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[Carlos Evandro Martins Eulálio]

Antes de abordarmos algumas questões referentes ao ensino de literatura, farei um relato sucinto de minha experiência como professor dessa disciplina. 

Iniciei o magistério nos primeiros anos da década de 1970, como professor de Literatura do Ensino Médio, antigo Segundo Grau, durante a vigência da LDB 5.692/71, que a dividia em Língua e Literatura (com ênfase na Literatura Brasileira), época marcada por uma concepção tecnicista de ensino. Devo dizer que vivenciei várias fases do ensino de Literatura, tanto em escolas públicas quanto em estabelecimentos privados.  


As aulas eram sempre expositivas, com apoio limitado de recursos: apenas o quadro de giz e o manual didático, que  por sinal ainda hoje circula na escola.  Geraldo Matos, Audemaro Taranto, Douglas Tufano são nomes de autores desses manuais com os quais trabalhei em sala de aula.. Esses livros não eram tão atrativos quanto os de hoje. Mesmo porque há uma maior diversidade de autores e de reedições, embora o modo de apresentar a literatura e de conceber o seu ensino não tenham sofrido grandes alterações. Hélder Pinheiro destaca dois modelos de livros didáticos de literatura: “os livros de coleções voltadas para os três anos do ensino médio e os de volume único, que nalguns casos, é uma junção dos três volumes das coleções. Esses modelos são, quase sempre, de língua e literatura e, em muitos deles, a literatura é a menor parte.”  Há algum tempo esses livros vêm reservando um bom espaço para exercícios de vestibular.


  Atuei também nos chamados cursinhos pré-vestibulares, que surgiram na época do desmonte definitivo da escola pública de qualidade, iniciado no período da ditadura militar e consolidado pelos últimos governos democráticos. Os cursinhos eram instituições de reforço, procuradas em geral pela elite de maior poder aquisitivo. Não estavam comprometidos com um ensino que privilegiasse a construção de conhecimentos competências e habilidades, embora tivessem a capacidade de aprovar no vestibular um maior número de alunos do que as escolas tradicionais. Todo o material didático era produzido e preparado pelos professores, preocupados em ministrar o conteúdo de três anos em um só. Isso para não falar nos intensivões com seus simulados e corujões, que adentravam as altas madrugadas. Surgem nessa época as apostilas mimeografadas e os resumos de obras literárias, institucionalizados nas melhores escolas do país. Aos poucos os cursinhos foram desaparecendo, dando lugar aos terceirões das grandes escolas, que atualmente utilizam os mesmos procedimentos didáticos desses cursinhos, quando propõem fazer a revisão de todo o conteúdo ministrado nas séries anteriores.


Constato que, durante todos esses anos, o ensino de literatura em quase nada se modificou. Um simples exemplo comprova o que afirmamos: na primeira série do ensino médio, o conteúdo da disciplina continua voltado para alguns conceitos básicos de teoria da comunicação com rudimentos de teoria literária, como requisitos para a interpretação de textos. Os conceitos mais trabalhados são as características da linguagem literária em relação à não literária, estudo dos gêneros, versificação, formas e fôrmas literárias e iniciação aos estilos de época, com uma introdução superficial á Literatura Portuguesa, para situar o classicismo no Brasil. Os fragmentos de textos são os mesmos, recorrentes em praticamente todas as reedições de livros didáticos. No segundo ano empreende-se o estudo do Romantismo, Realismo e Simbolismo. Pré-Modernismo e Modernismo ficam para o terceiro ano, que por sinal não dá conta desse conteúdo, dado o volume de informações sobre o assunto. No 3º ano do Ensino Médio nos deparamos com o seguinte quadro: vemos um aluno desmotivado, preocupado com o vestibular, e um professor ansioso por ministrar um vasto conteúdo programático, além de ter que intercalar aulas com a leitura das obras que constam nas listas do vestibular. 


A propósito, William Cereja, na obra Ensino de Literatura: uma proposta dialógica para o trabalho com literatura, São Paulo, Atual Editora, 2005, divulga o resultado de uma pesquisa realizada com professores e alunos de quatro colégios da rede pública e particular de São Paulo, sobre como tem sido e como vem sendo a prática de ensino de leitura e literatura no Ensino Médio. Destacamos desse trabalho o seguinte relato: “Os professores de literatura entrevistados mostram-se, na maioria, premidos pela sombra do “fantasma” do exame vestibular. Definem as leituras extraclasse a partir da lista de obras solicitadas pelos exames; elaboram provas a partir de questões de vestibulares antigos, mostram-se insatisfeitos com o tempo de que dispõem para administrar um vasto conteúdo; sentem-se cobrados por toda a comunidade escolar. Por força desses elementos, por vezes formulam provas com questões exclusivas de exames vestibulares, distanciando a avaliação de suas práticas concretas de ensino”.


Esse cenário é o mesmo não só em São Paulo, mas em todo o país, uma vez que no Ensino Médio atualmente o núcleo da disciplina Literatura tem como referência o conjunto de obras recomendado pelas comissões que presidem os exames de vestibular das nossas Universidades. Se ainda existe Literatura no Ensino Médio, sobretudo na última série, deve-se a uma exigência do vestibular, fato constatado por Regina Zilberman ainda no século passado ao afirmar: “o vestibular de cujo programa invariavelmente a literatura faz parte, converte-se no limite e na razão de ser de seu ensino, sendo também o vestibular que determina a perspectiva com que a literatura é estudada”. 


No passado não discutíamos tanto quanto hoje questões de natureza pedagógica que suscitam perguntas do tipo: Como devo motivar o aluno a ler? Que métodos de ensino devo adotar em sala de aula, para que meus alunos se interessem mais por Literatura, uma vez que é difícil competir com outros meios de comunicação mais atrativos? Como enfrentar o desprestígio da Literatura em relação a outras disciplinas, consideradas de maior importância para o vestibulando? Como diversificar a forma de abordagem do texto literário?  Por que os alunos que concluem o Ensino Médio apresentam baixo rendimento no âmbito da leitura? Essas são algumas dentre  outras perguntas com as quais nos defrontamos no dia-a-dia escolar. O fato é que professores, associações de escritores e demais estudiosos do assunto mostram-se preocupados e em busca de novos rumos metodológicos para o ensino de Literatura. Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ministério da Educação, PCNs, documentos que orientam o ensino brasileiro, nenhuma  contribuição trouxeram para orientar as práticas didáticas de Literatura no Ensino Médio. Cereja, referindo-se aos PCNs, afirma: “a insatisfação dos professores em relação aos PCNEM tornou-se quase uma unanimidade. Primeiramente, por conta da insuficiência teórica e prática do documento; em segundo lugar, porque faz críticas ao ensino de gramática e de literatura sem deixar claro como substituir antigas práticas  escolares por outras, em consonância  com as novas propostas de ensino; em terceiro lugar, porque, na opinião de muitos professores, a literatura conteúdo considerado a “novidade” no âmbito da disciplina no ensino médio – ganhou um papel de pouco destaque no documento, isto é, o papel de ser apenas mais uma entre as linguagem que se incluem na área de “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”: língua estrangeira, educação física, educação artística e informática”. (CEREJA, 2005, p.114)


Enquanto não chegam as soluções e as respostas que esperamos, cabe ao professor buscar alternativas como as sugeridas por Ivanda Martins, no texto “A literatura no ensino médio: quais os desafios do professor?


Para a autora, é fundamental que a literatura seja abordada na escola com base nas contribuições da Teoria Literária, que facilitam a interação do leitor com o texto literário. Citando Beach & Marshall, alerta para a necessidade de se distinguir leitura da literatura, relacionada à compreensão do texto e ao conhecimento prévio do leitor,  de ensino da literatura, voltado para o estudo da obra literária, com base na sua organização estética. Aconselha que se promova uma articulação entre esses dois níveis dialogicamente relacionados. Partindo dessa perspectiva sugere abordar a literatura tendo em vista as noções de intertextualidade (cruzamento de textos), interdisciplinaridade (articulação do texto com outras disciplinas), Intersemiose (inter-relação de diferentes códigos semióticos) e transversalidade (artuculação do texto com temas transversais, propostos inclusive pelos PCNs: ética, saúde, orientação sexual, trabalho e consumo, meio ambiente e pluralidade cultural). 


O professor de Literatura do Ensino Médio tem ainda pela frente muitos desafios. No contexto atual, marcado pela cibercultura, sua oportunidade de acesso aos mais sofisticados recursos eletrônicos e hipermidiáticos são inumeráveis. A literatura digital está na rede à espera de leitores navegantes. Já existem vários experimentos em hiperfificção. Há um conto “A d@m@ de espadas”  que os convido para ler no site http://www.facom.ufba.br/dama/index.htm, de autoria do Prof. Marcos Palácios da Faculdade de Comunicação. Observem as instruções do autor: “a história é navegável a partir de um Mapa. Todos os elementos do Mapa são clicáveis e são links para textos ou sites. Todos os gráficos, fotos e ilustrações nos textos são também clicáveis. Palavras em destaque nos textos são links para outros textos. Para voltar ao Mapa ou à tela anterior clique no Labirinto. Não há uma ordem de navegação, cada leitor estabelece sua rota. Em caso de pane ou pânico use o Retorno de seu Browser.”


O contato com a hiperficção seria um ponto de partida também para compreender textos produzidos na forma de hipertexto e que não estão na Internet, como O Jogo de Amarelinha, de Júlio Cortazar (1966), Se numa noite de inverno um viajante...(1981), de Italo Calvino e O jardim de veredas que se bifurcam (1941) de Jorge Luiz Borges.  Há  um artigo do prof. Luiz Antônio Marcuschi, “O hipertexto como um novo espaço de escrita em sala de aula” que recomendo para os iniciantes no assunto.   


 Maria Rosa Oliveira & Samira Chalhub apontam a relação professor / aluno como extremamente importante para o ensino de literatura, pois ela constitui a mola propulsora “por onde perpassa uma leitura de mundo: o olho do mestre, a visão do aluno. E constatam a existência de um ensino provisório, que tem por objetivo ajudar o educando para seu ingresso na Universidade e de um ensino desafio, que visa a educar a sensibilidade criativa do aluno. O ensino provisório satisfaz a ideologia do sistema, à instãncia curricular apenas, enquanto que na segunda hipótese estaria o professor adotando uma atitude de crítica e de paixão, se o material que seleciona responde aos apelos da modernidade, como consciência de linguagem que requer de quem ensina o domínio de um repertório cultural-associativo, interdisciplinar, capaz de promover na sala de aula um diálogo com outros códigos, como a música, a pintura, o cinema, a linguagem publicitária, a televisão, o teatro etc. 


 Finalmente quero concluir com um conselho de Rubem Alves: o magistério requer do professor que ele atue como o educador que sente no corpo o prazer da sedução pela arte de ensinar. E a arte de seduzir implica trabalhar com conhecimentos rigorosos, pois “o prazer engravida, mas somente o sofrimento faz parir.”

BIBLIOGRAFIA
CEREJA, William Roberto. Ensino de Literatura: uma proposta dialógica para o trabalho com literatura. São Paulo : Atual, 2005.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo : Contexto, 2006
MARCUSCHI, Luiz Antônio. O hipertexto como um novo espaço de escrita em sala de aula. In Língua Portuguesa em debate: conhecimento e ensino. José Carlos de Azevedo (org.) Petrópolis : Vozes, 2007.
MARTINS, Ivanda. A literatura no ensino médio: quais os desafios do professor? In Português no ensino médio e formação do professor,  Clécio Bunzen e Márcia Mendonça (org). São Paulo : Parábola, 2006
OLIVEIRA, Maria Rosa D. e CHALHUB, Samira. Ensinar Literatura, hoje: em três tempos In Cadernos PUC n. 8, Sçao Paulo, Arte & Linguagem, p.39/56, s/d
PINHEIRO, Hélder. Reflexões sobre o livro didático de literatura. In Português no ensino médio e formação do professor, Clécio Bunzen e Márcia Mendonça (org). São Paulo : Parábola, 2006.

(8) Palestra proferida no II ENCONTRO LINGÜÍSTICO E LITERÁRIO  DO MESTRADO EM LETRAS DA UFPI, em 27.09.2007