A FLOSOFIA DE MACHADO DE ASSIS : A ANÁLISE DE ÁLVARO LINS (PARTE DO SEGUNDO CAPÍTULO DA MINHA   PESQUISA DE  PÓS-DOUTORADO.FACULDADE DE LETRAS DA UFRJ(2014)

       

  Segundo  assinalamos   no capítulo  precedente, com o ensaio de título relativamente  extenso, “O segundo Afrânio: um ‘exercício’ literário acerca de Machado de Assis, Álvaro Lins deu  o primeiro  passo a uma longa   desavença literária com  Afrânio Coutinho.  Era mais um  dos  inúmeros  comentários, artigos  ou  ensaios  que o crítico  pernambucano   escrevia  sobre  livros recém-editados. E não seria  o  primeiro e nem  o último  a provocar suficiente  combustível  para  a arena da  polêmica na vida literária brasileira. Só que desta vez  haveria dois  espíritos  combativos  e não avessos   à refrega    no terreno das ideias.

   Para  a análise  que  ora  fazemos do ensaio de Lins  sobre a Filosofia   de Machado de Assis utilizamo-nos  da  sua obra, Os mortos de sobrecasaca, Quinta Parte.[1] É curioso  anotar que,  por coincidência, nos dois  ensaios  anteriores dessa  Quinta Parte, Lins   analise,  primeiro,  um livro do historiador Alfredo Elis Júnior, Feijó e sua  época  ou Feijó e a primeira metade do século XIX, obra, segundo  Lins,   publicada com dois títulos e, por isso,  merecendo     uma   notação  irônica  de crítico e ao mesmo  tempo  um julgamento  implacável contra  o estudo  daquele historiador da Universidade  de São Paulo, num julgamento  que afasta qualquer   possibilidade de encontrar alguma qualidade na obra, seja  no nível da  lógica  do desenvolvimento, seja na linguagem,  seja, finalmente,  nos  dados  referenciais.[2]

 No segundo  ensaio, comenta  uma  obra de Afrânio Peixoto, Panorama da literatura  brasileira. Novamente,  o crítico    faz um duro e por vezes jocoso julgamento dessa obra no que diz  respeita às pretensões  de Afrânio Peixoto, em que pese  ser um erudito  escritor, historiador  da literatura,  ficcionista e  homem  da ciência,  de organizar  uma  antologia que, no  conjunto  de observações  feitas  por Lins, resulta num  trabalho  falho, parcial  e sem  valor algum “... tanto  para a literatura brasileira  quanto para o  Sr. Afrânio  Peixoto”[3]

                        O ensaio de Lins sobre  Coutinho, o  terceiro e último  da  citada Quinta Parte, seção III – O Segundo Afrânio: um ‘exercício’ literario acerca de Machado de Assis, ressalvando alguns ângulos nos  quais  o crítico não deixa de reconhecer algumas  qualidades no trabalho de Coutinho, segue uma linha de debate claramente   de franco  antagonismo aos argumentos    da tese de  Coutinho. Quer dizer,  o ensaio de Lins  principia  por resumir a situação  em que  se encontrava a fortuna crítica machadiana até aquele  decênio de  1940.  Poder-se-ia  afirmar,  de forma  generalizada, embora sem  conclusões    definitivas,   ser um traço  da crítica  de Lins primeiro  fazer uma abordagem da obra louvando-lhe as dimensões dignas de  observação para, em seguida,  partir   para um julgamento que   vai  incidir duramente sobre os  pontos  por ele considerados  fracos, imperfeitos   e esteticamente mal  estruturados.                          

  Neste segundo passo, Lins não tem  em geral  contemplação. Somente com poucos  autores brasileiros,    o julgamento  de Lins se torna  entusiástico e mesmo  se  estende  em excessos   de  aplausos. Um exemplo  paradigmático  seria  a sua   admiração   praticamente  irrestrita pela   ficção de Guimarães Rosa.[4]

                          Na leitura  que  Lins faz do ensaio de Coutinho, a começar  do título escolhido para discutir  alguns tópicos  fundamentais,    pode-se discernir  certo  tom  de disposição do crítico a se  colocar em  oposição  às ideias  de Coutinho.  Segundo  ele,  o título do livro de Coutinho  não faz jus  ao conteúdo   do que  se espera   do ensaio, que, “por ser  interpretativo,”   não  dispensa “objetividade”  e “método.” [5]    Por falar dessa  objeção  de Lins  queremos  lembrar um  fato que era  muito comum em  ensaios  de décadas  passadas, quando ainda não havia  toda a sistemática de  técnica de  organização  de monografia  e teses e,  sendo assim,   ao falar   de falta de método no livro de Coutinho  não é possível  concordarmos inteiramente   com o reparo  de Lins, já que    o estudo de Coutinho foi  escrito  com    critério  de organização de suas partes,  de  apoio  bibliográfico e da  própria  discussão  do  núcleo central  do  estudo. Para a época,  já era um avanço.

 Quanto  à  alegada  falta de objetividade,  damos  razão neste  ponto  ao comentário   de Lins  quando,   no  desdobramento  das partes do ensaio,  há visível  repetição  de ideias ou ponderações  já  percorridas  pelo ensaísta,  sobretudo   ao  repetir inúmeras  palavras  ou  expressões  semanticamente  similares  na discussão de temas  ou  visões  do mundo machadiano, no seu duplo  aspecto, autor e obra,  seja  de Pascal,  seja de Montaigne ou  fazendo  referência  ao sentido  filosófico   da   armadura da  obra  de Machado de Assis  ou do  próprio homem  Machado, social  e intelectualmente configurados.

   Este problema, a nosso  ver,  se inter-relaciona com o estilo  da escrita de Coutinho,  Uma das suas causas, em nosso  juízo,  seria a falta  de método  ou de objetividade em estudos do  gênero  ensaístico, pelo menos   na realidade  brasileira. Constituía  mesmo  um deficiência  comum  na produção   intelectual, sobretudo  se  tomarmos  como parâmetro o  período anterior à criação de cursos superiores   de Letras  no país.

  Basta vermos  quantas   teses para  provimento  de concursos para as antigas  cátedras  do ensino   secundário estadual e  federal eram elaboradas, pelo  país  afora,   sem  o mínimo  dos  requisitos necessários a uma melhor   organização   de um   trabalho, seja na  divisão das partes  dos capítulos,  no levantamento  bibliográfico e no desenvolvimento   do  tema  escolhido.

  As deficiências  eram devidas   à ausência   quase completa  de técnicas  editoriais na elaboração   dos  trabalhos  feitos   praticamente   por critérios autodidáticos  e  pelo bom senso  e  intuição  de seus autores e, desse modo,  tão distantes dos  rigores e exigências das normas  técnicas  de  preparação   de monografias,  dissertações  e teses  dos dias atuais. 

  Agora,  nos  referindo  ao  título  do ensaio de Lins, identificamos um elemento catafórico, a que ligeiramente aludimos no capítulo anterior,  nele  embutido: os lexemas “segundo,”  “exercício” e o próprio  substantivo  personativo “Afrânio.” Esses lexemas, ao concentrarem  um tom  de enunciação  irônica,   sinalizam para um texto crítico que, por antecipação, se propõe a  não  se constituir  em absoluta   submissão ao eixo central  da tese  de Coutinho. i.e.,  convalidar  o  ponto de vista de que Pascal foi  a  principal influência  de Machado de Assis acoplada ainda  ao sentimento  de “ódio à vida,” pela  influência do filósofo francês, manifestado  por Machado de Assis, conforme  veremos mais adiante,  na condição de autor  e  de pessoa  humana.

Três questões primordiais,  de resto  já anunciadas e ligeiramente  afloradas no capítulo  anterior,  conduzem o fio  da argumentação de Lins  a fim de contrariar  a espinha  dorsal  da tese  de Coutinho: a) a influência dominante do pensador  francês Blaise Pascal  sobre Machado de Assis, leitor  confesso  dos Pensamentos (Pensées), a obra-prima de Pascal;  b) o sentimento de ‘ódio pela vida’, derivado, conforme aludimos acima,  do pensamento   pascalino  em Machado de Assis   na condição de autor  e de pessoa  humana; c) o problema  do estilo na escrita de Coutinho.

  Consideremos  a primeira   questão na divisão tríplice, acima-indicada, que  pretendemos  debater no ensaio de Lins. De modo algum  negando  a    influência  de Pascal, em Machado de Assis, Lins,  julgaria  mais  acertado  se   Coutinho  houvesse   tomado  como  parâmetro de maior  influência o  filosofo  Michel  de  Montaigne, autor  dos Ensaios (Essais),  o qual, pelas  ideias e visões da vida e dos homens,  mais  estaria   próximo de Machado de Assis. Ocorre,  porém, um fato: por via de formação  cultural haurida em leituras diligentes,  Montaigne teve  peso  no pensamento  de  Pascal ainda que  com ele  divergisse  no campo   filosófico  e sobretudo   em razão   da  conversão  de Pascal  ao cristianismo   através de  suas posições de jansenista  na  polêmica contra  os jesuítas.

  Montaigne,  por outro lado,   embora  tivesse  uma grande   experiência  dos  homens  e da vida,  não  se lastreava  pelos caminhos  do pessimismo e do ascetismo   cristão  de  Pascal.   Observe-se  esta passagem, que  indica  nitidamente  uma  espécie de simbiose entre os dois  pensadores. Diz Pascal em conhecida   citação: “Não é em  Montaigne,  porém em mim mesmo que  encontro tudo o que nele  vejo.”[6]  

  Aprofundando sua  crítica  sobre a tese de Coutinho, mas sem  dar o suporte  necessário  na  elucidação de sua assertiva  sobre   a escolha  para ele  errônea  em relação a Pascal,  Lins   pondera em afirmações  num crescendo  desabonador   sobre  este  tópico:

  (...  )   Pois embora seja evidente a influência entre Pascal e Machado de Assis – as diferenciações entre os dois  são mais numerosas do que os  pontos  de identidade.  Mais numerosas e mais  importantes: as diferenças são fundamentais; as aproximações são  acidentais. Quero dizer: as diferenças eram   constitucionais e de natureza; as aproximações se formaram com as leituras e os acidentes literários[7]  

  Coutinho faz  questão de  acentuar que, a despeito de julgamentos de alguns críticos   desfavoráveis    à tese do ensaio A filosofia de Machado de Assis, mantém  o seu  ponto de vista   da influência   principal de Pascal sobre a ficção  machadiana da segunda fase.

 No prefácio meticuloso e  escrito  com espírito de renovação  e de crença  no desenvolvimento  de  novos  formas  de abordagem  da literatura, tendo  por  pilares   os  elementos  técnicos  provindos  da  “Nova Crítica” pela qual  por tantos anos  se bateu  e, o que  é melhor,  vendo  surgirem novos ensaios que  começavam a ser  publicados sob  ótica  metodológica  mais  bem aparelhada e atualizada, Coutinho, reportando-se     à nova edição da Filosofia de Machado de Assis com  titulo  alterado  por  adição, A filosofia de Machado de Assis e  outros  ensaios, reafirma  com convicção  e  coragem a  base do enfoque do seu  antigo  ensaio  sobre Machado de Assis, sem antes  ter reconhecido  algumas falhas e  imperfeições  de natureza  técnica, corrigidas  na nova edição.

 Todavia,  demonstra  a intenção  de conservá-lo como um texto definidor da marca original de uma  fase  determinada   de seu  pensamento  crítico  e metodológico: “ O que disseram  os críticos ao  ensejo da publicação do livro não invalidou a sua tese central, mesmo  quando eram  procedentes as reservas  a aspectos parciais da obra. Foi o que  estimulou  a republicação.”[8]  

      Ora, bem sabemos que um  escritor  como  Machado de Assis, por  ter legado  uma obra  que apresenta ao leitor, ao crítico e ao  pesquisador, no país e no exterior,  uma  multiplicidade  de  vias  de interpretação  e  de especulação sempre  possível  de novos  questionamentos  como  é quase sempre  natural  a autores   que atingem   um  nível de valor universal, algumas   afirmativas   de Lins, apesar do tempo decorrido,   ainda se prestam a debates   fecundos, quer para   confirmar o que  defende, quer para rejeitar  alguns dos seus  pontos de vista  no que concerne ao tópico  em exame.

      Tanto Coutinho quanto  Lins,  críticos situados  no contexto  literário-histórico-cultural  dos anos   1940,  partindo de visões  de interpretação   do fenômeno literário quando a  pesquisa teórica  ainda   se afinava   pela batuta  do  impressionismo crítico,   mesmo que este  fosse praticado por    ensaístas e críticos  de boa  ou mesmo  excelente formação    cultural,  a questão  de  estudar  a obra  estava sempre   associada a conjunturas  biográficas e um bom exemplo  disso  é o  próprio ensaio  de Coutinho,  no qual não se faz  quase  diferenciação entre   este fato  de natureza  teórica: onde  estaria  o cerne  do objeto  da tese, no  autor, na obra, ou  nos dois indistintamente?

       Perguntamos: estaria  o  ensaísta  Coutinho bem como Lins   empregando  o nome de Machado de Assis  simplesmente pelo  recurso à metonímia, e, neste caso,  estariam  aludindo à obra  literária  do autor,  ou   estariam usando  o nome do autor  para ponderações  de natureza  biográfica  ou  autobiográfica?

      Ora,  isso  nos  leva a  pensar,  durante  a leitura  do ensaio de Coutinho,  assim como de outro   ensaísta   com formação   literária    semelhante,   que fica a impressão  de que  ora  estamos  lendo uma discussão   sobre o autor,  ora sobre  a obra,  numa  simbiose  difícil de separar. Mesmo  em  historiadores brasileiros  modernos, o mesmo  antigo  vezo de usar  uma palavra pela outra  se vê amiúde.

      O próprio   ensaio  de Lins chega mesmo   a levantar um  problema  de natureza  teórico-literária  fundamental dentro daquelas  possibilidades analíticas  de que dispunha  no seu tempo e que, talvez,  lance luzes  sobre  o tópico da  influência de Pascal em Machado de Assis: (...)  “Não confundamos, portanto,   o sentimento artístico de uma obra literária, com o sentimento  pessoal de um  homem em sociedade  humana”[9]

   Sob tal  premissa, se funda aquela  advertência  lúcida para a sua  época vinda, não de um  crítico tout court, mas de um  linguista  renomado, que foi Mattoso  Câmara  Jr. Segundo   demonstramos num  ensaio[10]  de  nossa autoria em que  discutíamos no romance  Quincas Borba,     a validade  em narratologia  dos  conceitos de “narrador” e “autor”, tantas vezes   motivos  de  erros  de  interpretação  assentados  no “viés biográfico.” Mattoso perspicazmente já chamava a atenção  para a necessária  distinção  entre aqueles dois  conceitos, antecipando, como  acentuamos no nosso  ensaio, conceitos  de narratologia  como  “autor empírico,” “autor textual”, “narrador” etc.[11]

  Vendo, com distanciamento  crítico, as reflexões  de Lins  enfatizando  ideias  e visões  antagônicas  entre ele e Coutinho,  ou seja,  nos  colocando  em  termos  de atualidade de enfoque  crítico e conceituação terminológica resultantes dos avanços  da teoria literária e da análise  de texto, podemos    compreender  melhor  os dilemas, as   ambiguidades e aporias nas discussões  sobre  literatura  nos recuados   anos  1940.

  Tal  nova visão resolveria   aqueles impasses se entendermos   que o autor, o  cidadão  com certidão  em cartório,  o ser do artista não pode sempre se confundir  com  a construção  de um personagem e sobretudo com  o que  este  possa  pensar dos homens e da vida. Personagens são  entidades  fictícias,  com vida  própria e senhora  de seus destino,  de suas ideias, suas ideologias, sua  cosmovisão.

  Decerto o  escritor tem sua formação   própria,  sua visão do mundo, sua filosofia de  vida, seus defeitos e qualidades e suas preferências  por  fatias  da realidade  que  lhe são possíveis de    criar ou imaginar e essa dimensão não poderemos  subestimar nem tampouco   sobrepor aos valores  intrínsecos  da  criação  literária como  uma  fatura  predominantemente   estética e  pertencente ao  espaço  específico da  criação literária.

  Por esta perspectiva,  .sem  hipertrofiar  o  valor  do autor,  podemos  até  compreender   a tese de Coutinho e a sua  validade   até certo  ponto, como também  podemos  questionar   a generalização  do argumento de Lins   minimizando  a influência   pascalina  sobre  a obra de Machado de Assis. Se para Lins as diferenças entre Pascal e Machado  são “constitucionais e de natureza,[12] então,  como  seria  o homem Machado  para Lins?      

  Uma pessoa afável discreta,  levando  uma vida  burguesa, cumprindo  cuidadosamente    os seus  deveres  de  funcionário  público que, na sua função,  ascendeu ao último  nível da máquina   administrativa, embora  tenha  tido uma infância  humilde,  amigo  de  eminentes  figuras da  vida  pública, literária  e  política  brasileira, isso seria  Machado de Assis, o homem.  Ou, então, corresponderia a personalidade  de Machado  de Assis  àquela   imagem de teor comparativo construída pelo crítico Olívio  Montenegro  em trecho  sagazmente percebido e citado    no ensaio de Lins?    

 Afirma Lins que Olívio  Montenegro, no   livro O romance brasileiro,[13]  “compara”  Machado de Assis  com o personagem Dr Jekill  de uma novela Dr Jekill and Mr.  Hyde de Robert Louis Stevenson (1850-1894), e que para Lins  dá bem a medida   de Machado de Assis: “O Dr. Jekill era um médico que  todo mundo  admirava e estimava pelo seu  espírito sério, a sua doçura, a sua  modéstia, até que ele usava  uma droga de sua  descoberta, e virava outro caráter – um caráter de demônio.” [14] (grifos nossos)    Ora,  aquela  imagem de Machado de Assis, levando-se em conta sobretudo  a parte por nós  grifada,   nos parece perfeita para  sintetizar, ou antes,  reforçar a função   do estatuto  ficcional  sempre que o autor se transporta   ao  plano da mimesis aristotélica, i,e,  da “realidade  possível,” a qual, por isso,  nunca pode  nem deve  confundir-se com  a realidade  empírica.

  Não se poderá, contudo, sonegar  aquela parte  fundamental do autor de uma obra,  com  todo o seu repertório  cultural   assimilado nos livros,  na  experiência  da vida, na sociedade,  na sua atividade  profissional,  no convívio familiar,  na conjuntura  histórico-social-ideológico-filosófica de seu tempo, enfim, em todas  as nuances  permeadas pela sua  individualidade. 

 Abstraindo o componente  de ordem  cristã, após a sua conversão   e depois de uma  vida  mundana  que  a precedera,   a visão  pascalina  se  encontra  bem   presente  na ficção  machadiana após  a segunda fase  de  sua  produção em prosa,  ou seja,  com a  publicação  dos romances Memórias  póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas  Borba (1891), Dom Casmurro (1900), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908). Num trecho de uma "Introdução" de T.S. Eliot aos Pensamentos de Pascal, nos  deparamos com  esta brilhante  síntese:                 

   Não posso, contudo,   pensar  em nenhum outro  escritor cristão, nem mesmo um  Newman, que seja melhor   indicado  àqueles que  convivem com  a ideia da dúvida, e que  tenham  o espírito  de conceber e a sensibilidade de discernir a desordem,  a futilidade, o sem-sentido, o mistério da vida e do sofrimento e que possa  apenas encontrar  a paz por meio da  plenitude do todo do ser.[15]

  Isso  nos conduz a aventar uma  hipótese: enquanto  visão  interna do narrador  ou  constituição   psicológica,  moral  dos   protagonistas  ou  personagens  secundários e de suas ações, atitudes  diante a vida,   do ser humano e do  universo na obra  machadiana,  Pascal  ser-lhe-ia  influência  fundamental e, em menor  escala, Montaigne, Schopenhauer, Swift, Lawrence Sterne e tantos  outros  que o estudo comparativo  de literatura  tem apontado há tempos.

   José Guilherme Merquior, estudando a ficção machadiana, fala de “três  funções históricas da arte literária: edificação moral, divertimento e problematização da vida.” Acrescenta  ele que a “literatura da era contemporânea – a literatura da civilização industrial” privilegia a terceira daquelas funções,  e isso desde o Romantismo. A  ficção machadiana  se  caracterizaria, assim, pelo predomínio  da “hipertrofia da visão  problematizadora.” Portanto,   seria classificada como  “prosa  impressionista.”   Ou seja,  se alinharia  a obras que medularmente   discutem o “sentido da existência,”  obras que  por  esse elemento   diferenciador   de concepção  formal  e temática  se prestam a especulações  de natureza  filosófica. Merquior, nessa classificação,  arrola, além de Machado, Raul Pompeia e Euclides da Cunha.:

A percepção do tempo e os ritos da  memória são motivos capitais na ficção impressionista: basta pensar nos heróis nostálgicos de Tchecov, na ‘procura do tempo perdido’ de Proust, em Dom Casmurro, de Machado, ou nos momentos iluminadores dos personagens de James, que são quase sempre lembrança crítica, compreensão do sentido da experiência passada. É que, assim como a lírica do fundador da poesia moderna – Baudelaire – o romance  impressionista parece estar profundamente ligado ao senso da perda de qualidade da  existência.[16] (grifos do autor)

  São  obras  de autores como, entre  outros,  Goethe,  Hölderlin, Dostoiévski, Kafka, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa,  Clarice Lispector, criações requintadas, produto da “sociedade moderna”, da “civilização  industrial,”  endereçadas a um  público  restrito e exigente, diferentemente  das obras de  qualidade  média ou  inferior, que mais divertem  ou  servem somente  de “edificação moral” ou de divertimento para as massas.

  Entretanto não se poderia  omitir uma segunda  dimensão de alto potencial  revolucionário configurador  de uma  literatura  eminentemente  moderna  da obra  ficcional  de Machado de Assis, uma escrita  literária, plenamente  revolucionária no que tange ao esquema tradicional  do  romance linear e a outros esquemas de natureza estilística  e  de estrutura ficcional  moderna. Machado subverte a estrutura do  enredo,  o tratamento  do tempo e  introduz, entre tantos  outros recursos  retóricos,   a digressão à maneira  de  Lawrence Sterne do Tristan  Shandy.

  Seu humorismo, seu  pessimismo,  seu pensamento   corrosivo, seu schopenhauerismo, seu  humanitismo,  seu anti-darwinismo, cujo símbolo maior em Quincas  Borba é  o lema “Ao vencedor as batatas.”

                         Seu perspectivismo  narrativo,  se aliam  a um estilo  que  inclui  a  paródia, o dialogismo, a sátira manipeia, o pessimismo  em relação  aos sistemas   positivistas,   o elemento  fantástico,  a bufonaria  do espetáculo da vida, definiriam  o grotesco,  um estilo de  escrita que, sendo  da língua portuguesa,  torna-se  brasileiro no seu  sentido  mais  íntimo e diferenciador  do lusitanismo  clássico graças às inovações  que já vinham se  processando pelas mãos    de José de Alencar na tentativa  de  quebrar a rigidez da “gramaticalização,” só depois retomada com mais vigor  no Modernismo de 22.

 Segundo Antônio Houaiss, citado  por  José Guilherme Merquior,  Machado de Assis deu “.. um raro exemplo de equilíbrio dinâmico da língua literária, da sua mediação  plástica entre o antigo e o moderno, o culto e o  popular”[17]

Se Lins  sugeriu a Coutinho  que melhor seria se este optasse  por um estudo de influência  entre   Machado e Montaigne,    o autor dos Ensaios (Essais) comparece no estudo de Coutinho não “incidentemente,” como disse Lins[18], mas sim   como parte de capítulo 3,   “O naturalismo de Montaigne.”[19]

  Montaigne, como  contribuição  ao pensamento  intelectual  de Machado de Assis  traria   a concepção do ceticismo e do epicurismo, a visão  arejada  da alma humana sem nenhuma esperança  de  receber  alguma coisa   que pudesse  lembrar a bondade,  a solidariedade,  a renúncia, mas sim  o cálculo,  o “egoísmo   sistemático” porém amável”, a volubilidade,  a mutabilidade, o sentimento   de desapreço  pela razão humana  as questões de ordem  intelectual   vistas  com   distanciamento, o estoicismo, a ojeriza  à “novidade.” [20]

  Mesmo no aspecto da linguagem literária  de Machado de Assis, Coutinho faz alguns comentários dignos de atenção. Entretanto,  essa parte constitui um ensaio que só aparece  na segunda edição da Filosofia  de Machado de Assis, sob o título ”Outros Ensaios.” Trata-se do  texto “Estilo: Machado e  Montaigne.”[21]

  Coutinho  nele  percebe   pontos  de contato  entre a escrita de  ambos os autores ilustrando que  o estilo  de Montaigne se definiria como um  “estilo agregativo que  caminha  por acumulação,”[22]  à maneira de Sêneca e oposto ao ciceronianismo da Renascença. Este tipo de estilo em Montaigne, segundo  Coutinho,  já prenunciava  características  do  Barroco.[23]   A segunda   questão  primordial do ensaio de Lins, expressa pelo  ‘ódio à vida’, repetida  praticamente ao longo  do ensaio de Coutinho  como  sendo  um sentimento presente  na obra  machadiana por influência  de  Pascal, é rechaçada  por Lins, tanto quanto  foi   para o crítico  e historiador   Sérgio Buarque de Holanda. Lins, ao contrário,   julga que Machado de Assis  - e  esse  ponto de vista  seria uma  “opinião”   que ele  gostaria    de  defender fundamentado   no que    via como  uma  “ponto  de  partida” particularmente   defensável e identificado  numa simples afirmação colhida na própria   ficção  do  Machado:  “Nem ele a odiou tanto senão porque a amava muito.” [24]

   Curiosamente,   a segunda das  epígrafes  que aparecem    na Primeira Parte do ensaio  de Coutinho – com o título  homônimo  do  ensaio de Coutinho,  extraída da obra Várias  histórias,[25] vem a ser  aquela mesma   frase  que Lins tomaria  para  cumprir a promessa  de  demonstrar   a refutação   do ‘ódio à vida’ proposto  por Coutinho.

  Lins se  refere a uma  linha de escritores  que, segundo ele,   partilha desse  sentimento de  ódio à vida, e nisso  o crítico inclui Pascal e Swift.:

 Quanto a mim, hesito em situar Machado nesta família  de autores que se caracteriza pelo  ódio à vida e de que Pascal é um representante típico. Ou como seria  também um Swift. Pois o processo de exprimir  esse ódio ( o panfleto: em uns;  o humor em outros) importa pouco.[26]

         

                          Inferimos neste  ponto uma certa   contradição ou ambiguidade de Lins   no enunciado acima  ao citar  Pascal e  Swift como dois autores  nos quais   podemos encontrar esse sentimento de “ódio à vida.”

  No pensamento de Pascal  não  nos  parece  que  exista expressamente  tal sentimento posto que  Coutinho  mantenha  a posição de que o “ódio à vida”  foi assimilado  por Machado  por  influência  pascalina.[27]   Por outro lado, sobre  essa questão do ódio à vida,”   Sérgio Buarque de Holanda[28] desconhece  esse sentimento   em  Pascal e, além disso,   refuta  em Coutinho  essa posição a tal  ponto  que  o autor de Raízes do Brasil   implica  com a repetição  exagerada “ódio  à vida” utilizada no  ensaio de Coutinho. Para   Sérgio Buarque, ao invés de  “ódio à vida”  haveria, sim, em Machado   um  exemplo de  “ceticismo”, de  “humor,” “ironia’, ou como  conclui  o seu estudo: “Na ideia de um mundo absurdo – não trágico, mas absurdo – somada a esse sentimento de penúria encoberto pela ironia, é que segundo me parece,  devem ser  procuradas as origens do humor de Machado de Assis e também as fontes de sua  filosofia.”[29] (grifo do autor) 

   Se levarmos em  conta,  no  conjunto  da obra    machadiana,  a premissa  exemplificada pelo sentimento  do “ódio á vida” da parte  do narrador ou  de personagens,   valeria talvez  o argumento,    mas aí entraríamos no terreno   puramente  da ficção e,  como  tal, a possibilidade  interpretativa   seria  um canal   possível de compreensão, subjetiva ou  objetivamente considerado

  Lins, não negando  ser Machado  um autor   com  traços  acentuados   de “pessimista” ou mesmo  de   ser considerado  injusto diante  da  sua visão  do mundo,  propõe, no entanto,   para  Machado   uma classificação  de  escritor  “realista”  identificado com  o “autor do Eclesiastes,”  ao contrário de José Guilherme Merquior, que o  considera, segundo já vimos, um prosador  impressionista. 

  Reconhecendo no autor ou na  narrativa machadiana  algum sentimento  vil,  atos de  vileza e de desumanidade, na  exegese de Lins   isso seria não “rancor,” mas,  sim , “imparcialidade.” Além disso,  Lins  salienta: “Menos do que  o  ódio à vida, o seu caso [o de Machado] é o do conhecimento excessivamente   lúcido e profundo (não-estrutural, portanto)  dos homens e da vida.”[30] “Não-estrutural”, entenda-se porque adviria   da  experiência  e da arguta  observação percebida,  sentida e vivida, não que lhe fosse simplesmente  uma  predisposição  de sentimento  inato. O homem  pode muito bem  ver a crueldade  da vida sem por isso  ser  ele  próprio cruel.

 Por exemplo,  o personagem Bentinho, de Dom Casmurro,  por  pensamentos,  revela  alta dose de  “crueldade” em relação  ao que  pensa, naquela  passagem  final do romance em que o filho de  Capitu, Ezequiel,   após bom tempo  fora do  país, e já com a mãe morta na Suíça,   vai  visitar  o casmurro  pai  Ezequiel, O sentimento manifestado  por Bentinho,  livre  do mínimo traço  de  complacência  interior mesmo   em se tratando  de um  “ente querido,” se aproxima   da malignidade de alguns personagens da tragédia shakespeariana. /Não  houve lepra)[31]

 E conquanto Lins pudesse hipoteticamente atribuir  sentimentos  pouco deferentes moral ou eticamente     no que  tange ao   escritor Machado de Assis,  bem ajustada   seria a seguinte  posição  sua dirigida ao seu   adversário de ideias:

 Nem mesmo [Machado de Assis]  demonstra em tese um deliberado    desinteresse pelo destino  dos homens. Pois o pretendido  interesse  desta  espécie não é um  objetivo de sentimentos artísticos, porém   de sentimentos  pessoais. E nunca um artista como Machado permitiria, na sua obra, uma confusão tão lamentável. O papel do artista nada tem  que ver com o sentimento pessoal que oscila segundo as paixões do momento: o seu  destino é observar a realidade física e psíquica, recriá-la em formas sensíveis de objetividade  estética.(grifos  nossos)[32]

 

                          O trecho grifado de Lins, moldado  na sua  forma   de compreensão estética de um crítico classificado, à sua  época,  de   impressionista, antecipa-se     àquilo  que    já  aludimos como função  do narrador e dos personagens  na condição de   entidades  ficcionais que hoje são  estudados no campo  dos estudos  narratológicos.

  No tocante ao conjunto de argumentos   defendidos   por Coutinho,  um  ponto alto  de  discordância, segundo Lins,  reside no  fato de que  Coutinho  não lhe parece   coerente por afirmar  conclusivamente a evidência de um  humanismo  em Machado em desacordo com  o que, ao longo do ensaio,  se  contradiz em alguns  aspectos, como   explicitar  o lado  moralista   de Machado com   a “do mulato  ressentido”  de ‘medíocre qualidade moral,’ “a negação do niilismo  de Machado com o seu  ódio à vida ou aquela  intenção geral de desmoralizar todos  os “bons  sentimentos.’’ [33]

  Devemos  acentuar  que  o  ensaio de Coutinho não  é uma   reflexão estritamente  filosófica   de Machado, ainda que  o ensaísta  possa ter feito no seu  estudo alguma   referência direta ( o próprio  título do ensaio, que,  aliás,  é censurado  por Lins), ou  indireta  neste sentido.  Todavia,  a tentativa de interpretação   do  escritor combinada profundamente com  a natureza  da  obra   em prosa   machadiana,  exceção feita à sua  poesia. Aqui,  poder-se-ia  aduzir, em Machado  homem e autor  se  imbricam e mesmo se confundem.

  Daí a razão de surgir no ensaio  alguma    incoerência, segundo  já ressaltamos  ao falarmos  de questões  narratológicas como  narrador,  autor,  autor implícito e semelhantes. Note-se,  como  ilustração,   o título  do capítulo IV do ensaio de Coutinho: “Comprovantes da sua filosofia,” o qual  é uma  parte  essencial do estudo onde   se vale  da  prosa  machadiana  e  do pensamento  de Pascal  para   reiterar o que  discutiu   nos três  capítulos.anteriores   do ensaio.

   No  IV capítulo,   logo  no  início,    Coutinho    sublinha   uma circunstância nuclear: a de que Machado de Assis já  trazia  na sua  personalidade,  na sua  estrutura   moral  e   psicológica, embora “latentes,”  traços   convergentes com  as leituras  de filósofos e pensadores  universais  que    seriam  no futuro, enquanto  assimilação   de ideias sobre  a vida, o homem e o mundo, decisivos  na  arquitetura  de sua  ficção.

  Quer dizer, as fontes   filosóficas e  literárias, nacionais e estrangeiras, antigas ou contemporâneas  dele,  lhe ensejaram, como  possivelmente podem ter sido   para outros  autores em qualquer  época, sua  visão do mundo, assim  como a superação   ou  arrefecimento  de alguns      problemas   complexos de ordem  pessoal   e social.

    Antes,  vemos mais no  ensaio  de Coutinho  uma espécie de biografia  intelectual de Machado, já que um traço de união  lhe é  peculiar: um estudo da personalidade  de Machado e de relevantes  dimensões   da sua criação  literária e de sua formação   intelectual. Por isso, a nosso ver,  ela é  fonte   orientadora  da geografia  humana  machadiana,  i.e., uma obra que  abre caminhos  para  outros  estudos e pesquisas sobre  Machado, e isso  já a valoriza  se levarmos  em conta a   época  em que  foi   editada  pela  primeira  vez.

    Visto  pelo    sentido  geral  do ensaio de Coutinho,   não há como negar-lhe,  apesar  de ressentir-se  de uma  melhor   concatenação   no desenvolvimento argumentativo   do  tema   versado, a  contribuição ao avanço   da fortuna crítica machadiana,  decisiva em muitos  aspectos e até  ousada pelo fato de      encaminhar    sua pesquisa a uma abordagem   ainda  praticamente  virgem  nos estudos  machadianos nos anos 1940, área de estudos  críticos   apenas   iniciada  em cursos   da América  e da Europa conforme  reconhece  o próprio Lins.[34]

      Ou seja, das influências   e fontes  do estudo de autores,  ideias  que, anos depois,  se fortaleceram   nos chamados  estudos  de literatura comparada,   hoje um vasto  campo  de   pesquisas  fecundas     fundamentais aos estudos   literários   contemporâneos.

      O terceiro reparo de monta, a nosso ver,  discutido no ensaio de  Lins sobre A filosofia de Machado de Assis – o estilo de Coutinho -  possivelmente tenha sido o de maior impacto atuado na sensibilidade do autor de  Correntes cruzadas,   justamente porque Lins apontava na escrita  daquele uma “quase ausência  de estilo.”[35]

     O advérbio “quase” obviamente  de natureza modalizante, mais adiante,  no  mesmo parágrafo final do  texto de Lins,  é suprimido como   arremate da forma   e pensamento ensaístico de Coutinho, i.e.,  já que assim o fazendo endurece  sua crítica  contra  o  trabalho de  Coutinho do ponto de vista da linguagem.

     Ora,   quem porventura leia o ensaio de Coutinho com boa vontade e com   espírito de isenção, não pode  deixar de  perceber que parte dos defeitos estilísticos  localizados no  texto só   pode ser  debitada à impetuosidade  de um  crítico  jovem  por excesso de   ousadia e mesmo  a alguma dose de  injustiça de julgamento quando declara  ser  o autor do ensaio machadiano alguém que não “possui certas qualidades imprescindíveis ao mais simples e ao mais comum  dos  estilos”.[36]

    A justificativa da censura  feita  por Lins à escrita de Coutinho desenvolve-se num contraponto, a nosso ver,  estratégico  e corrosivo, porquanto,  ao valorizar as qualidades  de Coutinho por  manifestar uma atitude  intelectual  de “excitar a discussão,o debate de ideias, as sugestões,”[37] ao mesmo  tempo  afirma ser ele   um  autor que não  logra  harmonizar “a expressão substancial à expressão  formal”[38] não obstante  demonstrar  disposição e competência intelectual para  realizar um estudo da   relevância do  ensaio sobre Machado. Urge   realçar que nessa   forma de morder e assoprar,  consegue divisar  duas  qualidades em Coutinho: “a inquietação e o entusiasmo”[39]

    Lins, como provavelmente muitos   intelectuais  de sua geração,  costumavam rotular  escritores  que  escreviam  bem, com elegância,  pureza de linguagem, correção   gramatical  e  clareza de  exposição como   possuidores de “estilo” ou pelo  emprego  do  termo   “estilista.” O conceito  de “estilista” se alicerçava nessa  mencionada   concepção  de  correção  gramatical e   virtudes – “beleza formal” diria  Lins -  de linguagem. Esses atributos ou qualidades deveriam ser cultivados tanto por ficcionistas e   poetas quanto por críticos,  ensaístas e historiadores da literatura.       

   Tanto  é que  gramáticos normativos   do passado,  como  é  exemplo  típico  Eduardo Carlos  Pereira, nos  inícios do  século  XX,  reservavam uma seção ou capítulo de sua gramática  para  definir  e  classificar  o estilo, suas características   quanto a qualidade e  defeitos.

   Outros gramáticos, alguns  mais  próximos,outros   um pouco menos  próximos da atualidade tais como Domingos Paschoal  Cegalla, Sílvio  Elia, Evanildo  Bechara, o  linguista  Mattoso Câmara Jr., com  o seu Manual de expressão oral e escrita  e com a sua  Contribuição à  estilística  portuguesa,     Rocha Lima, Napoleão Mendes de Almeida, Artur de Almeida Torres, Gladstone  Chaves de Melo, Modesto de Abreu,  inclusive até um  autor  português, M. Rodrigues  Lapa,  com a sua  Estilística da língua  portuguesa, deram  especial   atenção  aos  problemas  de estilo e de linguagem e foram   muito   lidos  entre nós por décadas.

   Os grandes modelos de leituras  seguidos pelos ensaístas e críticos, antes do surto do Estruturalismo  e dos avanços da  linguística, seriam   buscados  sobretudo nos clássicos   lusitanos e  brasileiros, entendendo-se  por “clássicos”  aqueles   autores  que, pelo alto  nível de qualidade  da linguagem literária,  formaram   o que  hoje   rotulamos  de  cânones da produção  literária nacional, e, no caso de  autores   estrangeiros, de outras nacionalidades, a seleção seria entre os   de  maior   prestígio na  literatura   ocidental, também eles com os seus   respectivos  autores canônicos.  

    No campo da crítica literária e do ensaio, de procedência    portuguesa, ou de outras   nacionalidades  europeias e das Américas,  ocorreria  o mesmo  processo  de  leitura  e orientação   doutrinária, naturalmente   adaptado  a cada  época  de ensaístas e críticos  brasileiros, respeitando-se  a individualidade e a formação   cultural e  literária  de cada  um.  

  O conceito de ter estilo equivaleria a escrever bem, com originalidade e domínio da língua culta. Esse paradigma   linguístico, e, para os objetivos  deste  estudo, que   se volta fundamentalmente   para  o gênero da  crítica literária,   a grosso modo,   se estenderia  do século XIX até  o  advento do Modernismo, período este que conheceu uma das  experiências mais  ousadas  nos temas e no domínio da linguagem  literária, quer ficcional,  poética ou dramatúrgica.

   A formação  cultural  de nossos críticos,  historiadores  literários,  ensaísta  se fez  sob o predomínio da rigidez gramatical  ao longo do processo   da  formação   da literatura brasileira consoante  as  adaptações   e a capacidade  do uso  da linguagem  de cada autor, crítico ou ensaísta. Fazendo dois recortes   diacrônicos,  a fim de não  retrocedermos muito  no tempo,  consideremos    dois  grupos de críticos literários mais  conhecidos.

    No primeiro grupo,  colocaríamos   Sílvio Romero, José Veríssimo, Araripe  Júnior, João Ribeiro, Osório  Duque Estrada, Nestor  Victor, i.e.,  críticos   do século  XIX e dos  primeiros  anos do  início do século  XX.

    No segundo grupo, incluiríamos alguns  dos principais   críticos mais  novos tendo   como marco temporal os anos 1940, ainda que alguns  tivessem   nascido  no  século  XIX:  Agripino Grieco, Ronald de Carvalho, Tristão de Athayde, Álvaro Lins,  Sérgio Buarque de Holanda, Mário de Andrade,  Sérgio Milliet, Olívio Montenegro, Astrogildo  Pereira, Afrânio Peixoto, Nelson  Werneck Sodré,  Augusto  Meyer,  Eugênio Gomes, Wilson Martins, Roberto Alvim Correa, Afrânio Coutinho, Temístocles  Linhares, Antonio  Candido, entre  outros. Veja-se   o quanto  há neles de   variações de estilo, de  originalidade,  de  formas  de linguagem e de abordagem e métodos   de lidar com  a obra literária,  ou seja,   há críticos  positivistas, deterministas,  historicistas,  estéticos,  filológicos, gramaticais, biográficos,  até os chamados  impressionistas, expressionistas,  sociológicos, marxistas.

    No fundo,  porém, a questão  da linguagem  ensaística  ou crítica, por  razões  de rigor e de lógica argumentativa, não  poderia  ser  formulada  fora  da disciplina  gramatical e segundo  o avanço  por que passou  o estilo  de escrita ensaística, mormente  a partir  do Modernismo  de 22, tendo  à frente Mário de Andrade, de cujo estilo e formas de linguagem, em alguns  aspectos,   no gênero  ensaístico Lins  não  compartilhava.:

Também o meu conceito da crítica me leva a achar intolerável que num estudo sério, o autor [Mário de Andrade] use expressões como esta: ‘Macacos me lambam, etc.O Sr. Mário de Andrade reprovou, e  com justiça, o chamado ‘poema piada’ do modernismo. Acho que a ‘prosa piada’, num ensaio sério de crítica, merece idêntica reprovação[40]

  

 Contudo, não se deveria perder de vista  o fato de  que, por mais  complexos   que sejam   os  problemas atuais  da reflexão crítica,  os  novos   ensaístas  e críticos  bem  deveriam  evitar, tanto quanto  possível,   hermetismos   e tecnicismos  que  venham prejudicar a clareza  tão  esperada por quem se  interessa  pelos  estudos   teórico-acadêmicos. Temas profundos e de alta complexidade podem  ser formulados  de maneira   inteligível e comunicativa, sem serem cerebrais nem  criptográficos.

  Naturalmente,  nos dois  grupos acima-citados,  nem a todos   poderíamos  chamar  de estilistas,  de  críticos  de estilo  claro,  tanto quanto outras figuras  dos   dois  grupos  poderiam  ser  classificadas  como    possuidores de um   estilo  arrevesado,  ou, como  alguns   colegas  universitários  da  época do autor  deste estudo   chamavam, autores de  “estilo barroco,” havendo um mesmo  que chamara a um  conhecido  crítico de  escritor de “estilo  espiralado,” ironizando, assim,  a linguagem expositiva de  alguns  autores  da área dos estudos literários, quer  críticos,  quer  linguístas,  quer ensaístas.

 Eram comentários    que  alguns graduandos de letras faziam  já nos meados nos anos 1960 e 1970,  no limiar de um  novo e diversificado período de correntes do pensamento  crítico, dos estudos  gramaticais,  linguísticos,  filológicos    nos cursos de letras brasileiros,  tempo  dos   estruturalistas, da semiologia, da semiótica,   da era da  informação, da Aldeia  Global de Macluhan,   das leituras de Antonio Candido, Massaud Moisés,  Afrânio Coutinho, Eduardo Portella, Mattoso Câmara Jr., Wolgang Kayser,  Celso Cunha, Evanildo Bechara, Sartre,  René Welleck, Austin Warren,  Roman, Jakobson,  de Barthes,  Lukács, Todorov,  Greimas, Duffrenne, Aguiar e Silva, Benedito  Nunes,  Mário Faustino,  José Guilherme Merquior, Derrida,  Lévi-Strauss, formalistas   russos, Lotman, Otávio  Paz, entre    outros.

   É  claro que, ao fazermos a leitura  do ensaio de Coutinho, nos deparamos  com  algumas pequenas  imperfeições   estilísticas, mas nunca comprometedoras  do ensaio  por inteiro, o que de modo algum quer dizer  ser ele um  ensaísta  incorreto  no uso  do código  linguístico  culto.

   Ora,  Odilon Belém[41] (nos relata  com precisão e amplo conhecimento  do assunto,  o que  foi a formação  intelectual desse crítico desde os verdes anos em Salvador  como  excelente aluno e estudante  universitário,  em especial   o seu  desvelo  constante  pela correção  da linguagem,  os cuidados  que dava  à escrita  literária, sem falar  do seu  tirocínio aprendido  na mocidade com  a experiência  jornalística em vários  periódicos     

    Lins  refere que  a  escrita de Coutinho  lhe  dá a sensação de que  o ensaísta  da Filosofia de Machado de Assis  vai   desenvolvendo  seu estudo  sem  organização  prévia, “escrevendo ao acaso,” como se fosse um ato   de expressão  do  pensamento  por via  da  oralidade.[42]

    Em nossa  leitura  esta  “impressão”  não  tivemos nos termos   postos  por Lins.  A crítica de Lins tem algumas vezes  leves laivos de crítica do tipo  estilístico-gramatical  quando ajuíza o texto de Coutinho: a) faz  “uso  imoderado  e  impreciso de certas  palavras; b) “Sobretudo  o uso e o abuso dos adjetivos”[43] Ou generaliza  sua  censura no trecho  seguinte:”Há um aspecto, porém, que não me parece assim controvertido no bom  sentido: é o seu estilo, a sua linguagem.”[44]   O que  mais  anotamos  como  falha no livro    está  relacionado  a uma  forma   de circularidade  das mesmas  ideias  já  por ele  desenvolvidas em páginas e capítulos  anteriores. Recordemos  que, num ensaísta  jovem, é mais  fácil  encontrarmos   algumas  falhas  estilísticas e mesmo  gramaticais do que num outro que  tenha  maior experiência com  a organização,  o planejamento  e o sentido de unidade e de acabamento  de  um  estudo determinado.   

    A experiência cada vez mais nos convence de que só o tempo,  a pertinácia no evoluir e aprimorar-se  no tocante à linguagem faz um escritor melhor, não só  um ficcionista,  poeta, mas também  ensaístas,  críticos etc.

    Por outro lado,  não  se pode desdenhar  este fato: alguns  escritores  há que  escrevem  com  tamanho  entusiasmo   sobre  um tema  que  chegam  a  perder-se em  explosões   de emoção  no momento  de  algumas  passagens  sob seu exame  analítico, sobretudo  quando o ensaísta  é alguém  que  muito se ajusta  àquela classificação lúcida  e bastante  ainda atual acerca das grandes famílias psicológicas do  homem  brasileiro formuladas   por  Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde) na obra  Introdução  à literatura brasileira.: a) o litoral e o sertão;b) a cidade e o campo;c) o Norte e o Sul.[45] Só para simplificar  uma situação  de ordem da linguagem, e sem  o objetivo  aqui de  nos alongarmos   no assunto, vejamos  como  Tristão de Ataíde  define  os traços do homem do Norte:

O brasileiro do Norte gosta de falar e sabe falar bem. Sua alma aberta e franca, exuberante e ardente, não pode confinar-se em  expressões medidas, estudadas ou sutis, Diz tudo, desadora o encanto dos silêncios. Empolga-se nos grandes arroubos da eloquência e devota-se, politicamente, às personalidades  fortes.[46]

  E por falar na dificuldade do ato da  escrita literária vem-nos a  propósito aquele  testemunho algo  comovente  e humilde  fixado num texto da  obra  de Lins,  A literatura e  vida literária, no qual, com espírito arejado, de alcance  humano, universal e distante das tensões  e pressões da atividade  crítica, simboliza  uma flagrante  contradição diante  da por  vezes  intolerância de alguns   críticos, inclusive ele mesmo,  muito  rigorosa  a ponto de cometer   imperdoáveis  injustiças  com  autores  jovens e até  velhos:

O momento  de escrever sempre traz para o verdadeiro  escritor uma sensação  penosa e angustiante. Uma espécie de sentimento  de medo ou de angústia. Certamente que não é  indolência aquilo que o faz  adiar  o seu  trabalho até o último  instante possível. Ao contrário: o verdadeiro  escritor ama e deseja  o trabalho  literário; e nessa situação mesma  é que  encontrará a causa  de sua  hesitação[47].

             

  O tom geral com que  Lins  censura a linguagem e o  estilo de Coutinho se torna mais   evidente  quando, ao se referir à   qualidade  supostamente  inferior da escrita do analisado,  ainda  espera contar    com a  possível concordância do leitor. E esta  reflexão  Lins  faz questão   de deixar  para  as considerações  finais   de sua  análise.

  Quem  é leitor  de Lins   bem sabe que  o componente  estilo literário, seja na ficção, seja na  poesia,  seja na crítica literária,  são  peças  incondicionais  e verdadeiros  pilares  de sua crítica. Em toda a sua produção  crítica,  discutindo obras de   gêneros literários, ou  não, sempre  fez   questão  de    priorizar  o elemento  estilo, embora   este  aspecto da linguagem  nunca tenha  sido  por  ele  sistematizado  em  ensaio.

  A importância basilar que dava ao estilo, à linguagem literária, à originalidade foi sempre por ele reivindicada nos seus estudos. Sem ser rigorosamente  um  teórico,   mas  visceralmente  um crítico literário  de  amplos recursos  e alta   cultura, é pena que não haja dado  uma contribuição à questão   do estilo  no domínio da teoria  da  literatura a fim de que  pudéssemos   ter acesso  a discussões aprofundadas  sobre  esse assunto, formulado e desenvolvido  segundo  um princípio teórico   orientador do que  entendia  ser um dado   da linguagem  de  profundo  interesse aos estudos   literários.

  No entanto,  algumas  passagens  de sua obra geral  tocam   nessa questão e  sobre ela   propiciam   alguma compreensão do problema.  No  citado  livro Literatura  e vida literária – Diário e confissões, parte XLII,   discutindo   o tema do estilo  no Modernismo   brasileiro, Lins   chama a atenção  para uma deficiência  de que padecem alguns   autores   do Modernismo (entendemos aqui  que se trata do  Modernismo  brasileiro) sem  negar ao  movimento   as virtudes  e  conquistas  já consolidadas: a do  estilo, a  da “revalorização  do estilo”, a da importância  da ‘forma’ na obra  literária.”[48]

  Mencionando   um autor   de língua francesa, Pierre  Liève que,  ao falar sobre as diferentes fases da literatura  do país dele, ressaltara  que  “... a língua se enriquece das audácias e aventuras,  nas quais a comprometem  as  criaturas  originais,” Lins  relatando, no mesmo  parágrafo,     as afirmações   de um outro  autor, Yves Gandon, recorda que este, ao  meditar    sobre   o mesmo   tema,  julga  que “a correção e o estilo  são estados   absolutamente diferentes, até com difícil encontro. Partem de predisposições  distintas.”E no original, cita Lins aquele autor:   “A correção gramatical  não reclama senão  a atenção, o estilo  exige um dom, um gênio  natural.[49]

 Lins,  todavia,   não  concorda com   as ideias de  “dom” e “gênio natural”  nos termos  formulados  por Yves Gandon. Reconhece,  porém, que esse “dom” e “gênio  natural” só teriam  algum  fundamento se vistos  “estaticamente”,  e reclamariam  para tanto  uma ativação   de natureza artística, necessitando, inclusive,  de  qualidades  pessoais.

                          Entre  as qualidades,  uma  para   ele seria o que  denomina “... uma permanente concentração  da zona artística.”[50]  Entende Lins que  o estilo “... não é a qualidade exterior”,  ou seja,   resultante  de  “justaposição” de  “vocábulos formando  enunciados   através de conectores. Para ele o “simples jogo das palavras” pode até  invocar a “sensação” das flores”, porém  não passa de algo  “falso e efêmero.

  ”Estilo”  para Lins seria a expressão  das ideias à prova , digamos assim, da leitura  apurada, da “...análise de todos os homens” independentemente  do tempo. O estilo  dimana do  “interior”, unifica-se  à ideia da expressão, plasma-se como   uma “unidade orgânica.” É parte  integrante do “ser artístico. Conclui Lins,  o estilo  é  o  resultado   da soma das ideias, das palavras  justapostas, em que a sintaxe torna-se um componente  indissociável  da existência sentida, assim como  os “vocábulos” agem  como  “seres-vivos” com força  igual a seu “criador, enfim,  o estilo  para Lins é mais uma  “percepção” do que uma “definição.”[51]

  Conhecendo  por  informações     e testemunhos   escritos  de amigos  de Coutinho(), principalmente  no que  tange aos seus   anseios  e  planos    de   estabelecer -se  na vida   intelectual e  de sua  pretensão   natural   de   realizar alguns  planos  na atividade  crítica, ensaística e do magistério, era de se esperar  que o seu  estudo sobre  Machado de Assis  pudesse  significar-lhe, num centro  cultural  como  o do Rio de Janeiro, uma oportunidade  de levar a cabo  tantas     esperanças inerentes  a qualquer  intelectual    que aspire a uma  posição   de relevo  na  história da literatura  brasileira.

  Escrever um ensaio sobre Machado de Assis – convém frisar – tornou-se, nos anos 1940 ou mesmo  um pouco antes,  segundo  podemos constatar na obra  de Otto Maria Carpeaux, Bibliografia crítica  de autores  brasileiros,[52] uma forma  de os intelectuais  darem sua  própria   contribuição àquele que  é considerado o maior  ficcionista  brasileiro. Coutinho não fugiu dessa  pletora  de  obras sobre Machado.A  bibliografia machadiana não cessa de crescer nas diversas  formas  de estudos no meio acadêmico brasileiro e mesmo  com  estudos  de  especialistas  estrangeiros, em formas de monografias,  dissertações e teses.

  Obviamente,  não  podemos    descurar o fato de que a fortuna crítica de Machado não foi inteiramente favorável à sua obra. Tanto  é assim que  o velho  crítico “sardônico” Agripino Grieco havia  cunhado os termos  “machadólatras” e “machadófobos” para  definir  os   aficionados  de Machado e os   que não  exibiam tanto   entusiasmo  pela obra do   Bruxo do Cosme  Velho. Por sinal,  o velho crítico impressionista escrevera um livro, em muitos aspectos,  desfavorável a Machado, de título  Viagem em torno de Machado de Assis.[53]

 Lins e Coutinho, cada um à sua maneira,  eram  admiradores  de Machado, mas, na obra crítica  e ensaística de  Lins não consta  estudo mais  alentado  sobre  o grande romancista, assim como  aconteceu com  Tristão de Athayde.

 No entanto,   esta  é a condição  da atividade crítica, a de limitar-se a conhecer  os autores, muitíssimos autores, mas nunca poder   julgá-los todos ainda que  tenha pela frente uma longa vida literariamente ativa. A atividade crítica é seletiva e sujeita a muitos  fatores  condicionantes: de formação  cultural,   de condições de pesquisa,  profissionais,  políticas,  econômicas, ideológicas, religiosas etc.

 A determinação  de Coutinho de   empreender um  estudo  interpretativo de Machado possui algo de auspicioso a quem pretendia conquistar seu espaço  na vida cultural do país. É ponto pacífico que todo  jovem autor anseie por um  julgamento  favorável a um  trabalho  escrito com  competência, dedicação, espírito de pesquisa,  mobilização  de uma bibliografia  extensa, leituras comprometidas não  apenas com a matéria ficcional da  obra machadiana, mas também de autores, brasileiros e estrangeiros  correlacionados  com  o núcleo  de seu  ensaio, e escolha das formas  adequadas na divisão das partes  da investigação levada a termo.

                          Convém ter  igualmente  em mente  a perspectiva  crítica de que  um  ensaio  nunca foi  algo que  tenha  por obrigação   ser  completo  e perfeito. Há neste gênero que avaliar   os  pontos falhos  e os   pontos  a serem  louvados. Esse é o  sentido  que  na língua  inglesa se dá a esta espécie de  estudo: algo  provisório, que pode ser  aperfeiçoado e melhor  desenvolvido  pelo  estudioso. 

 O ensaio de Coutinho, A Filosofia de Machado de Assis  foi sua estreia  em livro. Teve ressonâncias  que  dividiram  opiniões  de aceitação e de negação, como é natural a quem   publique uma obra e não tenha renome ainda, não  obstante   já fosse conhecido  por   intelectuais  e críticos de então graças à sua presença  constante, sobretudo   na imprensa  carioca e de Salvador [54]conforme    o próprio Lins  declara   no ensaio   acerca    daquela obra.

                         Coutinho  deu continuidade  às suas  investigações  sobre Machado e daí surgiu a segunda  edição daquele  ensaio de 1940, agora com  o título  A filosofia  de Machado de Assis e outros ensaios,() revista e aumentada,   incluindo  trabalhos   posteriores  publicados  no Suplemento  Literário do Diário de Notícias na sua  seção   “Correntes  Cruzadas” e um sobre “O trabalho e a vida” editado  pela  Revista do Brasil em 1941.  Os novos  ensaios, em número de 15,  formam a Segunda Parte da  nova  edição.

   O resultado  de  toda  essa atividade  intelectual  havia sido  efetivamente algo que o autor tinha  por meta  concretizar. Por isso  mesmo  é que ainda na  Bahia,  nunca se afastara    das suas leituras  intensas  e variadas,  sobretudo  nos campos  da literatura,  da  história e da filosofia.

  Seu afã,  como  certamente  o fora o de Álvaro Lins e de tantos outros   grandes  intelectuais  brasileiros  das várias gerações,    era  assenhorear-se o mais  possível  das leituras dos autores  nacionais e  estrangeiros  da época de sua formação   cultural na juventude  e  mocidade, não só no campo   estritamente  literário mas  também  no  das ideias,  das teorias, dos ensaios,   dos  tratados   filosóficos,  das reflexões sobre os grandes e desafiadores   problemas  num mundo que enfrentava   ainda os horrores da Segunda Guerra Mundial e, no  Brasil,  que  se debatia  diante   da censura, prisões   e desmandos  do Estado Novo.

  A despeito de tudo isso,  Coutinho, mantinha-se no firme  desígnio de  atualizar-se tanto  quanto  possível  com  obras  importadas de   pensadores  americanos,  europeus e sul-americanos que   ia adquirindo, enriquecendo, assim, o acervo de sua  biblioteca, dando  os  primeiros sinais de que se tornaria  um  grande   bibliófilo  pela vida afora.

  Foram, pois,  os primeiros  intelectuais, ele,  Lins e  tantos  outros  da mesma  geração ou de gerações anteriores que se tornaram  mestres  pelos   velhos  hábitos  de    complementação   de  uma formação    cultural sólida    do que se convencionou chamar de autodidatas, sem que para este termo  se tenha  a  intenção  de  subestimar    este tipo de  formação  tradicional  na área estudos literários, filosóficos,históricos, políticos,sociológicos, antropológicos, psicanalíticos, religiosos, artísticos.

  Eram intelectuais eruditos graduados  em  outras  áreas de formação  universitária,  mas   autodidatas  em campos  de estudos  para os quais ainda  não    haviam sido  fundados cursos   superiores,     como é  o  exemplo  dos estudos   de  Letras e de outras   áreas das humanidades.

 Só alguns deles – como  Gilberto Freyre, Afrânio Coutinho, Sérgio Milliet,   entre  poucos  outros -,   tiveram oportunidade de complementar   estudos  sistematizados  ao fazerem  cursos universitários ou pós-universitários nos grandes centros  mundiais, notadamente nos Estados Unidos  e  Europa.

 

[1] LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca. Op. cit., p. p.348-354.

[2] Idem,. Ver capítulo 24, seção I – ‘Divertimento’ literário: uma nova espécie de antologia. p. 335-343

[3] Idem,  Ver capítulo 24, seção II – O primeiro Afrânio: um ‘panorama’ da literatura como sorriso da sociedade, p.343-347. É curioso  observar que Lins, em  seus artigos ou ensaios sobre autores  brasileiros,  usa o tratamento cerimonioso   de “ Sr.”ou o respectivo  “Sra., se for o caso. Ao analisar  um autor; outros escritores de sua  época não o fazem. Nesta situação,  ele  segue o procedimento do crítico de sua  grande admiração,  José Veríssimo.   Talvez o faça assim para manter uma certa distanciamento entre  o crítico e o autor, uma forma assim de evitar alguma intimidade numa atividade  que exige neutralidade   entre a figura do crítico e do autor de uma obra. Todavia,  ao analisar autores   estrangeiros,  Lins não manifesta   essa cerimônia.  Cremos,  ademais,  que esse tratamento  cerimonioso aplicava-se a escritores  vivos.

[4]  Cf. Os mortos de  sobrecasaca ,op. cit. Terceira  Parte  capítulo 16: Saga de Minas Gerais, seção I – Uma grande  estreia; seção II – A humanidade dos bichos em Guimarães Rosa; seção III – O risco do crítico no lançamento de um desconhecido., p. 258-264.

[5] Idem, p. 351,

[6] Apud BÉGUIN, Albert. Pascal par  lui  même.Paris: Aux Éditions du Seuil, 1952, p. 131. Tradução nossa. O texto no original é: “Ce n’est pas dans Montaigne,  mais dans moi, que je trouve tout ce que j’y vois”.

[7] LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca. Op. cit., p.353-354.

[8] COUTINHO, Afrânio.  Explicação. In:__. A filosofia de Machado de Assis e outros ensaios. Op. cit., p.3.

[9] LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca, op. cit., p.353.

[10] SILVA FILHO, Cunha e. Rubião: compaixão ou ódio. In: __. As ideias no tempo. Brasília: Gráfica do Senado Federal;  Teresina: Academia Piauiense de Letras (APL), 2010, p. 156-174.

[11] Idem, p. 161. Ver também página 163.

[12]  LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca. Op. cit., p. 354.

[13]  MONTENEGRO, Olívio. O romance brasileiro. Prefácio de Gilberto Freyre.  2. ed. rev.  e aumentada. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953.

[14] Apud LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca. Op. cit. p. 350.

[15] ELIOT, T.S.  Pascal’s Pensées.  Introduction  by T.S.Eliot. New York: E.P.Duttton & Co. Inc., 1958, [pg xix] Disponível em  www.gutenberg.org. Acesso em: 01/06/2014.  Tradução  nossa. Texto   no original:  “But I can think of no Christian writer, not Newman even, more to be commended than Pascal to those who doubt, but who have the mind to conceive, and the sensibility to feel, the disorder, the futility, the meaninglessness, the mystery of life and suffering, and who can only find peace through a satisfaction of the whole being”.

[16] MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides. –  Breve historiada  literatura brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Topbooks,  1996, p. 206.

[17] Idem, p. 218.

[18] LINS,  Álvaro. Os mortos de sobrecasaca. Op. cit., p. 351.

[19] COUTINHO, Afrânio. A filosofia de Machado de Assis e outros ensaios. Op. cit., p. 80-96.

[20] OLIVEIRA, Cleófano L. de. France immortelle. Tomo 1. 1ère année du deuxième cycle  des collèges.  Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica; São Paulo: Saraiva & CIA,  p. 64. Ver, nessa obra,  o capítulo “Montaigne (1533-1592), p.63-67.

[21] COUTINHO, Afrânio. A filosofia de Machado de Assis e outros ensaios. Op. cit., p.144-145.

[22] Idem, ibidem.

[23] Idem, ibidem. Sobre o estilo barroco, para uma análise mais abrangente, seria conveniente consultar:  COUTINHO, Afrânio. Aspectos da literatura  barroca. Rio de Janeiro: Ed.  A Noite, 1950; Introdução à literatura brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora  Distribuidora de Livros Escolares LTDA,  especialmente o capítulo “Do Barroco ao Rococó, p.78-138;  Do Barroco: ensaios. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ;Tempo Brasileiro,1994.

[24] LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca. Op. cit., p. 353.

[25] COUTINHO, Afrânio. A filosofia de Machado de Assis e outros  ensaios. Op. cit., p. 9. Na epígrafe de Coutinho o enunciado completo de Machado de Assis é: “A outra  - Nem ele a odiou tanto, senão porque a amava muito.”. Lins, no caso,  omitiu a expressão inicial : “A outra.”

[26] Idem, ibidem, p. 352-353.

[27] Cf. nota de pé de página  35 em A filosofia de Machado de Assis e outros ensaios. Op. cit., p. 95

[28] BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Cobra de vidro, op. cit., p. 58.

[29] Idem, ibidem.

[30] LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca. Op. cit., p. 353.

[31] ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. .In:_. Obra completa. V.1. Org.. por  Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. Ver, sobretudo, capítulo CXLV/O Regresso, p. 941-943  e capítulo CXLVI/ “Não houve lepra,” p.943-944.

[32] LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca. Op. cit., p. 353.

[33] LINS. Álvaro. Os mortos de sobrecasaca. Op. cit., p. 352.

[34] LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca. Op. cit., p. 351.

[35] LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca. Op. cit., p. 354.

[36] Ibidem.

[37] Ibidem.

[38] Ibidem..

[39] Ibidem, p. 351.

[40] LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca. Op. cit., p. 407-408.

[41] BELÉM, Odilon. Afrânio Coutinho – ama filosofia  da literatura., op. cit. Ver todo o capítulo “Uma Vocação,” p. 32.

[42] LINS, Álvaro.  Os mortos de sobrecasaca, op. cit., p. 354.

[43] Idem, ibidem.

[44] Ibidem.

[45] AMOROSO LIMA,  Alceu. Introdução à literatura brasileira. Rio de Janeiro: Agir, 1956, p. 154.

[46]:  Idem, , p.  161.

[47] LINS, Álvaro.  Literatura e vida literária. – Notas de um diário de crítica.  2.ed. v.1; 1. ed. v. 2,  p.70.

[48]  LINS, Álvaro. Literatura e via literária, op. cit., p.43.

[49] Idem, p. 44.

[50] Idem, p. 44.

[51] Idem, p. 45.

[52] CARPEAUX, Otto Maria. Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s.d. Nova edição com um apêndice de Assis  Brasil incluindo 44 novos  escritores.

[53] GRIECO, Agripino. Viagem em torno de Machado de Assis. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959. 

[54]  BELÉM, Odilon. Afrânio Coutinho – uma filosofia da literatura, op. cit. Dados relativos à biografia de Afrânio Coutinho e de sua formação  intelectual  devemo-los,  na sua maioria,  à obra de Odilon Belém