[Paulo Ghiraldelli Jr.]

Filósofos que se imaginam como quem faz as pessoas “saírem da Caverna” não têm muito a ver comigo. Em geral, essa tradição é a que respeitou pouco Platão, aderindo ao platonismo. Entre os modernos, foram os que fizeram pouco por Marx ao aderirem ao marxismo. A filosofia crítica, que é a da tradição Platão-Marx, teve a sua utilidade. Todavia, ela nunca deixou de ser atrativa ao vanguardismo e, por isso mesmo, raramente se apresentou senão com a roupagem de sua vulgata. Afinal, homens de vanguarda precisam de palavras de ordem para levar adiante “o povo” – é no que acreditam.

A vulgata desses descavernalizadores é simples e, em geral, com graus diversos de tentativas de sofisticação, está na ponta da língua de estudantes do ensino médio ou estudantes universitários ainda imaturos ou, mesmo, na cabeça de professores de todos os níveis, mais afeitos ao doutrinarismo. A idéia básica deles é o seguinte: as pessoas são ingênuas, elas estão na Caverna, não enxergam a realidade porque estão iludidas pelas sombras que se apresentam como a realidade, e o filósofo, que está sempre fora da Caverna, vai ensiná-las a pensar, a serem críticas e, então, irá libertá-las para a luz. Às vezes esse discurso é exclusivamente epistemológico. Às vezes ele logo adere a uma proposta ético-política, talvez porque, desde sempre, ele tenha sido mesmo uma proposta sócio-política.

A esquerda e a direita pensam isso da filosofia. Mas quando falam uma da outra, dizem que aquilo que o adversário faz é propaganda, ou seja, cavernalização – dizem que o adversário quer manter as pessoas na ilusão da Caverna.

Não participo da corrente da filosofia crítica. Gosto de Platão e Marx tanto quanto de outros. Mas estou longe de endossar a filosofia segundo o que a corrente crítica diz que é a filosofia. A desbanalização do banal, como eu, a partir de outros, tenho tentado criar como prática filosófica, não se propõe a enxergar a mais que outros. Ela não acredita que pode alimentar vanguardas. Ela está longe de achar que a tarefa da filosofia é “tirar o véu” do real, descobrindo sua verdade, ou acreditar que pode “fabricar” o real, produzindo sua verdade. A filosofia como desbanalização do banal não procura a “realidade por detrás da ilusão”. Não há nada que se possa dizer que está atrás ou na frente. Abordamos o cotidiano como aquilo que nós vivemos corriqueiramente. Trata-se do que é mais visto e, de fato, mais conhecido entre nós. Não estamos numa Caverna. Estamos muito bem à luz do sol. Olhamos tudo e conhecemos quase tudo.

Fazer filosofia, portanto, na minha acepção, não tem a ver com a atividade de uma vanguarda que enxergaria o que está abaixo ou por detrás do real, que outros não estariam vendo. No trabalho que faço, o que importa é contar uma boa história, é produzir uma boa narrativa, é contar alguma coisa sobre as nossas práticas diárias que possa ser posta na mesa, no leque das outras perspectivas que estão sendo necessariamente geradas por outros. Quando trabalhamos comparativamente com essas perspectivas, então, o caráter banal da banalidade vai se fazendo e somos capazes do estranhamento/admiração que Platão e Aristóteles diziam que era sentimento propriamente filosófico.

Quando digo cotidiano, não estou me referindo a um só cotidiano. Mas vários. Então, pode ser o cotidiano nosso, da vida em família etc. Mas pode ser a ciência ou mesmo a própria filosofia, que é o material do cotidiano do cientista e do filósofo. Por isso, a filosofia pode descrever situações que são as vividas, por exemplo, por quem está diante da TV vendo um programa como American Idol, ou mesmo participando. Mas a filosofia pode descrever situações da ciência ou da própria filosofia, se o que tomam é o cotidiano do laboratório ou das reuniões e livros filosóficos.

A filosofia como a faço é a desbanalização do banal a partir das redescrições que podemos acumular desse banal, do cotidiano ou do que é chamado de “o corriqueiro”, o bem visto e sabido por todos. Só sabemos que o banal perdeu sua banalidade quando a narrativa que produzimos faz com que possamos nos sentir estranhos, fora do mundo, mesmo estando vivendo no mais corriqueiro e bem conhecido mundo em que sempre vivemos.

2011 Paulo Ghiraldelli Jr. filósofo, escritor e professor da UFRRJ