A função da epígrafe em Da Costa e Silva
Por Cunha e Silva Filho Em: 07/11/2013, às 16H24
Cunha e Silva Filho
Não se pode ignorar que poetas e mesmo ficcionistas não utilizem os recursos das epígrafes com intenção inócua ou gratuita. As epigrafes, a nosso ver, configuram verdadeiros ícones, indiciam preferências, gostos, definem adesões ou filiações a períodos literários, fases de vanguardismos em voga ou mesmo já superadas. Podem estar, portanto, fazendo alusões ao presente, ao passado próximo ou mesmo antiquíssimo, recorrendo a autores gregos e latinos ou de outras procedências não ocidentais. .No período romântico da literatura brasileira, foi largamente empregado e é bem provável que, a partir do Romantismo, as obras de nossos autores tornaram o recurso da epígrafe uma prática generalizada, segundo podemos ver em Gonçalves Dias(1823-1864), Castro Alves(1847-1871), Álvares de Azevedo(1831-1852), Casimiro de Abreu(1839-1860), entre outros.
O crítico e ensaísta Fabio Lucas, em estudo bastante original,, sintetiza bem o nosso ponto de vista: “O clima intelectual, não há dúvida, transpira copiosamente e das epígrafes.”[1]
Dessa forma, elas podem funcionar como um indicador literário ou ideológico. Seu emprego é vasto na literatura universal, Amplo também no campo do ensaísmo em todos os ramos do saber.
Na definição do poeta, crítico e ensaísta Gilberto Mendonça Telles, as epigrafes, para ele são um tipo de discurso paralelo, atuam em dois sentidos, servem de abertura para um texto novo e ao mesmo tempo sinalizam a sua própria procedência: “... funcionando como elemento de relação do texto com o contexto e sendo, portanto, um dos indicadores culturais da obra.”[2]
Por sua vez, o estudioso Carlos Reis ainda lembra um outro tipo de relação intertextual, de que a epígrafe é um dos exemplos, chamado de paratexto, no qual se enquadram outros textos tais como o prefácio, o posfácio, a dedicatória. Segundo Reis, a epígrafe “... invoca uma palavra autoritária, que é a de um autor ou obra com reconhecido peso cultural. e ainda acrescenta que essa palavra pode-se desdobrar em mais de uma finalidade ou função: temática, ideológica, “veladamente” com inclinação axiológica ou ainda uma função “meramente reverencial” pela qual um autor estabelece uma forma de “ascendência” reconhecida de um autor citado pelo autor que cita. [3]
A escolha de uma epígrafe é um fato deliberado, consciente, um índice, como já referi, pelo qual um autor pressupõe sugerir uma identidade ou afinidade de uma dada situação da sua própria obra com o fragmento citado. Neste sentido, vale também como relação dialógica entre textos de um autor com outro ou outros.
Por outro lado, a epígrafe, mostra a escolha de um trecho de extensão pequena ou um pouco maior de uma obra que representa uma espécie de ápice da semiotização entre um texto – o do autor que cita – e do autor ou autores citados. Esse cruzamento de textos, exprimiria, em geral, a ideia de uma comunhão de visões pessoais, a chancela de uma autor consagrado, ou poderia até ser usado como mera peça decorativa para impressionar terceiros.
Na obra de Da Costa e Silva (1855-1950)[4] comparecem pouquíssimas epígrafes, ou seja, somam ao todo, cinco. Os autores das epígrafes, na ordem, em que aparecem na obra dacostiana são: Verhaeren (1855-1916) na obra Zodíaco (1917)em que, abaixo da citação de Verharen há uma comovente dedicatória a Amarante, berço natal de Da Costa e Silva[5] Verhaeren, no poema homônimo, editado em 1917, constituído de um único poema; Rubén Darío(1867-1916), na obra Pandora(1919);.Shakespeare(1564-1616)na obra Verônica(1927), que se inicia com um poema isolado, de título homônimo e seguido da primeira parte dessa obra, “Imagens da vida e do sonho.” Na segunda parte da mesma obra, “Imagens do amor e da morte”, existe uma epigrafe feita apenas de uma frase, fragmento de uma carta de Heloísa, sobrinha do cônego Fulbert, dirigida a Abelardo, teólogo e filósofo francês.
Ainda na segunda parte de Verônica, há uma dedicatória para Alice, a primeira esposa de Da Costa e Silva, o que também, sendo uma dedicatória, constitui uma paratexto, da mesma sorte que em Pandora, abaixo da epígrafe de Rubén Darío, há uma outra dedicatória em latim dirigida a um irmão de Da Costa e Silva, formando mais um paratexto.
As epígrafes poéticas, ademais, dão manifesta evidência de uma autor sintonizado com o fenômeno poético entendido na sua mais elevada significação. Neste ponto, pode-se perceber o quanto ele foi um poeta atualizado.
Os grandes expoentes da poesia francesa da nova poética ocidental, servindo para ilustrar Verhaeren, Verlaine1844-1896), Mallarmé (1842-1898), Baudelaire (1821-1867), entre outros, foram-lhe leituras frequentes e por certo por ele assimiladas em alguns aspectos, quer temáticos, quer formais.
Vejamos, agora, a primeira epígrafe, extraída de um dos poemas da obra Les forces tumultueses (1902): de Émile Verhaeren, poeta da admiração de Da Costa e Silva:
Oh! Ma misère et ma gloire, cerveau
PA
lais de ma fierté, cave de ma torturre,
Contradictoire amas de problêmes nouveaux
Qui s’acharnent sur la nature.[6]
[Oh! Minha miséria e minha glória, cérebro
Palácio de meu orgulho, refúgio de minha tortura,
Contraditória soma de problemas novos
Que se enfervoram na natureza.] [7]
Não custa nada perceber a tensão dialógica entre os verso acima e a substância temática de Zodíaco: a natureza e tudo aquilo que ela problematiza na consciência do bardo, A consciência aguda dos problemas torna muito mais sofrida a existência de quem sobre eles medita. É glória porque se transmuda em Arte; é miséria porque não concorda com a acomodação e a indiferença. A Arte é uma resposta à insatisfação, à injustiça ou indignação.
A segunda epígrafe de Verhaeren, que é retirada da obra La multiple splendeur(1906), abre o conhecido poema dacostiano dedicado ao poeta belga:
Et le lent defilé des trains funébres
Commence, avec ses bruits de gonds
Et l’entrechoquement brutal des wagons
Disparaissant - tells des cercueils – vers les tenèbres.[8]
[E o lento desfile de trens fúnebres
Principia, com o barulho de gonzos
E o entrechocar brutal dos vagões,
Sumindo – que nem féretros –
rumo às trevas.]
Compare-se, para ilustração, com os quatro últimos verso do poema “Verharen”:
(...)
Na fogosa pressão da máquina, seguida,
Da longa procissão dos vagões de transporte,
Na indiferente e célere corrida,
Ao ruidoso rumor dos seus carros de morte” [9]
Os versos acima, segundo tive oportunidade de comentar linha atrás, mantêm um dialogismo com o final do poema dacostinao se atentarmos especialmente para a conclusão deste, i.e., uma velada alusão ao destino do poeta belga.
Ambas as estrofes verhaerianas utilizadas como epígrafes indicam ainda duas vertentes de Émile Verhaeren, o ambiente urbano tumultuado e o meio físico natural, aspectos da sua temática, de resto, já notadas por analistas de sua poesia, e por outros intérpretes Tal contraste de experiência poética caracterizaria um traço de modernidade à sua poesia. Essa dupla vertente opositiva fora apontada, por sua vez, pelo arguto crítico e ensaísta maranhense Oswaldino Marques como elementos presentes em Da Costa e Silva.[10]
Para aquele ensaísta o “Poeta da Saudade fora da mesma forma que o belga “atraído ao mesmo passo, pela refulgência dos grandes centros culturais europeus e pelo discreto sortilégio de sua Amarante interiorana, dotada, não obstante, do poder de nele inflamar evocações ‘divinas’[11] Contudo, em Da Costa e Silva só em parte poeticamente se realiza, ou seja, em diversas passagens de Zodíaco o poeta dá expansão em poemas versando sobre a paisagem, o homem e a natureza interioranas, como neste ponto o fora para Verhaeren a sua Flandres.
No plano da experiência vivida, sabe-se que Da Cosa e Silva, por razões profissionais, morou em muitas capitais brasileiras. Desta maneira, no plano da realização poética, a atração também pelas urbes, as grandes capitais, nada produziu, apenas ficou nos limites da subjetividade, admiração e desejo.
A epígrafe de Rubén Darío, retirada da obra Cantos de vida y esperanza (1905), que dá entrada à obra Pandora sustenta também um diálogo intertextual com o poeta nicaraguense. Já nos reportamos antes ao ângulo em parte confessional ou autobiográfico da poética dacostiana. Não lhe são anódinos à cosmovisão poemas como: “Ego..”(p. 203) e “...Sum” (, p.204), nem tampouco “Paganismo” (, p. 209), “A sombra de ouro” (, p. 223), “Mater veneranda” I e II (p.224-225). “Saudade” (p.75) e a série de sonetos “Sob outros céus” I, II,II,IV e V (p. 227-229. Neles Arte, vida, revelação e verdade se transfundem em poesia estreme, consoante ressoam nos versos rubendarianos: [12]
Vida, luz y verdad, tal triple lhama
Produce la interior lhama infinita;
El Arte puro como Cristo exclama:[13]
Ego sum lux, et veritas et vita.
[Vida, luz e verdade, tal tripla chama
Produz a inteirior chama infinita;
A Arte pura como Cristo exclama:
Eu sou a luz, a verdade e a vida.]
Na epígrafe que antecede a obra Verônica, formado de um pequeno fragmento retirado da tragédia Macbeth,[14] de William Shakespeare,[15] quero arriscar duas perguntas: 1) Por que Da Costa e Silva acoplou, com leve modificação, uma parte da frase da rubrica anunciando a presença de oito reis, o último com um espelho (glass, em inglês) na mão sendo seguido pelo fantasma de Banquo e com ela forma a epígrafe usada como introdução aos poemas de Verônica? 2) Por que juntou duas partes antes pertencentes a enunciados formados de orações e com isso “criou” uma frase iniciada por um conector aditivo “e”("and", em inglês) seguido de uma oração subordinada adjetiva? [16]
É curioso assinalar que o fragmento da rubrica se completa harmoniosamente com a fala de Macbeth, o assassino do rei Duncan da Escócia. Além disso, semanticamente, as duas partes, antes separadas espacialmente na página e distantes, formam um sentido perfeito e decisivo ao contexto e à situação física do ambiente da tragédia. Não seria possível que Da Costa e Silva pudesse engendrar tal artifício no qual os fragmentos fundidos fazem sentido e são parte da ação dramática com a presença das três feiticeiras? Suponho que, na fusão dos dois fragmentos, haveria antes um procedimento gerado pelo poeta naqueles moldes que já o fizera no que respeita ao poema “À margem de um pergaminho”, da obra Pandora?[17] Por outro lado, atente-se, na referida epígrafe de Shakespeare, para o pronome “us”(“nos”, em português): “And in his hand a glass which shows us many more”.[“E nas mãos um espelho que nos revela muito mais”.] [18]
No texto do segundo fragmento, conforme se vê acima, aparece o pronome “us” (“nos”, em português), e não o pronome “me” (“me,” em português). do texto original de Macbeth. Não implicaria isso num lapso de Da Costa e Silva? Pois esta troca, em princípio, não combina com a realidade dos poemas de Verônica em grande parte focando a condição do sujeito lírico com status autobiográfico. Ou, por outra, não seria deliberada a troca da citação com a finalidade de agregar a situação pessoal do poeta estendendo-a a uma plano universal da condição humana? Paira o enigma ou senão o erro na citação da fonte original. Um crítico, certa vez, afirmou ser um dos requisitos básicos de sua atividade suscitar perguntas, visto ser o ato do intérprete uma sondagem da obra e, por ser assim, um perquirição de natureza plural, multívoca, aberta a novos ângulos e percepções, sem dogmatismos conclusivos e definitivos.
Verônica não trata da luta pelo poder da riqueza e do poder político. Em vez de uma tragédia, é um canto elegíaco. A vida e a morte que nessa obra se cruzam não são produtos da miséria dos homens contra os homens,. Não se configura aqui a vingança contra a covardia. O “espelho,” na mão do derradeiro rei visto através da Macbeth, é apenas a confirmação futura da profecia contada pelas três feiticeiras. Macbeth é a morte anunciada na tragédia da avidez e da cobiça do poder. Lady Macbeth, a sua mulher, é o instrumento da persuasão ao estado da malignidade do marido. Na tragédia a culpa do crime é a certeza da morte do agressor. [19]
Verônica, não, é a vitória do amor, do sonho sobre a vida. O lirismo vai permanecer entre o sonho e a realidade amarga e desesperançada, entre o desejo da felicidade térrea e as dúvidas do além túmulo.O poeta vai debater-se entre alternativas, na dialética entre a carne e o espírito, da alegria e da tristeza, da certeza e da dúvida, e desta a com o imponderável, ou com os enigmas armados pela dor humana, perda do ente amoroso e, contraditoriamente, por certos instantes de ludismo irônico, em versos como “Mas seja tudo pelo amor de Deus.” Ou, em páginas anteriores, aquele final de verso em dísticos, que diz “—Que reticências/ Nas existências!” O “espelho” dacostinao é de natureza diversa. Não traz nenhuma tragicidade, apenas recolhe as alegrias, tristezas e as dores do homem. Faz-se transparente. A bela imagem do aedo como o “espelho do mundo,”[20] do poema “Síntese”, não traduz o enigma final mas recolhe todos os estilhaços da vida em sonhos, perdas, incertezas, lamentos na travessia inexorável do tempo.
A epígrafe concernente à mencionada carta de Heloísa a Abelardo – “Faze de mim o que quiseres, menos esquecer-me.” [21] - é, de resto, bastante óbvia ao associar-se visceralmente à perda da bem amada, formando um sequência dos poemas mais liricamente amorosos de toda a obra do poeta. É um longo e reiterado desfiar de lamento pela ausência da amada, em poemas vibrantes de saudade e de solidão e não estou falando da alta qualidade das composições no tom dolente de ritmos e de musicalidade.
O poeta aqui se revela na sua condição de simples criatura humana que, da matéria bruta da dor pela perda da amada, passa a compor poemas de feição nitidamente romântica, ainda que só de longe possamos encontrar ligeiros traços da imagética simbolista. Artista habilidoso, versátil e conhecedor perfeito e atilado da arte de poetar, artesão do poético, Da Costa e Silva sabia se adequar à forma estética exigida pelo seus temas, afeito que era ao gosto das ousadias formais e experimentalistas, também encontradas em outros poeta brasileiros, como, por exemplo, um Luís Delfino (1834-1910), um Manuel Bandeira(1886-1968), entre outros vozes da poesia brasileira.
O poeta nesse conjunto de poemas de formatos variados, abre o coração e se entrega de corpo e alma a louvar o bem perdido. Nunca foi tão autobiográfico quanto nesse conjunto de versos destinados à sua Alice Creio que só no último poema formado de um quarteto, o mencionado “Síntese”, ele foge ao tema liricamente amoroso da segunda parte de Verônica.
NOTAS:
[1] LUCAS, Fábio. O mundo das inscrições. In: _____.Fronteiras imaginárias. – crítica. Rio de Janeiro: Edtiora Cátedra, 1971, p. 13-30.
[2]MENDONÇA TELES, Gilberto. Os limites da intertextualidade. In: _____.A retórica do silêncio. – teoria e pratica do texto literário. São Paulo: Cultrix/MEC,/INL, 1979, p. 21-37.
[3] Reis, Carlos. O conhecimento da literatura – Introdução aos estudos literários. 2 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1999, p. 217.
Idem, ibidem.
[4] Neste ensaio, todos os textos citados da obra de Da Costa e Silva se referem à seguinte edição: Da Costa e Silva.. Poesias Completas. 4 ed. Nova edição revista e ampliada e anotada por Alberto da Costa e Silva, com estudos sobre o poeta por Oswaldino Marques e José Guilherme Merquior. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000.
[5] SILVA, da Costa e. Op. cit., p. 105. A dedicatória é: "Ao meu longínquo Piauí - na divina evocação de sua natureza maravilhosa". Logo abaixo, a sigla: "DCS".
[6] SILVA, Da Costa e. Poesias completas, op. cit., p. 106.
[7] As traduções entre colchetes são de minha autoria.
[8] SILVA, Da Costa e. op. cit., p. 190.
[9] Idem, p. 189.
[10] MARQUES, Oswaldino. .Espelho do mundo: Refrações. In: SILVA, da Costa e. Poesias completas, op. cit., p.20
[11] Ibidem.
[12] Aqui apenas esboço alguns dados básicos para ulterior aprofundamento das relações intertextuais relativas aos versos de Rubén Darío.
[13] SILVA, Da Costa e. Op. cit., p.198.
[14] Idem, p. 245.
[15] SHAKESPEARE, William. Macbeth. In: ____.The complete works of William Shakespeare. The Cambridge Editon Text as edited by William Aldis Wright, including The Temple notes. Illustrated by Rockwell Kent, with a Preface by Christopher Morley . Philadelphia: The Blakston Company, 1936..
[16] Ver, na nota anterior, a edição citada de William Shakespeare , onde se acha a passagem de Macbeth, Act. IV, i, 73-108, p. 1045.
[17]Cf. . minha análise do poema “Àmargem do Pergaminho” in: SILVA FILHO, Cunha e. Da Costa e Silva: uma leitura da saudade. Teresina: EDUFPI- Editora da Unversidade Federal do Piauí/APL – Academia Piauiense de Letras, 1996, p. 37-39.
[18] Cf. a remissão à nota 13 acima.
[19] Igualmente, no que concerne a maiores reflexões intertextuais entre a epígrafe de Macbeth e Verônica, o autor deste estudo deixa para uma outra oportunidade um desenvolvimento complementar .
[20] SILVA, Da Costa e. Op. cit., p. 305.
[21], Idem,. op. cit., p. 257.