Antonio Candido tem um ensaio que, escrito em 1988, em muitos ângulos, me parece ainda bem atual. O seu título é sugestivo: “O direito à literatura.” Pertence à obra Vários escritos (São Paulo: Duas Cidades, 1995, p. 235-263).O tratamento original, pelo viés da sociologia da literatura, que o notável crítico e historiador literário dá a esse ensaio, exposto em estilo cristalino e ao mesmo tempo profundo, como é habitual nos seus textos, qualidades que o tornaram um dos mais admirados e respeitados críticos brasileiros, chegando a ser amado por uma legião de estudiosos e especialistas em literatura, permite-nos acompanhar uma discussão de um tema cujo eixo central vem a ser o lugar que a literatura deve destinar aos excluídos.
Como fio condutor do desenvolvimento de suas reflexões sobre o assunto, Candido traz à baila uma distinção formulada pelo sociólogo francês Louis-Joseph Lebret, um padre dominicano fundador do movimento Economia e Humanismo, com quem o critico brasileiro manteve contato nas décadas de 40 a 60 do século passado. A distinção do sociólogo francês reconhece o que ele denomina ‘bens compressíveis’ e ‘bens incompressíveis’. Os primeiros abrangeriam objetos como cosméticos, enfeites, roupas supérfluas. Os segundos incluiriam outra natureza de bens, como o alimento, a casa, a roupa, ou seja, o que indispensável ao indivíduo.
Reconhecendo a dificuldade de absolutizar os dois tipos de bens propostos por Lebret, Candido vê, entretanto, nessa discussão, uma questão associada aos direitos humanos e, para tanto, o crítico inclui outros direitos humanos como básicos, inclusive o direito de acesso pelos excluídos à instrução, à saúde, à liberdade, às crenças religiosas, ao lazer, à arte e à literatura. Todos eles seriam, dessa forma, contemplados pelos ‘bens incompressíveis.’
Por conseguinte, o foco do debate aberto pelo ensaio de Candido é, numa palavra, procurar solucionar o problema da exclusão a que são relegados considerável segmento da nossa sociedade através da incorporação deles a esses ‘bens incompressíveis. E aí se incluem obrigatoriamente os bens espirituais e estéticos, tendo à frente o direito à fruição da literatura por essas camadas de baixa extração social.
O ensaio tem duas décadas de escrita e, ao que me consta, as luzes lançadas sobre a tentativa de solucionar um problema dessa natureza não alcançaram ainda hoje resultados concretos satisfatórios. Haja vista a realidade ainda gritante do enorme fosso social que separa ricos e pobres e miseráveis. Entretanto, é por isso mesmo que a intenção do ensaio permanece ainda como um desafio e como uma luz aberta à atenção dos responsáveis pela educação brasileira.
A insistência do tema do ensaio exemplar na relação entre direitos humanos e direitos à literatura , bem como a outras artes em geral, é tanto mais fecunda quanto mais rebate o autor nos fundamentos da função da literatura como via certa de alargamento do espírito e do sentido sobretudo de humanização entre as pessoas. Quer dizer, a educação pela literatura é uma educação para o mundo do entendimento entre as pessoas, uma saída para uma entrada em direção ao refinamento estético-espiritual do indivíduo, uma compreensão ativadora de estímulos e de amadurecimento onde as mentes se tornam mais sadias, alertas, conscientes e mais preparadas para enfrentar a realidade e sua complexidade.
Literatura torna-se, então, um sólido componente da vida de um cidadão livre, crítico e reflexivo, distante, portanto, daquela afirmação leviana e alienada de que a literatura é “o sorriso da sociedade”, de Afrânio Peixoto( 1876-1947) Ver BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 38a São Paulo: Cultrix,. ed., 2001, p. 197)
O ensaio de Candido assume uma importância maior e mesmo decisiva porque extrapola os limites de um valor apenas circunscrito ao mero debate intramuros universitário e, ao contrário, propõe uma tomada de posição de interesse social e mesmo de política educacional no que tange a um bem de cultura, que é o universo literário, sobretudo nos gêneros da ficção, da poesia e do drama. Ou seja, o ensaio é mais ambicioso nos seus objetivos porquanto articula camadas excluídas da sociedade e inclusão intelectual pela práxis da literatura. O estudo de Candido que apenas parece literario stricto sensu se transforma numa bandeira autêntica de uma reivindicação coletiva de cunho político-educacional.
Em geral, ao homo economicus, ao técnico ou cientista muitas vezes a palavra literatura, estudos de Letras, se afigura algo pouco concreto ou nulamente utilitário., coisa de sonhadores ou de quem não tem o que fazer.
Essa visão míope e preconceituosa com relação aos bens espirituais e estéticos talvez ainda ressoa na mente da contemporaneidade. É dessa distorção que o luminoso trabalho de Candido me parece querer nos livrar e o faz simples e eloqüentemente.
O aspecto mais relevante no ensaio posso localizar naquelas passagens nas quais a argúcia do crítico nos chama a atenção para o produto da criação literária, mostrando que tanto num soneto menos opaco como num soneto de alta opacidade, o leitor educa o seu espírito e a sua sensibilidade, a par de exercer um maior esforço da sua inteligência quando se defronta com uma forma poética cuja organização se estriba na sua estrutura estética, a qual é resultante de uma intencional passagem do caos à forma desejada ou possível atingida pelo escritor, o que ele chama de “forma ordenadora” (p.250). Em outras palavras, um conto, um romance, um poema têm sua especificidade, sua organização, sua “forma”, e o seu efeito no leitor só se exerce quando essa organização da mensagem e estratégia estética tem “eficácia estética”, e é ela que vai permitir ao leitor a passagem do estado de ignorância para o estado do conhecimento e da realidade transmitida Observe-se atentamente que Candido sempre leva em alta consideração o elemento estético na produção de uma obra literária.. Daí a elevação do seu entendimento do fenômeno literário.
O ensaísta não crê tampouco, assim me parece indicar seu estudo, que, mantendo-se essas desigualdades sociais “iníquas,’ se vá conseguir alterar esse estado de exclusão cultural. As mudanças só virão ocorrer na medida em que o Estado brasileiro pensar diminuir as barreiras sociais, e procurar incluir as massas populares, a pouco e pouco, no bolo cultural, que deve ser compartilhado por todo brasileiro, usufruindo dos bens culturais, tanto de procedência popular quanto erudita, naquele espírito de pesquisas que tanto agradavam a Mário de Andrade. Nada de separação cultural, nada de não acreditar que o pobre não tem capacidade de assimilar o erudito e o clássico. Basta dar-lhe oportunidade, pela elevação da qualidade do ensino brasileiro, pelo estudo, pela educação, pela literatura, pela igualdade de direitos humanos
Essa a conduta justa e correta de quem governa um povo, não aquela que todos conhecemos, que é a de incentivar, proteger, dar todo aparato técnico, publicitário, midiático, de segurança ao espetáculo, por vezes alegre, por vezes bem trágico, do pão e circo nos maracanãs da vida. Invertamos os papéis, transformando os fanáticos violentos do futebol em fanáticos fruidores da literatura, que – essa sim -, é vida, conhecimento do mundo e consciência plena da realidade que nos cerca.