Paisagem Brasileira - Foto de Marcelo Alves


 

Voltando aos casos da família de meu avô Joaquim Pereira da Cunha, no período compreendido entre 1920 a 1933. Um dos filhos de Joaquim Pereira da Cunha, por nome Raimundo Pereira, que tinha por apelido Déco, era casado com uma prima, por nome Antoninha, filha de Antônio Acácio Pereira e de Francisca Alves Pereira. (O Déco era meu tio, irmão de minha mãe Antoninha). O tio Déco Pereira era um homem de altura mediana, franzino de corpo, não tinha a musculatura igual a alguns de seus irmãos, mas, era um homem de uma força extraordinária, de fazer os seus colegas ficar admirados, como, por exemplo, um de nome Ramiro, que era primo dele, quase da mesma idade. Os dois trabalhavam sempre juntos, ora em carro de bois, ora em carpintaria. Eram mesmo como dois irmãos.

 

 

 

Naquela época, em dia de festa religiosa, ou em festa de casamento, o assunto dos homens era só sobre negócios, ou trabalho de qualquer espécie, ou sobre as pessoas de mais capacidades para o trabalho, ou de mais força, enfim, era uma espécie de falatório da vida alheia. E enquanto isso, eu, ainda com pouca idade, fazia as minhas observações.

 

 

 

E, em uma festa de casamento, sendo eu ainda menino com a idade de treze anos mais ou menos, escutei Ramiro, que estava com mais uns seis a oito homens, conversando sobre homens de muita força física. Eu apreciei Ramiro, contando aos demais, sobre a força física de tio Déco. Ele dizia: “– Quem vê o físico de Déco, nunca póde imaginá a força que  naqueles braços finos” (comentando sobre uma casa que eles estavam fazendo). Dizia Ramiro que, uma viga de madeira lavrada, que precisava duas pessoas para levantar de um lado, para encaixar na esquina da casa que eles estavam construindo, o Déco, com aqueles braços finos, levantava, só com um dos braços. O assunto continuou quase a noite toda, sobre o Déco. Dizia Ramiro que, o Déco, em tudo que ia fazer, fazia com diligência. Tanto como carpinteiro, como carreiro, ou na roça: o Déco era pra todo serviço. Hoje, eu também posso afirmar a força e competência de tio Raimundo Pereira, que nós, sobrinhos, tratávamos de tio Déco.

 

 

 

Tio Déco era um homem brincalhão, sempre com um sorriso estampado na boca, como nos olhos. Eu tenho uma recordação do tio Déco, sobre um casamento de uma de minhas primas, por nome Geraldina, a primeira filha de tio João de Souza (meu tio pelo lado paterno), que era casado com Cotinha (uma das filhas de Antoninha Pereira, que, por sua vez, era filha de João Argolão, meu bisavô pelo lado materno).

 

 

 

Antoninha vendeu a sua propriedade em Cachoeira dos Pereiras e comprou um Sítio na cabeceira de um ribeirãozinho localizado próximo a um Arraial denominado como São João do Norte, pertencente ao Município de Divino de Carangola. E Antoninha Pereira levou também tio João de Souza (seu genro) com a família. O lugar era um alto de serra, aonde no topo a vista alcançava a distância de cinco a seis léguas, o que equivale a uma medida de trinta a trinta e seis quilômetros, mais ou menos. Nessa época, eu tinha treze anos, e fiz a marcha (nupcial) a pé, acompanhando o noivo, por nome Antônio Ferreira, um rapaz ainda moço, que era empregado de tio Luizinho Pereira.

 

 

 

Naquele tempo, em dia de casamento, havia o costume de acompanhar os cortejos a pé, ou a cavalo, desde as respectivas residências dos noivos até o local do casamento. Assim, sempre havia dois cortejos, um do noivo, com seus amigos e familiares, e outro, da noiva, da mesma forma. Nesse dia, eu acompanhava a caminhada do cortejo do casamento do noivo Antônio Ferreira.

 

 

 

Nesse dia, havia uma missa na Fazenda de Candinho de Souza, que ficava entre a casa de tio Luizinho Pereira e a casa de tio João de Souza, e, assim, combinaram para ser realizado o casamento na Fazenda de Candinho de Souza. Ali, seria o encontro dos noivos. O tio Luizinho Pereira morava bem retirado de nossa casa, mas, o cortejo do noivo tinha que passar perto de nossa casa, pois em nossa casa reuniram-se as pessoas que iam acompanhar o noivo. E o tio Déco estava também esperando o cortejo do noivo em nossa casa.

 

 

 

Assim que o noivo apontou no alto do morro com seu acompanhamento, nós saímos de nossa casa e encontramos com eles logo à frente. Da Cachoeira dos Pereiras até a Fazenda do Candinho de Souza, deveria ter uns vinte quilômetros mais ou menos. O tio Déco, muito animado, não deixava de gritar, sempre naquela brincadeira, até chegar à Fazenda de Candinho. Chegamos na Fazenda de Candinho de Souza, e Gerardina e seu acompanhamento já estavam lá, vindos de uma distância de uns vinte quilômetros mais ou menos. A missa foi rezada às dez horas e, assim que o padre terminou a missa, fez o casamento dos noivos Antônio Ferreira (que era conhecido por Antônio Saturnino, nome que foi herdado de seu pai) e Geraldina Alves de Souza.

 

 

 

Dali, da Fazenda do Candinho de Souza, depois da cerimônia do casamento, nós saímos e fomos para a Serra de São João do Norte, aonde era a residência de tio João de Souza. O mais importante dessa história toda é sobre tio Raimundo (o Déco), que não parou de gritar, sempre animado, caminhando a pé, caçoando com um e com outro. De vez em quando, ao longo da caminhada, no meio daquela algazarra toda, ele dava uns gritos. Nisso, nós passamos pela ponte de tábua, que ficava dentro da Fazenda de Pedro Neto. A ponte de tábua passava por cima de um ribeirãozinho d’água, que vinha da cabeceira de São João do Norte até a casa de tio João de Souza. A começar da ponte de tábua, até a casa de tio João, deve ter uns doze quilômetros, mais ou menos. Nesse trajeto todo, o tio Déco não parou de gritar. A alegria era tão grande, que parecia que o meu tio estava fora de si. Até hoje, eu me recordo como ele gritava. Fazendo gestos de muita euforia, ele gritava: “– Bota taquara no fogo João de Souza”. Caminhando e gritando até entrar adentro da casa do tio João. A metade desse trecho é subida de serra, muito íngreme, e, mesmo assim, ele não parou de gritar. Eu quase não aguentei de cansaço e dor nas pernas, pois foi pela primeira vez, que eu fazia uma viagem, tão longe, a pé.

 

 

 

A casa do tio João de Souza era de estuque, mas, bem grande. Apesar da comemoração nupcial ter acontecido em um alto de serra, em um lugar ermo afastado de tudo, foi uma festa de muita gente. O povo já estava acostumado a subir serra, principalmente sabendo que haveria baile durante a noite.

 

 

 

Meu tio Déco Pereira não era pra ser um homem alegre, pelo o que aconteceu com ele quando ainda era bem moço. Ele já estava casado quando aconteceu, com ele, um acidente. Sempre que ele ia à missa, na Igreja do Divino do Carangola, quando voltava pra casa, trazia rosca seca para os filhos que ficavam em casa com a tia Antoninha. Ele chegou até a padaria de um outro João de Souza, que era conhecido comoJoão Padeiro, na Rua Nova, quase na saída do Arraial, e quando chegou na padaria, o caixeiro, um menino chamado José, que tinha o apelido de  Chica, estava com uma arma-de-fogo na mão. Nisto, quando ele chegou, o garoto tava brincando com a garrucha na mão, e puxando o gatilho. Havia uma bala que ainda não tinha sido detonada, e a garrucha disparou. A bala veio alojar na virilha de uma das pernas de tio Déco. A bala encruou, e tio Déco foi examinado por médico, que dizia que a bala encostara-se a um nervo, e que não podia tirar, porque poderia correr o risco de tio Déco não aguentar, e ele podia até morrer, porque o lugar do machucado era sensível, era perigoso tirar a bala.

 

 

 

Naquela época, a medicina era muito atrasada, ainda não havia operações, e, por uma coisa simples, a pessoa morria, isto porque os médicos tinham medo de cortar na carne humana, e também não havia anestesia, não havia Lei de indenização. O tio Déco ficou puxando de uma das pernas, e, toda volta de lua, ele sofria com aquela bala encravada na virilha de uma das pernas. Mas, mesmo assim, ele não deixava de ser um homem alegre, animado, trabalhando sempre do mesmo jeito de sempre. Tio Déco Pereira não teve vida longa; talvez por causa desse acidente. Aos quarenta anos, ele faleceu.