A gênese de nossa criação literária

Dílson Lages Monteiro

“A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde o vi, e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu ter comunicado a pessoas que a confirmaram. Assim, não conservo a lembrança de uma alfaia esquisita, mas a reprodução dela, corroborada por indivíduos que lhe fixaram o conteúdo e a forma. De qualquer modo, a aparição deve ter sido real. Inculcaram-me nesse tempo a noção de pitombas ­– e as pitombas me serviram para designar todos os objetos esféricos. Depois me explicaram que a generalização era um erro, e isto me perturbou”.

Assim se inicia Infância, narrativa memorialista de Graciliano Ramos, que, ao reconstruir os anos de meninice no interior do Nordeste, serve-nos para iniciar esta autorreflexão incompleta e transitória sobre as veredas largas e múltiplas da linguagem literária em nossa obra, em construção. Servem-nos as palavras de Graciliano para referendar a consciência de que, em nós, a literatura é memórias, sensações e imagens.  

Ela funciona como uma memória cujo fluxo transita para a despersonalização, a partir da qual o eu cede lugar ao outro e a interlocução se estabelece por meio de sensações e jogos semântico-imagéticos em que o individual e o coletivo se confundem e se interseccionam. Na literatura, digo literatura de razoável teor estético, o que buscamos alcançar, é que essa fusão encontra campo mais perfeito, porque, mesmo em obras marcadamente ideológicas, como bem explicou Maingueneau “o sentido da obra não é estável e fechado sobre si, constrói-se no hiato entre posições do autor e do receptor” (  p21).

A esse propósito, lembra Augusto Ponzio, fundamentado nas contribuições de Bakthin, ao vasculhar especificidades do discurso literário:

“Como escritor, o autor não possui mais uma palavra própria, não fala de maneira direta, como o faz, ao contrário, o Dostoieviski jornalista, e quando eu, este eu está separado dele. Não se encontra aí a consciência monologicamente compreensiva, mas uma pluralidade de vozes, de pontos de vistas, e todo discurso é construído de modo a tornar a discordância ideológica irremediável. A palavra do autor, dialogizada nas vozes das personagens, situa-se um diálogo interminável, que  não se refere a problemas solucionáveis no âmbito de uma época a ela relativos, mas a questões últimas, consideradas a partir de situações excepcionais, que possam permitir uma experimentação sem limites de diferentes pontos de vista. Isto confere ao texto o caráter de obra” (p.222)

Em Infância, o vaso a que se refere Graciliano vai além da representação mais exata possível do que seja um vaso. Passa a ser, segundo as palavras do próprio escritor, um conteúdo e uma forma determinada em seu pensamento pela voz de outros enunciadores. Passa a ser a capacidade de percepção do mundo interior em objeto para o qual convergem a busca de sentidos com os elementos do mundo do real, presentes ao seu redor, e a cadeia de novas e  renovadas representações mentais, capazes de inseri-lo no mundo da cultura.

Fixam-se, assim, os sentidos pelo diálogo sinestésico que alimenta as matrizes do pensamento, ou pelo diálogo de vozes, que moldam em nós um significado e que nos encaminham para a verbalização de variadas formações discursivas. Desse modo se dá, em nós, também o processo de criação. Consiste, antes de tudo, numa forma de entender o mundo, de interagir com ele, de compreender e interpretar sua realidade e, principalmente, de transformar, ao nosso modo, as vivências que dele nascem. Nossa voz é um diálogo de vozes que surgem de uma sensação indefinível ou de vivências e observações, às vezes, absolutamente divergentes de nosso próprio pensar.

Assim, se para Graciliano, as pitombas designam, por analogia, todos os objetos esféricos. Em nós, está, por exemplo, a lembrança dos movimentos circulares na pequena praça da cidade natal; ou as correntezas das águas do rio da aldeia, transformadas entre o estio e o inverno; ou o amargor de uma situação indesejada ou a repugnância a ela; ou os sabores, cheiros e cores, que nos saltam sem controle do fundo longínquo de lugares indefinidos, ou etc. Seja escrevendo poesia, seja escrevendo prosa, a leitura literária, e o seu fazer, revela-se a mais aberta possível, para tomar aqui expressão de que se vale Umberto Eco. A linguagem, e sobretudo em sua forma literária – a da diversidade de significados reinstalados a cada leitura – é, no fundo, no fundo, um grande conceito. Afinal, como acertadamente concluíram George Lakoff e Mark Johnson: “a metáfora está infiltrada na vida cotidiana, não somente na linguagem, mas também no pensamento e na ação. Nosso sistema conceptual ordinário, em termos do qual não só pensamos, mas também agimos, é fundamentalmente metafórico por natureza” (p.45).

A base de nossa criação literária fundamenta-se, portanto, na tentativa de fundir memória, imagem e sensação, partindo da preocupação de pôr a linguagem em primeira instância, o que não significa dizê-la necessariamente hermética em essência, mas burilá-la para que funcione como “gancho frio” e fisgue o leitor para dentro do texto em busca de suas próprias respostas.

A literatura é, afinal, uma grande resposta que nos leva a uma certeza: além, muito além das montanhas das letras e de sua vegetação de símbolos e sentidos, há sempre o que perguntar.

Dílson Lages Monteiro é professor, romancista e membro da Academia Piauiense de Letras.