A Falta
Por Cunha e Silva Filho Em: 22/02/2010, às 16H29
Cunha e Silva Filho
O velho advogado entrou no seu apartamento no Flamengo. Velho prédio ainda firme. Os últimos síndicos que por lá passaram foram bons e cuidaram do prédio com muito carinho e responsabilidade. Até mesmo alguns deles, nas detestáveis reuniões de condomínio, quase chegaram à vias de fato com outros condôminos, pessoas sem escrúpulos que não respeitavam algumas normas do estatuto do prédio que, por sinal, leva o nome de um escritor mineiro, Cyro dos Anjos, autor do conhecido romance Abdias.
Lúcio Silveira Neto, quando completara setenta anos, deu para pensar nos seus anos de infância, de juventude e de jovem adulto. Vivia, nos últimos anos, sozinho. Sua família já estava encaminhada na vida. Eram dois filhos, um, diplomata; o outro, engenheiro eletrônico. A esposa já tinha falecido. Foi apenas dona de casa. Uma excelente dona de casa, cuidara bem de todos, inclusive dele, marido. Deixara saudade e algumas lágrimas .No início da vida conjugal, tudo fora um paraíso, mas, depois de sete anos, brigavam muito, discussões provocadas por ciúme da parte dela. Bobagem! Ele sempre lhe fora fiel, embora por vezes tivesse pensado em aventuras extraconjugais, afinal, tinha sido um homem bem apessoado, daquele tipo que as mulheres gostam: inteligente, amável, honesto, amigo, prestativo, embora fosse muitas vezes impulsivo, de pavio curto.
Naquela noite, depois de ter ido ao centro da cidade, que ele tanto amava por várias razões inclusive as sentimentais, Lúcio não queria ver televisão . Trocou a roupa que usara por uma bermuda, colocou os chinelos que estavam sempre debaixo de uma poltrona no quarto maior e foi sentar-se na sala, no confortável sofá cor de rosa. Deixou a luz da sala acesa. Agora, só o tempo para trás andava.
Numa bela e ampla estante cheia de volumes de Direito, fora apanhar um livro grosso, azul, que pertencera a seu pai, que fora também advogado e professor de uma universidade federal. Na primeira página do grosso volume havia uma carta bem antiga de seu pai para ele, que dizia:
"Rio de Janeiro, 2 de abril de 2010
Querido filho:
O presente de aniversário que você me deu vou guardá-lo para sempre. Não sabe, filho, o quanto me deixou feliz. Há tempo o queria e nunca consegui adquiri-lo, por mais esforço que pudesse fazer para comprá-lo. Você, então, o comprou pra mim. Por esta razão, quando, daqui a muitos anos, você abrir este livro nesta mesma página, eu não mais estarei com você. Mas, a releitura desta carta é que vai manter a felicidade que tive quando o recebi de suas mãos, e vai manter entre nós ainda uma certa forma de relembrança dos dias que , em vida, vivi com você, com seu irmão e com Laura, sua mãe.
Jamais esqueça que a leitura desta cartinha significa um eterno retorno à vida, pois o passado é vida quando trazido ao presente. Um homem sem passado perde o sentido do presente.
Receba o abraço e um beijo carinhoso do seu velho pai
Lúcio Filho"
Naquela noite do ano 2040, que era um sexta-feira, Lúcio Neto passou boa parte da noite remoendo lembranças, tentando “atar os dois laços da vida” como o fizera Bentinho do Dom Casmurro. As lembranças lhe completavam de certa forma o que a vida atual não lhe proporcionava. O presente resumia-se a poucas coisas. Sua vida era uma rotina insossa. Não tinha mais amigos. Os melhores, já se tinham ido. Vivia de perdas e recordações. Às vezes, só o computador lhe servia de companhia. O filho mais novo, que morava também no Rio, raramente o visitava. Tinha lá suas ocupações, sua família. Nenhum deles lhe dera até então netos. Bem que os desejasse, queria ainda ter a alegria de beijar um neto ou neta. Saber o gosto de ser avô. Brincar com eles, contar-lhes histórias, lhes dar conselhos, orientação, sabedoria dos mais velhos Isso tudo lhe fazia falta.
Lúcio, já quase dando meia-noite, ligou a televisão no momento em que havia um noticiário e escutou, boquiaberto isso: “Para aqueles que jamais acreditavam que Jesus pudesse voltar, em Jerusalém, lugar hoje completamente pacificado, onde judeus e palestinos convivem em harmonia, embora ainda mantendo diferenças religiosas, correu uma notícia de que Jesus voltou, e desta vez há de julgar os vivos e os mortos”.
Não sabia Lúcio Neto que tal realidade iria presenciar e, ajoelhando-se diante do pequeno oratório caseiro, que ficava num canto de seu quarto, começou a orar. Era o padre-nosso que lhe saía dos lábios, que ele aprendera em escola religiosa, embora, durante grande parte da vida, se confessasse ateu. Seus estudos do Direito e de correntes filosóficas não o levaram à cruz. Esta lhe veio, agora, definitivamente pelo milagre do retorno do filho de Deus.
O mundo, daquela sexta-feira em diante, seria diferente. A Terra finalmente seria abençoada. O Filho havia regressado ao convivo da humanidade. Parecia aquele conto de Eça de Queirós, “O suave milagre” que lera de um livro da biblioteca do seu pai. A sua alegria, do tamanho do mundo, ao mesmo tempo interrogava: vai haver um novo julgamento do filho de Deus? Como a humanidade irá recebê-Lo? Lembrou-se de um novo julgamento que Jesus enfrentaria caso voltasse à Terra. E essa possibilidade de julgamento já havia sido discutida num opúsculo pelo filósofo Huberto Rohden, que ele conhecera através do seu pai, o qual, uma vez, pelo menos, assistira a uma palestra do filósofo, autor de Porque sofremos, na Escola Nacional de Belas-Artes.
Lúcio Neto estava, agora, transfigurado. A Ressureição dar-se-ia, finalmente. Esta seria a oportunidade de poder, quem sabe, rever seu pai, sua mãe, seus grandes amigos. Era a boníssima nova. Lúcio era um novo homem a caminho do Céu, como naquela imagem final belíssima e inesquecível de Quo vadis?, em que Robert Taylor e Debora Kerr, livres dos grilhões do império pagão, ascendiam às esperanças da salvação em Cristo.