Cunha e Silva Filho

 

Estava de volta do Colégio em que  lecionei durante 12 anos. Ao sair pela porta lateral, por onde passam  os alunos na ida à  escola ou na  volta  dela, virei, à esquerda, na esquina da   calçada.  Foi nessa hora que, à minha frente, com passos firmes,  uma mocinha, com uniforme escolar, e carregando uma mochila nas costas, me deu o primeiro sinal  de desconforto: o cheiro de fumaça. Olhei para as mãos  dela e logo percebi que numa  delas estava segurando, entre dois dedos, um cigarro.

Não sei  por que motivo, mas senti raiva dela. Raiva porque estava fumando e deixando atrás de si um rastro de cheiro desagradável, um cheiro forte de cigarro  grosseiro. Parecia que me fazia aquilo, na minha frente, para me atazanar  a paciência e sentir o  dissabor de levar restos de fumaça na cara. Eu sei que ela estava fumando ao ar livre, mas, mesmo assim, julguei aquilo um desaforo. Parecia que era interminável aquela fumaça se espalhando pelo ar na longa  calçada  que, naqueles momentos, me parecia sem fim. Lá ia ela, indiferente ao meu protesto interior, fumando, tragando, jogando fumaça para trás,  para os lados, para cima, para a frente, fumaça que ia  até as minhas narinas. O pior é que  os passos dela estavam sempre à minha frente. Acelerei o passo para ultrapassá-la, mas em vão. Ela, muito jovem, cheia de  energia ainda, ficava ali à minha frente.

 Parecia realmente que fazia aquilo de propósito, para me castigar, a mim, que  não fumo e detesto fumaça  de cigarro.

Dizia pra mim: puxa, essa garota está me perseguindo mesmo. Para onde vou, ela me  aparece à frente, despejando pelo ar aquela maldita fumaça. E, assim foi que,  por toda a outra rua, tive que aguentar o cheiro  do tabaco forte nas narinas. Até parecia que ela estava fazendo tudo de caso pensado, para me chatear como não-fumante, como alguém que deplora esse vício. Então, passei a refletir sobre as leis que agora estão  fazendo contra  fumantes. Estão certos os legisladores: abaixo os fumantes! Mais respeito aos que não fumam, os “fumantes passivos”, os  mais prejudicados, segundo dizem os médicos. Estava tão distante daquele tempo das cenas de filmes hollywoodianos, onde belas atrizes e galãs costumavam  contracenar fumando  conhecidas marcas de cigarro. 

E, não sei por que  razão, naquele instante de reflexão, me veio à tona  aquela gravura de um jovem de cabeleira lustrosa partida  ao meio, fumando um cigarro. Era uma  ilustração numa página distante do meu livro didático de inglês, o King's English, de Harold Howard Binns, conhecido professor de inglês, ele próprio, britânico, que deu aulas pelo rádio em São Paulo e se tornou autor didático de boas obras para a aprendizagem do inglês nos anos quarenta ou cinquenta, aproximadamente,  do século passado. Até me lembro da frase alusiva à ilustração: "This man is smoking a cigarette".  A nossa memória é engraçada, une o que está solto pelo tempo e pela distância. Eram chic,  tinham charme aquelas cenas  de ídolos nossos fumando. Agora,  não,   a realidade mudou e os cigarros  viraram  objeto de hostilidade,  de  protesto, de reclamação. Qualquer lei que venha nos ajudar a não  respiramos fumaça a contragosto será bem-vinda. Abaixo os fumantes!  Eles  não sabem o que possa sobrevir a esse vício  terrivel, mas tão entranhado quanto os tóxicos infelizmente  usados  pelo mundo afora.

O que  não suportava era o fato de que alguém, mesmo ao ar livre,  espalhasse fumaça na cara  dos outros sem a mínima complacência. Cheguei ao cúmulo de pensar que os legisladores deveriam também   proibir  o uso de cigarro ao ar livre. Sei que seria um exagero exigir-se isso das pessoas fumantes. Afinal, a rua é   púbica, e quem fuma tem o direito de fazê-lo pelas calçadas, na rua, nos parques,  desde que o espaço  fosse  a céu aberto.

Continuei caminhando em direção a minha casa. Já estava relativamente perto. Mas não é que a mocinha não me largava de mão. Prossseguia andando, passos firmes, fumando, fumando, tragando, tragando,  poluindo  o ar livre,  a calçada,  a rua, o mundo, e sempre à minha frente. De repente, me distraí e, ao procurá-la, não mais a avistei. Ela havia se embarafustado por uma das ruas  transversais que ficava  entre  uma  avenida de duas pistas e  uma longuíssima  rua  no bairro da Tijuca.Numa  dessas transversais, ficava o meu prédio.    

Lá se foi a fumaça, o odor, “esse objeto abjeto” que me vinha perseguindo como se eu fosse um criminoso.  O pior é que não a vi de frente, não sei como era seu rosto,  seus  olhos, sua boca. De costas pra mim, sabia que  era morena e tinha o cabelo encaracolado, altura  média. Parecia que não era bonita, porém  um tipo comum de jovem, que não inspirava nenhuma sensualidade no andar. Só isso.

Finalmente,  cheguei a minha casa. A fumaça ficara para trás com aquele cheiro insuportável  que penetrava nas  minhas narinas e me deixara  irritado. Não mais vi a fumante e, se a vi, não a reconheci porque  seguramente  passávamos  um pelo outro  em direção oposta. Pela frente,  as pessoas são diferentes, assim como quem está de óculos escuros e não sabemos como são seus olhos  - espelho da alma e do físico.