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            [Rogel Samuel]

 

            Colibri entra na sala às 02:32:41 horas. Minutos mais tarde, entra Eros, às 02:34: 01. Assim começa um relacionamento «virtual» que conduz o leitor até o fim do livro, o «Colibri deflora os chats», de Urhacy  Faustino.

            Logo na primeira página Colibri grita:

            «(02:37:29) colibri grita com Bob: garoto como tu es besta apenas acho incrivel esse papo de qual eh o seu sexo antes de perguntar se eu quero falar contigo. eh por isso que fica ai na mao! Mas respondendo a tua pergunta: depende da tua fantasia. A principio colibri é colibri.»

            Ao longo do livro, Colibri muda de nome, i.é, de nick, mas é reconhecível, é encontrável. Colibri, um personagem, o personagem centralizador da narrativa, é um «ente narrativo», tem um «caráter», se revela por seus gostos culturais etc.

            Mas, o que acontece quando deixamos de ser interativos, quer dizer, quando passamos a ser consumidores, leitores de um chat?

            Aí é que vira literatura, leitura, escrita.

            Principalmente se o «narrador», invisível, desenvolve uma narrativa só de diálogos mas que tece a mudança de condição comportamental, mental, de uma espécie de personagem que se revela enquanto fala, digo, tecla.

            É muito comum a pergunta, num chat: «De onde tc?», o que quer dizer: de onde tecla, onde você está, em que cidade, em que país, em que mundo? Ali se pergunta, ali o «querer saber», de que fala Foulcault, é elevado ao mais alto grau: o grau zero. Porque a maioria dos falantes muda de nome, de corpo, de sexo, de gosto, de idade, de experiência, de alegria e de tristeza. Em suma todos «mentem», ou seja, fazem as suas ficções pessoais. A sala de chat vira uma estranha sala de psicoterapia grupal às avessas, de dança de falas rituais, tribais, gueto de auto-revelaçôes e enganos verdadeiros, velados. Ninguém ordena ali: «Diga a sua verdade!» Mas sim pergunta: «A que veio?» Ou seja, qual é a sua fantasia, o seu fantasma? Há uma universal cumplicidade do simulacro. Mas ainda está para aparecer quem teorize tudo isso e o transforme em ciência. Do comportamento. Da sexualidade. Da micropolítica. Da política do cotidiano.

            Casos há verídicos de casamentos arranjados num chat. Também aquele, ocorrido com pessoa de meu conhecimento, que depois de namorar por horas um rapaz sério, carinhoso, educado e carente, pediu, implorou saber onde ele morava. «Se eu disser, você não vai querer falar mais comigo», ele disse. Ela suplicou, jurou. Ele era um presidiário, numa prisão de segurança máxima.

            Aí é que reside o valor do pós-novo-milênio texto - o «Colibri deflora os chats — sexo, amizade e amor pela Internet»,  de Urhacy  Faustino (edição de Blocosonline), 222 páginas. É lá que a "interatividade" da forma digital pode ser compreendida como o espaço estético do projeto artístico de representação através da virtualização, para além da «realidade», através da «simulação». Em vez de a obra de arte celebrar a imitação da natureza, ela reproduz a pós-natureza da cultura dos relacionamentos virtuais, sua apresentação em um estilo de «vida computacional», retrato e parâmetro das emoções virtuais da vida sentimental pós-industrial e cibernética.

            A vida depois do pós-modernismo, o «hacking» do futuro, só apareceu recentemente na literatura - naquela estética da contingência, interculturalista do pós-humanismo, os «City-Texts», as representações, a semiologia das falas, os entrecruzamentos de segmentos das falas (dos «falos») dos desejos (as falas desejantes) no digital anonimato das madrugadas solitárias.

            Pois o «Colibri deflora os chats», de Urhacy  Faustino, é um romance, texto em ressonância com o que deverá ser a literatura do futuro, a literatura pós-morte da literatura. É um belo texto, difícil para uns, fácil os internautas viciados, estranho para o leitor «homem de letras». Um bom livro para «jovens», daquela exótica fauna de mutantes: fosse eu ainda professor de segundo grau como fui por 18 anos, seria o livro ideal para ser adotado pelos alunos da classe-média moderna que lá se sentiram em casa, ou melhor, na sala, apesar da pornografia, do sexual, do machismo, do falo-centrismo e das cantadas, dos «nicks» etc. Tudo isso a garotada tira de letra. Uma jovem me contava, outro dia, que foi «muito legal» o uso da câmera num chat, pois ela conheceu um rapaz, e foi ver a cara dele. «Eu queria ver tua cara», disse ela para o interlocutor, agora visível no outro lado do país. «Se quiser ver o resto...», respondeu ele, começando a tirar a roupa...

Já em 1968,  em Difference and Repetition,  Gilles Deleuze vinha suspeitando de uma estética que se articulava com os "elementos, variedades de relacionamentos e singulares pontos que coexistem na parte virtual da obra ou do objeto sem ser possível designar se o real ou o virtual tem prevalência um sobre o outro" (Deleuze, Difference and Repetition, p. 208). O que Deleuze via como possível era o embrião possível da estética do momento, ou seja, de 1968, que poderia ser entendida como o início  de um novo milênio, tendo como material de fruição a estética interativa do CD-Rom e da instalação virtual (ver: Digital Incompossibility: Cruising The Aesthetic Haze Of The New Media, de Timothy Murray).

«Colibri deflora os chats» é realmente um livro estimulante, exclusivo, original, real/virtualmente inteligente. Se, como viu Aristóteles,  arte é mimesis tés práxeos, imitação da ação, porque as ações fazem parte da vida, e porque a vida dá significado e valor às ações, o livro de Urhacy  Faustino é perfeito. Ninguém colocou, como ele, o non-sense da nossa era pós-preservativo, de sexo virtual, que marca o fim talvez do mundo escrito, ou melhor, da escrita como tal.

Não, não vou me dar a pretensão de realizar um trabalho crítico sobre «Colibri deflora os chats» – pois, além de me faltar competência, teria eu de construir todo um aparato teórico capaz de dar conta do texto. Pois nenhuma teoria implantada anterior me poderia servir. Não, senhor. Estou aposentado. No supremo gozo de agora só escrever crônicas leves.

Mas uma coisa me «devora», e tenho que resumir: na realidade, o personagem «Colibri» se apaixona... Isso é uma desusada reação emotiva pré-virtual, comportamento arcaico, pré-histórico.

Pois «a paixão já não se usa», dizia Cocteau.

É grave. É mortal. Com a paixão não se brinca.

Eros quer «uma real», que «Colibri» não lhe pode conceder. Se saírem do ambiente virtual, o mundo acaba, e ele morre.

E «Colibri» apresenta o seu mais belo discurso, o texto final: « (04:49:00) colibri conversa reservadamente com Eros: Pois bem, se eh assim, enquanto voce estiver nesta sala, fico tambem em silencio, nao por fuga como voce (fuga sim, porque voce optou pelo impossivel: a realidade), mas fico por protesto. Veras meu nome no cursor e saberas que estou olhando para voce, esperando que me ames totalmente, aqui e agora. e se isto nao acontecer, entao te acusarei sem palavras por cumplicidade com este mundo de florestas em chamas, estilingues e asas quebradas...»

(cai o pano, digo, a linha)