[Paulo Ghiraldelli Jr.]

The human body is the best picture of the human soul.
Ludwig Wittgenstein

O autor da foto fez o registro que tinha de fazer. Provavelmente, tirava dezenas dessas por dia. Uma garota que havia estado até então presa, estava ali, na cadeira, seríssima – fazendo força para parecer inteira após vinte e dois dias de tortura. No fundo da cena, não homens com roupas comuns, mas homens com o uniforme das nossas Forças Armadas.

Aqueles homens ali do fundo eram sustentados, na época, pelos pais de Dilma Roussef, a garota da foto, bem como pelos meus pais e avós. Sim, como brasileiros trabalhadores que pagavam certinho os impostos, os pais de Dilma e os meus e de muitos outros brasileiros, queriam que o Exército Brasileiro funcionasse e nos protegesse. Aquelas homens ali, imponentes com suas fardas e coturnos, eram o exemplo de coragem do Brasil. Por isso mesmo, de tanta coragem que tinham no rosto, resolveram na hora da foto se esconderem com as mãos. Dilma, olhando para a frente, mostra completo desconhecimento em relação  ao que fazem os borra-botas que estão ali ao lado dela.

Por que esconder a face? Por causa da possível vingança dos “truculentos guerrilheiros comunistas”? Dá bem para ver o “físico” da guerrilheira! E vingança de quem? Meia dúzia de garotos universitários, alguns completamente ingênuos, iriam vingar o que? Estavam caindo presos um a um, não tinham nenhuma medida das forças que estavam se propondo a enfrentar. No entanto, rostos sérios, focados, honestíssimos como o Dilma, deveriam chocar os militares. Cobriam o rosto não só pelo medo, mas também pela vergonha. E mais que isso: cobriam o rosto porque sabiam muito bem que tudo aquilo, apesar de parecer legal, não era legal, muito menos legítimo.

O mais fantástico dessa foto é que os militares que tamparam o rosto sabiam, também, que nenhuma foto seria publicada. Não só o país estava sob censura como também aquelas fotos, tiradas ali, não iriam sair do controle dos arquivos militares – tanto é que, por vias oficiais, ainda não vieram a público até hoje. Mas a covardia e a vergonha eram tamanhas que eles não podiam mostrar os olhos. Eles estavam ali, no ambiente de um tribunal militar, tudo arrumado formalmente para que a atividade se parece, ao menos para eles mesmos, como algo moralmente correto e legalmente justo. Mas, o circo estava com a lona rasgada e o picadeiro, se não aparecia para cidade, ao menos era visto por eles mesmos.

O contraste dos rostos cobertos pelas mãos se faz presente nas sobrancelhas da garota Dilma. Marcadas como até hoje são, essas sobrancelhas cuidavam de dois olhos felinos, aríetes negros de uma alma inquebrantável. Qualquer um que jamais tenha um pingo de conhecimento do Brasil, ao olhar essa foto, não consegue não ver esse contraste entre o rosto da moça, no pedestal da altivez, e o rosto fugidio dos militares, encolhidos na baba que deveria estar-lhes escapando da boca.

Quando um brasileiro entender que o Brasil pode fazer bom cinema porque não só tem boas histórias, mas heróis de verdade em narrativas verdadeiras, não haverá festival mundial de filmes que não ganharemos. Daí então começaremos e ensinar história para a nossa juventude, para o nosso Brasil, como já fizeram os americanos e outros povos em relação às suas nações.

Essa foto transcende a política. É uma imagem que está além das disputas do passado e das divergências partidárias do presente. É uma foto para que o jovem brasileiro, de qualquer orientação teórica e ideológica, ou mesmo sem nenhuma, possa pensar no que a estética lhe diz. E essa estética está dizendo tudo que nenhum conceito parece apreender: há ali mocinhos e bandidos, e seja quem for que olhe, ele saberá quem é quem. Estranho destino de uma foto, a de falar pelo maniqueísmo, sempre tão longe da verdade, o que há de mais verdadeiro entre nós. E o que há de mais verdadeiro entre nós é isso: houve um tempo que a juventude fez alguns adultos se sentirem exatamente o que eles eram: ratos de esgoto uniformizados.

2011 Paulo Ghiraldelli Jr, filóso, escritor e professor da UFRRJ