nos moldes antigos. Esta aparente facilidade de compor um poema como se fosse enunciados ou afirmações da prosa é a sensação que se tem ao lermos uma poema contemporâneo.
Aí, porém, reside o risco, já que o verso moderno se apoia num ritmo nascido das necessidades rítmicas do poeta, semelhante ao conceito "Cria o teu próprio ritmo," da lição dos modernistas de 1922.
Pura ilusão: seria hipoteticamente mais complexa a composição de um poema moderno por múltiplas razões que não me caberia aqui nomear.
O poema de Dílson Lages "In(decisão)" exemplificaria bem o alcance do poema moderno. Não se enquadraria nunca num poema de corte clássico e não seria este, no meu juízo, o propósito do poeta.
Já pelo título, feito à maneira dos concretistas, quebra-se qualquer alusão de cunho conservador.
O vocábulo bipartido sinaliza para o duplo sentido, quer dizer, há dois conceitos aqui levados em conta tanto pelo "eu subjetivo" quanto pela eu receptivo. Este fato já coloca sua leitura em dois polos , em duas saídas para interpretação ou leitura mais funda do poema, visto que o leitor ou intérprete é senhor de tomar um dos caminhos hermenêuticos, o que o coloca no impasse dos sentidos potencializados na estrutura geral do poema.
Visualmente, o poema forma-se de três estrofes de dois versos e de uma só estrofe de três versos. Entretanto, há semelhanças de natureza estilístico-fônico-sinestésica que se harmonizam no todo do poema e lhe dão consistência de forma, i.e., lhe dão unidade própria e, ipso facto, valorizam o resultado da estética do poema.
A anáfora verbal "Cai", repetida quatro vezes no poema, não lhe é gratuita. Reduplica o sentido da queda do fenômeno natural "sereno." Veja-se que o "sereno" contrapõe a "noite" ao "dia" representado pelo "sol", mas um sol "assombrado," humanizado.
O "sereno", "tênue vapor atmosférico noturno" (Aulete) é a força-motriz que propicia a realização do poema.
No conjunto dos versos, há um ambiente físico - suave - que reforça outros elementos naturais e humanos do poema, formando um todo de metáforas bem originais, tais como " coração do sol", "máscara do mar," que acentuam essa característica de afastamento, de partida, de sentimento de solidão(amorosa)
Constelado de fonemas sibilantes, de fricativas alveolares surdas, a musicalidade da peça poética salta à vista e robustece a ideia da própria natureza da poesia, ou seja, faz do poema uma canção, à qual está com frequência tão ligada a criação poética.
O título corresponde. dessa maneira, ao significado do poético que não é unívoco, mas se alimenta das hesitações tanto existenciais, sentimentais e afetivas quanto da própria criação de um poema, um ato sempre suscetível aos sentidos plurais, às abstrações, ao enigmático da natureza poética e, portanto, humana.
Nota do colunista: Esses comentários, numa versão aqui melhorada e um pouco aumentada, foram feitos originalmente na seção Comentário” do blog do poeta Elmar Carvalho.