0

 

- Ele consegue nos ouvir?
- Não. Está inconsciente.
- Então? Quanto tempo ainda?
- É difícil saber. O velho é forte, podem ser horas ou dias. Não sei.
Impaciente, o homem saiu do quarto. Precisava tomar algumas decisões. Enquanto isso, o médico voltou a cuidar do enfermo. Tentaria uma nova sangria. Quem sabe, limpando o seu sangue, o velho se recupere. Olhando para o vulto imóvel na cama sentiu pena. “Pobre homem”, pensou, “ainda não morreu e os abutres já estão à sua volta”. Preocupado, com o que iria fazer em seguida, o médico não percebeu a contração na face do doente.
Não estou morto! Minha mente está intacta. Ouviram?! Esforço-me em me fazer ouvir, mas nenhum som escapa da minha boca. Quero gritar. Preciso gritar. O Sol é o centro! Vocês me escutam? O Sol é o centro!
No quarto, ouvia-se apenas a respiração entrecortada do velho. Sentado em uma cadeira, ao lado da cama, o homem segurava com força um livro. Apesar de não tê-lo escrito, sentia que era seu dever protegê-lo. Ele, no entanto, ainda não fora concluído, faltava-lhe uma introdução. O homem refletia justamente sobre a melhor forma de redigi-la. Era uma responsabilidade muito grande. Afinal, aquele livro poderia tornar-se o prenúncio de uma verdadeira revolução. Concentrado em seus pensamentos, o homem não viu o tremor nas mãos do doente.
Não consigo entender. O que eles pretendem? Apesar dos meus olhos físicos nada mais verem, os olhos da minha alma continuam a enxergar. Aquele é o meu livro. Meu! Fruto de anos de trabalho. Meu trabalho! Anos de observações e cálculos cuidadosos. Não há erros ou equívocos. Tudo foi confirmado. O Sol está fixo e é a Terra que se move em torno dele. Vocês estão me ouvindo?! O Sol é o centro!
No quarto um cheiro desagradável impregnava o ar. Uma mistura de sangue, suor e morte. O velho continuava inconsciente. O médico tinha dado o seu trabalho por encerrado, nenhuma de suas sangrias conseguira trazê-lo de volta. Agora só havia uma coisa a fazer: esperar.
Alheios à presença do médico, a um canto do quarto dois homens travavam uma batalha final. Suas vozes eram ouvidas com dificuldade, discutiam em sussurros, receosos de perturbar aquele que em breve estaria entregando sua alma a Deus.
- Você não pode fazer isso. É uma mentira. Uma farsa. – disse indignado o homem mais moço.
- Não seja ingênuo. A simples matemática não pode atestar a verdade dessas hipóteses. – respondeu com desdém o homem mais velho, segurando com força o livro.
- Para ele não eram simples hipóteses. O velho acreditava piamente na veracidade de suas teorias.
- O velho agora nada pode fazer. O que importa é que o livro será publicado. As próximas gerações que decidam se essas ideias são realmente verdadeiras.
- Nem mesmo você acredita nisso. Por que, então, não assinou o prefácio?
- Não sou o autor do livro. Seria uma falta de respeito, principalmente agora que ele não pode mais expressar a sua última vontade.
- Justamente. Suas palavras apenas confirmam o que estou tentando dizer. O velho nunca aceitou a ideia da Bíblia sendo usada para explicar o arranjo dos céus. O que está escrito na introdução nada tem a ver com as ideias defendidas por ele. Repito: é tudo uma grande mentira!
- Estou apenas tentando proteger o trabalho de uma vida. Sustentar essas afirmações como verdades inquestionáveis podem atrair a ira da Igreja. Isso deve ser evitado.
- Mas...
- CHEGA!! Está feito e assim deve ficar.
TRAIÇÃO! TRAIDORES! Estou preso nesse corpo inerte, mas meu espírito está vivo. Escutem-me! Não estou legando hipóteses, mas, verdades. Deus é minha testemunha. Como posso fazer-me ouvir? Não quero morrer assim. Deixem-me falar uma última vez. Durante anos, procurei não expor minhas ideias. Sempre estive dominado por um medo irracional. Havia tantas coisas em jogo, tanto o que perder. Mas, agora, no final, consegui aceitar a verdade. Minhas descobertas não me pertencem mais. Tolos! Ouçam-me! Oh, Deus! Não tenho mais forças para lutar. Receberei o perdão por ter esperado tanto? Cansado... Sinto-me tão cansado...
Um longo suspiro escapou da boca do doente. O médico aproximou-se apenas para confirmar a morte. Sua admiração pelo velho havia crescido durante o longo período de sua doença. Ele lutou até o fim. Em alguns momentos chegou a acreditar que ele se levantaria para expulsar aqueles que muito antes da sua morte já decidiam o que fazer com o seu trabalho. No entanto, parece que no final ele acabara se entregando. “Uma pena”, pensou o médico.
A um canto do quarto, o homem observava com atenção todos os movimentos do médico. Aproximando-se da cama, lançou um último olhar àquele que em vida havia sido seu mestre. Virando-se saiu silenciosamente do quarto, devia cumprir sua última missão. Debaixo do braço levava o livro, enfim, terminado.
A sabedoria da natureza é tal que não produz nada de supérfluo ou inútil.
Nicolau Copérnico
(Astrônomo polonês/1473 – 1543)
 
Publicado originalmente em março de 2009 na coluna QUEDA LIVRE do site ARGUMENTO.NET e em meu livro E TODAVIA SE NOVE (EDIPUCRS)