Danielle dos Santos Pereira Lima[2]

Geanis Silva Gomes[3]

 

  Sabe-se que toda manifestação literária apresenta peculiaridades. Destarte, se no Romantismo o que prevaleceu foi o amor platônico, a idealização da mulher e o mal do século, no arcadismo foi a ideia de carpe diem, de bucolismo e de pastoril. Se no Parnasianismo brasileiro a temática de denúncia social foi deixada de lado, no Modernismo, com o Romance de 30, foram enfatizadas a miséria, a seca e as explorações sofridas pelo sertanejo e o homem do nordeste como uma das características que permitem verificar a produção da época.     

No entanto, as obras contemporâneas não apresentam atributos que as particularizam, na verdade, denotam a recuperação das linguagens do passado[4].  E o poeta “pós-moderno” não é apenas um dramático, um escapista ou um irreverente. É mais que isso! É um ser múltiplo, que dialoga com movimentos distintos, podendo ser contemporâneo desde Castro Alves, expoente do Romantismo, a Paio Soares, trovador, autor da cantiga “A Ribeirinha”.  

O crítico renomado João Alexandre Barbosa (2005) advoga que a intertextualidade é a marca do poema pós-moderno. Contudo, Paulo Henriques Britto (2000, p. 127) assevera que todos os poetas da Literatura Ocidental fizeram alusões a seus predecessores e contemporâneos. Na verdade, o que tipifica a poesia pós-lírica, segundo o autor, é a ênfase na intertextualidade em detrimento da realidade extratextual; e “a tendência a exigir do leitor um cabedal de conhecimentos de tal modo especializado que a leitura só se torne viável se for feita paralelamente com uma série de notas e explicações” (BRITTO, 2000, p. 128).

Levando em consideração que os poemas contemporâneos dialogam com o passado, este trabalho, exercício de análise em sala de aula, da disciplina “Literatura contemporânea”, sob a orientação da professora Rosidelma Fraga, se propõe não só a analisar poemas eróticos, mas, também, identificar os possíveis intertextos com outros poetas e a produção de sentido.

O objetivo deste ensaio é analisar o Poema II, da obra “Livro dos amores” de Devair Fiorotti; e o poema intitulado Se eu disser, da coletânea “Rainha arcaica”, de Ivan Junqueira.  Cabe dizer, ainda, que a feitura desta breve análise parte de leituras de textos como “As ilusões da Modernidade,” de Barbosa (2005) e a obra “Poesia e memória,” de Britto (2000).  Compreende-se no primeiro texto que o poeta contemporâneo é um elaborador de enigmas e o leitor um recifrador que atribui significações ao poema a partir dos indícios da linguagem. Na segunda produção, o analista apreende que o poema contemporâneo é um mosaico de citações.

Sob esse prisma, acredita-se que quanto mais erudito o poeta mais possibilidade de intertextos. Embora Barbosa (2005) refute esta afirmação, é evidente que o repertório de leituras influencia diretamente na confecção dos poemas.  

Entretanto, compete ao leitor recifrar e não decifrar a obra. Esse último ato consiste em destacar o que o autor quis dizer. Dessa forma, o poeta não pode ser considerado um oráculo, o detentor da verdade do poema. Observe o excerto:

 

 

Não basta saber o que o poeta quer dizer com tal ou qual imagem; as significações do poema talvez residam precisamente no obscurecimento das relações entre imagens e referentes circunstanciais (BARBOSA, 2005, p. 26).

 

O poema contemporâneo configura-se pela tradução, “ler o novo no velho”. Assim, “o aqui e agora do poema é sempre um ali, ontem, amanhã” (BARBOSA, 2005, p. 30). Contudo, mesmo havendo essa releitura, o poema contemporâneo é atual. Para Britto (2000, p. 127), “o eu por trás dos poemas é essencialmente uma encruzilhada de textos”.

Ao analisar o Poema II, de Fiorotti, foram identificadas inferências com as obras: Adormecida, de Castro Alves; A mulher azul, de João Cabral de Melo Neto e No mármore de sua bunda, de Carlos Drummond de Andrade. Essas obras têm como temática central a ausência da mulher.

Na primeira estrofe dos referidos poemas, os eu líricos cantam o amor Eros e sofrem com a ausência da amada. Repare:

 


Poema II (Devair Fiorotti)

Faz tempo que não sonho com palavras

Seu cheiro, seu gosto, eu dentro de você

 

Adormecida (Castro Alves)

Uma noite, eu me lembro... Ela dormia

Numa rede encostada molemente...

Quase aberto o roupão... solto o cabelo

E o pé descalço do tapete rente.


       Nota-se que na obra de Fiorotti persiste a saudade de um amor concretizado. Enquanto, no poema de Castro Alves, há a idealização da figura amada. Fica claro que os poemas em destaque pertencem a manifestações literárias distintas. Enquanto o Poema II é uma obra pós-lírica, no qual a mulher é tocada e usufruída, em Adormecida, a figura feminina é venerada por ser linda, pura, retraída e casta, e logo fica claro que esta última obra faz parte da segunda geração do Romantismo brasileiro.

 Na segunda estrofe, percebe-se a influência da vanguarda surrealista, com a expressão “seu gosto era de azul” (V. 4). E nesse aspecto o poema dialoga com a obra Mulher azul, de João Cabral de Melo Neto, poeta moderno da geração de 45.


 

Como um cheiro de jasmim pousou em meu peito

Seu gosto era de azul

Sua respiração lembrava bailarinas judias

(Fiorotti. Poema II)

 

      

Dentro da perda da memória

uma mulher azul estava deitada

que escondia entre os braços

desses pássaros friíssimos

que a lua sopra alta noite

nos ombros nus do retrato

(Melo Neto. Mulher Azul. In: Pedra do sono, 1942).

 

 



No poema fiorottiano, o eu lírico relembra momentos que passou com a sedutora. Naqueles instantes o prazer carnal suplantava a realidade, e era azul, surreal. No poema de Melo Neto, com uma linguagem mais complexa e hermética, o poeta erotiza a figura da mulher, destacando os ombros nus.

Na terceira estrofe do Poema II, verifica-se que como um “animal no cio” o eu lírico quer sentir o cheiro da amada. Seu órgão genital lateja querendo penetrá-la. Mas a desejada não está presente para satisfazê-lo. Assim como no poema No mármore de tua bunda, de Drummond, em que o eu lírico exalta os glúteos da amada ausente. Veja:

 


                                    Como seu perfume acordou a manhã

E seu gosto estava em minha boca ainda

Minha glande clamava seu corpo (FIOROTTI. Poema II.).

No mármore de tua bunda

No mármore de tua bunda gravei o meu epitáfio.

Agora que nos separamos, minha morte já não me pertence.

Tu a levaste contigo (DRUMMOND: 1994 p. 41).


      Na poesia drummondiana o eu lírico é mais específico, e diz que deseja os glúteos da figura feminina, símbolo de fetiche brasileiro. A simbologia do mármore remete a um sentimento concreto, como diz o soneto de Vinicius de Moraes: “que seja eterno enquanto dure”. Isso se clarifica quando o eu lírico diz “No mármore de tua bunda gravei o meu epitáfio”, para que, após a morte, o sentimento fosse lembrado, eternizado.

Na última estrofe do Poema II, o eu poético sente-se desolado pela ausência da figura venerada. Há um intenso sentimento de nostalgia, marcado pela saudade da presença daquela por quem nutre desejos avassaladores. O mesmo episódio ocorre em Adormecida, cujo eu lírico reflete sobre a imagem da amada, mas, diferentemente do poema fiorottiano, a musa de Castro Alves é uma virgem, intocada – imagem típica do Romantismo. Observe:

 


Faz tempo que não sonhava com palavras

Agora, mas triste e só, minha amada

Adormeço ninando sua ausência em meu colo.

(FIOROTTI, Devair. Poema II).

 

Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
"Ó flor! – tu és a virgem das campinas!
"Virgem! – tu és a flor de minha vida!..."

(ALVES, Castro. Adormecida).


 

  A temática da ausência também é recorrente no poema Se eu disser, de Ivan Junqueira e, é claro, em Ausência, de Carlos Drummond de Andrade. Repare:

E SE EU DISSER
E se eu disser que te amo – assim, de cara, 
sem mais delonga ou tímidos rodeios, 
sem nem saber se a confissão te enfara 
ou se te apraz o emprego de tais meios? 
E se eu disser que sonho com teus seios, 
teu ventre, tuas coxas, tua clara 
maneira de sorrir, os lábios cheios 
da luz que escorre de uma estrela rara? 
E se eu disser que à noite não consigo 
sequer adormecer porque me agarro 
à imagem que de ti em vão persigo? 
Pois eis que o digo, amor. E logo esbarro 
em tua ausência - essa lâmina exata 
que me penetra e fere e sangra e mata

(JUNQUEIRA, Ivan. In: Rainha arcaica).

AUSÊNCIA
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

(ANDRADE, Drummond. In: Poesia reunida.)

 


  Note que em ambos os poemas o eu lírico faz confissões amorosas. No poema de Junqueira observa-se que o eu poético sofre calado em suas inquietações, em que a procura vã advém da dúvida se o amor sentido poderia ou não ser correspondido (isso fica evidente nos versos 1, 2, 9,10 e 11). A personagem feminina, alheia a tudo isso, é a causa do sofrimento do eu lírico.

No poema drummondiano constata-se a incompletude do eu lírico, em relação à falta de algo ou de alguém.  Observa-se que a ausência já está tão arraigada ao eu poético, de modo que ele já a vê como companheira. Se antes a lastimava, hoje a vibra, por entender que ninguém pode mais aliviá-la.   Neste poema nota-se o dialogo tanto com a obra de Junqueira quanto com a de Fiorotti, pois destacam a falta. Contudo a obra drummondiana vai até o ponto extremo da ausência, aspecto a ser considerado em função do eu poético se acostumar a ela.   

Com uma linguagem carregada de beleza e sensualidade, os poemas em destaque erotizam a ausência da mulher, o cerne do sofrimento do eu lírico. O corpo da mulher é desejado ao extremo, como no poema fiorottiano, em que o eu poético com um tom saudosista relembra a volúpia dos instantes em que passou com a figura amada. 

            Diante do exposto cabe indagar se os poemas analisados neste ensaio seriam pornográficos ou eróticos? Em face do jogo da linguagem apresentada, é evidente que as obras trabalhadas distanciam-se do pornográfico, que é vulgar, banal, de linguagem trivial.   Em “A imagem sexual da relação entre erotismo e pornografia,” Freitas (s/d, p. 4) esclarece esses dois conceitos e diz que “embora tanto o erótico quanto o pornográfico se refiram à sexualidade humana, é preciso atentar para a significativa diferença entre os vários modos de manifestação de tudo que possa ser sexual.” Assim, fica patente que  o que difere o pornográfico do erótico é o tipo de linguagem que o poeta adota para produzir o poema.

 



[1] Este estudo partiu das discussões de poesia, nas aulas de Literatura contemporânea, na Universidade Estadual de Roraima UERR. Análise produzida em sala de aula, sob a orientação da Profa. Dra. Rosidelma Pereira Fraga.

[2] Acadêmica do 7º semestre do curso de Letras Habilitação em Língua portuguesa e Literatura, da Universidade Estadual de Roraima e bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC).

[3] Acadêmica do 7º semestre do curso de Letras Habilitação em Língua portuguesa e Literatura, da Universidade Estadual de Roraima e  bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Incentivo à Docência (PIBID).

[4] De acordo com Barbosa (2005)