Ivan Ângelo
Ivan Ângelo

{Décio Torres]

É comum pessoas que gostam de livros e que possuem bibliotecas pequenas ou grandes ouvirem a pergunta: “Você já leu todos esses livros?” Não, nunca o lemos todos, não há tempo suficiente e, a depender da quantidade de livros, é uma missão quase impossível até mesmo para quem se acostumou a ler quase mil páginas por semana durante o doutorado. Colecionamos livros como um fetiche, por amor, mesmo sabendo que podem ficar anos aguardando nossa leitura, como acabou de acontecer. 


Há décadas comprei o livro “A face horrível” (1986), de Ivan Ângelo, na antiga Livraria Vozes na R. Carlos Gomes aqui em Salvador e que há muito deixou de existir. Lembro que o autor é amigo de meu irmão e devo tê-lo conhecido em sua casa no Rio ou São Paulo na adolescência ou pós-adolescência, quando os dois alternavam o primeiro lugar nas listas de livros mais vendidos no Brasil, um com "Essa terra", o outro com "A festa". O livro ficou intacto, esquecido por muitos anos em uma das estantes. Reencontrei-o por acaso. Agora, ao lê-lo, pergunto-me por que não o li antes. O livro é um primor! São  14 contos muito bem escritos, produzidos no final da década de 50 até os anos 80, com uma narrativa diversificada e com técnicas bastante variadas. 


O fluxo de consciência e monólogo interior predominam nos contos. Mesclando narrativas a diálogos inesperados e contundentes, Ivan Ângelo explora universos que geralmente preferimos evitar e não discutir com seriedade nas relações cotidianas. Os temas são abordados sem arestas, às vezes de maneira bastante dura, nos quais predominam as relações humanas e seus cenários de sexo, namoro, amizade, amor e suas traições, suicídio, promessas, perdas e danos, ocorrência policial, ambientes familiares e de amigos e elementos banais da vida cotidiana. Sem falar da defesa das mulheres que o autor adota numa época quando isso não tinha entrado para a agenda das discussões e a centralidade da pauta feminista ainda era uma luta a ser conquistada. Todos esses elementos são examinados por ângulos inesperados e revelam a face horrível de cada um de nós que fazemos questão de escondê-la, mas que um dia vem à tona . 


Além disso, o autor brinca com a linguagem em vários níveis, inclusive com o uso de gírias por personagens de diferentes faixas etárias, enfatizando diferenças linguísticas entre  a fala dos jovens dos anos 80 com aquela dos adultos, revelando o ridículo a que se expõe um tiozão a querer se apropriar da linguagem de uma jovem ninfeta para dela se aproximar.

 
Em um processo de metalinguagem, Ângelo aborda a criação literária para dela falar em diversos momentos, seja através da menção a outros textos e autores, seja para abordar a própria linguagem literária. Um dos contos chega a possuir três versões: o conto em sua primeira versão, o conto com a leitura de um leitor crítico que assinala suas impressões em itálico ao longo do texto, e a versão final, enxuta, editada, corrigida. O próprio título do conto tripartite, “Denouement” (termo francês também usado em português e inglês para se referir ao  desfecho ou fechamento de uma narrativa) já aponta para sua brincadeira teórica com a criação. Embora a segunda versão seja intitulada “Entrevero do autor com seu conto”, os comentários adicionados ao texto do conto anterior podem ser lidos não somente como sendo do próprio autor, mas de um editor, um crítico literário, um amigo do escritor a quem submete um rascunho ou primeira versão do texto, etc. Ao final, o que temos é uma obra escrita há décadas, que brinca com maestria com as diversas formas de narrar e que ainda se mantém bastante atual.


Sobre o autor


Mineiro de Barbacena, MG, Ivan Angelo nasceu em 1936. Escreveu seus primeiros contos em 1954, e foi premiado num concurso da prefeitura de Belo Horizonte com o conto Culpado sem crime.  Seu livro “A festa” (1975) ganhou o Prêmio Jabuti em 1976. Em 1982, “A festa” foi considerado pela revista IstoÉ o mais importante livro brasileiro  de ficção, escrito entre 1972 e 1982. Jornalista desde os vinte anos, foi colunista dos jornais Correio de Minas e Diário de Minas, de Belo Horizonte; foi editor, editor-executivo e secretário de redação do Jornal da Tarde, em São Paulo e colaborador das revistas Playboy e Veja. Em 1996, estreou como cronista no jornal O Tempo, de Belo Horizonte, e em 1999 começou a publicar crônicas quinzenais na revista Veja São Paulo. Entre outros livros de sua obra, destacam-se “A casa de vidro” (1979) e “A face horrível” (1986), que ganhou o prêmio da APCA. Possui diversos livros publicados. No ano passado, lançou “Vida ao vivo”, com direito a entrevista no programa Roda Viva. Bastante ativo aos 87 anos, o autor pretende reeditar "A festa" (1976) e "A casa de vidro" (1979), hoje fora de catálogo, e concluir dois volumes para compor uma trilogia com "Amor?" (1995).