“Memento homo, quia pulvis est et in pulverem reverteris”

Cunha e Silva Filho


             Foi ontem mesmo. O porteiro do meu prédio tocou a campainha e, muito suado, com o coração quase saindo pela boca, me fez uma proposta de cunho comercial.
             - Seu Francisco, aqui tem esse monte de livros que ganhei de presente de Dona X, sua vizinha do prédio ao lado.
           Olhei para as três caixas, todas quase apinhadas de volumes, na maioria com capa dura e lombada larga, em bom estado de conservação, como costumam dizer os livreiros virtuais. Logo me lembraram tratar-se de calhamaços jurídicos. Pois não eram?!
           Os volumes pertenceram a um jurista bem conhecido, professor titular de universidade no Rio de Janeiro e autor de muitas obras.Um scholar do Direito, em suma.
          O porteiro, então, sem delongas, me perguntou um tanto desconfiado:
          - Valem muito?
          - Valem, respondi-lhe sem pensar. Voou tentar vendê-los a um sebo de um amigo. Calculo, pelo número de livros, que teremos um lucro de, pelo menos, uns dois mil reais, pois as obras são valiosas. Minhas palavras não passavam de um leigo no ramo de livros usados. Desses dois mil a metade ficará com você e a outra comigo, ou melhor, dividiremos por três, pois meu filho mais novo  também quis entrar no negócio que, para mim, iria dar algum ganho de capital. Todos ficamos contentes com o combinado.
          O porteiro, em seguida, entrou com as três pesadas caixas, ajudado pelo meu filho. Uma das caixas era de plástico duro; as outras, de papelão. Não preciso dizer que minha mulher fez uma cara feia dando-me a entender que tudo aquilo não ia caber no apartamento, já em si atulhado de livros meus, parte na sala , parte nas dependências de empregada.
         Antônio saiu do apartamento cheio de esperanças. Eu, logo, fui examinar os títulos das obras. Naturalmente, pensando que, no meio delas, haveria alguns livros da minha área de interesse. Pois não é que havia?! E livros úteis, um dos quais já tive, mas terminei presenteando a meu filho  mais velho, que também é um bookworm e não pode ver livro em livraria que deseja logo comprar pelo menos um. 
         Os volumes sobre a ciência do Direito eram, na maioria, de autores de renome, como o gigante do Direito Pontes de Miranda, o pernambucano Aníbal Bruno ( que, se não me engano foi autor didático também) José Cretella Júnior(que também foi notável autor didático de compêndios de latim e português do meu tempo ginasiano), José Carlos Moreira  Alves e muitos outros. É bem verdade que as edições eram todas antigas, mas não tanto.
        Assim mesmo, liguei pro meu amigo do sebo que fica no centro do Rio. Qual não foi sua resposta: comercialmente não valiam pra nada, porquanto eram edições desatualizadas. Desmoronei. A notícia veio como um terremoto nos planos de venda e ganhos de capital.
Interfonei pro porteiro, um nordestino esperto:
        - Antonio, os livros não valem um tostão furado.
        - É mesmo? – acrescentou ele com voz quase emudecida pela decepção.
        Conversando com o meu filho mais velho, contei-lhe sobre o acontecido e citei nomes de alguns autores, incluindo os dois volumes de Direito Romano, de Moreira Alves. Sucede, contudo, que, antes de telefonar pro meu filho mais velho, tinha pra mim que lhe reservara uns quatro ou cinco volumes, porquanto sabia que os receberia como bons presentes por ser um estudioso do Direito.
Mas não. Eu só tinha mesmo separado livros do meu interesse específico, segundo atrás assinalei.    Um deles foi um exemplar daquele que já dera, tempo atrás,  a meu filho mais velho, um livro do filólogo Silveira Bueno, Como falar em público, da editora Saraiva.
         Nesta crônica não posso omitir uma particularidade alusiva ao ocorrido. A viúva do famoso jurista -não sei por que razões – não poupou nem mesmo a tese de doutorado do marido, que , na minha modesta opinião, teria pelo menos um valor afetivo ou simbólico pelos anos de união do casal e possivelmente pela dor da saudade do ausente. Sendo a viúva uma nonagenária, é bem provável que não tenha atinado para esse descuido ou cochilo, ode descartar-se da tese do  próprio marido.
        Esta não é a primeira vez que ouço falar do triste destino de nossos livros. Claro que o destino não é o mesmo entre um e outro caso, posto haja semelhanças ou graus de tristeza.
       Os livros deixados para a família podem ser vendidos, descartados ou entregues às mãos calosas do papeleiro ou de um burro sem rabo. Podem ser deixados ainda a um canto da rua esperando o recolhimento pelo carro da COMLURB ( órgão municipal que cuida do recolhimento do lixo na cidade do Rio de Janeiro) . Podem, enfim, ser doados em vida ou post mortem, através de testamento expresso do falecido a bibliotecas públicas ou particulares no país ou no exterior. Obviamente estou me reportando a bibliotecas volumosas, de milhares de obras. Só não podem é ficar - porque vira estorvo - no lugar que lhes era reservado, i.e., a linda e espaçosa biblioteca de um ilustre professor de Direito.
       Os homens se vão, e bem assim seus pertences. Quase nada fica dos tantos volumes comprados, muitas vezes, a peso de ouro e nas edições atualizadas da época de aquisição.Volumes comprados muitas vezes com sacrifícios, no país ou no estrangeiro. Volumes guardados a sete chaves, bem cuidados, nunca emprestados, egoisticamente vigiados enquanto o dono era um vivente. Vão-se os livros, ficam os anéis que, por seu turno, se vão aninhar ao dedo anular da viúva, compondo um par, símbolo da eterna união do amor e da eterna felicidade e fidelidade matrimoniais. Desta sorte, nele (no dedo anular) viverão, não para sempre, mas até que a morte os separe. Amém!