Cunha e Silva Filho

 

          Este artigo parte de reflexões despertadas pela leitura de uma entrevista da conhecida e conceituada ensaísta Leyla Perrone-Moisés, sob o título “Em defesa da Literatura” concedida ao jornalista Leonardo Cazes, publicada no Globo Caderno Prosa & Verso de 29/10/2016. O núcleo do tema é a discussão do papel da literatura e da crítica literária de nossos dias, independente do alcance geográfico face aos caminhos e perplexidades em que se encontram a criação literária, o seu julgamento e os leitores.

          É evidente que o tema considerado em seu sentido lato envolve discussões derivadas do binômio literatura-crítica literária, i.e., questões como o ensino da literatura, currículo escolar do ensino médio e estudos literários na universidade e, por último, o lugar de maior destaque que vem ocupando a indústria cultural que nada trouxe de bom para o antigo prestígio obra literária que, segundo Perrone-Moisés, até os meados do século passado, teve a literatura. Em outras palavras, o espaço conquistado pela indústria do entretenimento, com a sua natureza passageira, o seu facilitário junto às massas, provocou o declínio do fascínio, sacralização e áurea da literatura de alta qualidade artística.

            Nesses tempos diluidores, tudo passou por um espécie de nivelamento comum do bom e do ótimo e do produto descartável através da via da mera comunicação, inclusive e sobretudo da linguagem. Daí, se queixar a ensaísta do rebaixamento ou da importância da disciplina estudo da literatura no currículo escolar do ensino médio. Reconhece a ensaísta que o fenômeno não se só no Brasil mas é internacional.Naturalmente Perrone-Moisés atribui esse desprestígio dos estudos literários a um desvio na formulação de estratégias de mercado de trabalho destinado a preparar candidatos a funções profissionais para as quais a literatura seria, por assim dizer, “inútil.”

        A questão, a meu ver, vai mais fundo, porque está vinculada a projetos governamentais de desenvolvimento em plena efervescência da globalização e das necessidades imperiosas de contingentes de mão de obra, assim como de reserva de mercado. A questão não é tão-somente educacional, porém político-ideológica. Fenômeno similar já se havia registrado no país no tempo da ditadura militar, anos 1970, e na fase do chamado “milagre brasileiro,”com a criação e difusão dos cursos profissionalizantes, principalmente no ensino privado, coincidentemente época em que se iniciaram mudanças drásticas no ensino de literatura com a atenção especial dispensada ao papel da comunicação, ao aproveitamento dos estudos linguísticos e à ênfase dada à teoria da comunicação.  

          Só se falava, nas aulas de literatura e de língua portuguesa a partir do ensino médio, nas funções da linguagem formuladas pelo linguista russo Roman Jakobson (1896-1982). Era o tempo em que os estudos linguísticos se imbricaram com os estudos literários para o bem e para o mal. “Comunicação “ passou a ser a palavra chave e o lugar antes privilegiado do ensino de literatura brasileira e de língua portuguesa foi posto em segundo plano e se misturando ao que, mais tarde, o MEC, designou como “Linguagens, códigos e suas tecnologias,” segundo lembra Perrone-Moisés em tom irônico. A ensaísta ainda , em tom francamente crítico, alude ao novo plano de ensino médio ao falar este de ‘linguagem’. Ao que ela, irônica e perplexa, se interroga: “Mas de que linguagem se trata?”

       Pondera Perrone-Moisés que as os alunos(eu acrescentaria as pessoas em geral) não só precisam de estudar as línguas, mas sobretudo necessitam de exercitar a reflexão crítica, de aprofundar suas visões da vida e do mundo. A ensaísta não perde tempo para censurar uma “falsa democracia” no meio do ensino e da educação em âmbito oficial, onde o “essencial” é apenas disponibilizar ao aluno os textos mais digeríveis, quando o que caberiam fazer os responsáveis pela educação seria elevar “progressivamente” o nível do educando, o que para ela seria, sim, uma prática democrática.

         Na mencionada entrevista, Perrone-Moisés levanta a questão de uma tendência atual da ficção, conhecida como autoficção, termo cunhado, em 1977, por Serge Doubrowski, no âmbito da crítica literária, que funde autobiografia com ficção, numa combinação de traços contraditórios para esse tipo de subgênero literário. aparentado, segundo se pode constatar,da biografia e das memórias para designar esse tipo de ficção na qual o narrado fica a cargo do “eu” do autor, ainda que seja dirigido em terceira pessoa, ou mesmo em primeira (por que não?). Por acaso, uma terceira pessoa não poderia escamotear a primeira ou vice-versa? Na opinião dela, esse tipo de subgênero literário é fruto do nosso tempo e tem a ver com a impossibilidade com que o escritor, um autor se defronta diante do seus “limites” de “compreensão da totalidade” num mundo altamente complexo como é o que estamos vivenciando a duras penas.

       Ora, esse fato determinante conduz o escritor para uma forma de escapar daquela impossibilidade, fazendo com que se volte para a sua própria identidade, a sua história pessoal e os seus dilemas específicos. No então, assinala a ensaísta, a vida pessoal de um autor não constitui em si uma chancela para que sua autoficção se torne uma feliz elaboração estética. É precisos que o autor vá mais além das peripécias pessoais e adentre as condições fundamentais de produção de textos que tenham algo mais a dizer em termos de linguagem e de composição estética. Seria preciso que a obra de autoficção não só desvele “autoconhecimento,” mas também “compreensão dos outros.”

        Ou seja, não é o dado narcisista que é relevante, mas a realização literária pela linguagem, pela excelência do nível estético e humano. Mais um tópico de que fala a ensaísta refere à sua desfavorável posição com respeito às abordagens conhecidas como culturalistas na literatura. Não negando a validade da literatura como manifestação histórico-cultural, a ensaísta toma posição mais ousada e muito aderente ao elemento da “imaginação” e da forma da linguagem da escrita literária que, para ela, são componentes intrínsecos do fenômeno literário.

       Ao afirmar que não se opõe às discussões de temas políticos e polêmicos como o feminismo, o homoerotismo, por exemplo, a ensaísta reforça a ideias de que literatura não é “panfleto” nem “manifesto.” Nada, segundo ela, contra as questões políticas, desde que estas não se sobreponham às qualidades do fazer literário, desde que não abra mão do ato criativo com “valor estético” e cognitivo” Ao abordar a situação da literatura no meio universitário, ela chama a atenção para o fato de que hoje em dia as comunicações acadêmicas em congressos só interessam, em alguns casos, aos iniciados, aos universitários de letras.

       Sua entrevista reage com firmeza contra quem entende ser a “obra de arte” um produto comerciável, consumível, descartável, com produto passageiro, isso tudo na contramão do sentido de “conservação”,  valorização e perenidade da arte literária. No balanço que faz da literatura contemporânea, ela reconhece que a literatura tem agora uma “presença frágil” na mídia.” Para que sobreviva, ela precisa de alavancar meios de melhorar a leitura e o ensino da literatura. . 

       Contraditoriamente, concluo, a ensaísta frisa que o número de publicações literárias é muito animador e mesmo grande e em  suas palavras para a atividade da crítica literária ela deixa perceber que os críticos perderam o antigo reconhecimento que alcançou seu apogeu “nos meados do século XX, o mesmo valendo para a literatura que, no seu juízo, perdeu seu lugar de destaque passando, com o tempo, a se misturar com o rótulo geral e insosso  de outras vias de comunicação, resultante, é óbvio, do avanço incontrolável, da indústria cultural e de  todas as suas nuanças.O leitor interessado na discussão de todas essas questões encontrará o aprofundamento delas na nova obra da ensaísta, razão da entrevista, Mutações da literatura no século XXI (Companhia das Letras).