Os dois homens começaram a descer a encosta. O velho Patuá, vinha na frente. Era um cabra de ombros estreitos, grande bigode e pernas em arco, muito firmes ainda para a sua idade. O negro Guido seguia-o de perto, sustendo na mão esquerda a capanga de munição. Na semi-obscuridade da madrugada, o vale esboçava amplos paredões hirtos, encaixotando funebremente o rio. Os dois homens saltavam de uma pedra para outra, desciam pelos lajedões talhados quase a pique, subiam por íngremes atalhos, e logo reapareciam atrás de uma touça de malva ou de vela,me, com uma agilidade de cabritos monteses. Agora, porém, tinham eles conseguido alcançar um trecho melhor do caminho, e andavam num passo regular, encolhidos nos capotes surrados.
O ar era frio e úmido.
— Será que ele passa hoje? – perguntou Guido.
— Tem de passar — respondeu o outro homem. — Não é possível que o santo dele seja tão forte.
— Olhe que já faz dois dias que nós esperamos por ele...
— É assim mesmo. Tem emboscadas que dão muito trabalho. Você ainda não viu nada.
— De qualquer maneira, confesso que isto já está me amolando — disse o outro.
O velho Patuá sacou do bolso do paletó de brim mescla um pedaço de fumo de corda e, com uma dentada, arrancou um naco para mascar. Era um antigo hábito seu, do qual trazia marcas nos longos caninos encardidos.
— Quanto mais se você tivesse ajudado agente a matar o Major Cavalcanti! — disse.
— O que foi que teve?
— Nós esperamos por ele na emboscada oito dias seguidos.
— Oito dias? Ah, eu não era capaz de ter tanta paciência. Juro.
— Será que nunca lhe aconteceu uma coisa destas?
— A mim? Deus me livre!
Andando sempre, os dois homens contornaram uma grande rocha, e atravessaram em seguida uma moita de capim-gordura. O negro Guido olhou: amanhecia. A aurora barrava o horizonte de vermelho, e os píncaros lembravam massas carbonizadas em meio a um espantoso incêndio. Então o velho Patuá, que usava chapéu de couro e trazia as calças arregaçadas, disse de repente:
— Pois pode preparar o dedo, companheiro, que de hoje ele não passa.
— Como é que você. pode saber disso? — indagou o outro homem, meio intrigado.
— Como eu posso saber? Bem... Isso não lhe interessa. Sobre certas coisas é melhor a gente; não fazer perguntas.
O negro Guido era muito supersticioso e revelava uma espécie de místico respeito pelo seu companheiro. Disse com hesitação:
— Eu sempre ouvi dizer que você era um mestre em rezas bravas... Na verdade, eu estou aqui faz somente um mês. Mas em minha terra me contaram muitos casos que aconteceram com você.
— Não lhe disseram que eu tinha parte com o Diabo? — perguntou sardonicamente o velho.
E o outro, olhando-o de lado:
— Você sabe que o povo fala muita coisa... Ouvi dizer que você tinha reza para amarrar rastro, e até para fazer uma pessoa desaparecer.
O velho Patuá assumiu um ar de mistério:
— Você fala demais, Guido.
— Eu não falei por mal... — disse o outro homem, arrancando uma haste de capim com a larga mão de palma musculosa. — Se você não gosta de perguntas, acabou-se. Eu só quero é que ele não deixe de passar hoje.
— Pois fique calado, e espere.
Os dois homens subiram uma rampa, entraram por um atalho, e pararam defronte de uma pequena caverna. Em torno, a vegetação era rude e agressiva. Instalaram-se atrás de uma pedra, como já vinham fazendo havia dois dias, e ó velho Patuá observou:
— Este lugar é o melhor possível. Daqui a gente pode atirar nele à vontade.
Estavam instalados na crista de um precipício que dominava a estrada íngreme e pedregosa da serra. O rio escachoava adiante, no fundo do vale rasgado entre selvagens e imponentes escarpas. No céu, um tom róseo substituía, agora o vermelho sangüíneo de antes. Pássaros-pretos cantavam.
— Quer fazer uma combinação, Patuá? perguntou o negro Guido.
— Qual é?
— Como você tem melhor pontaria, atira na cabeça dele.
— E você?
— Bem... Eu atiro nas costas. É mais fácil
O velho Patuá, teve um risinho sarcástico:
— Não pensei que você fosse tão nervoso, Guido.
O outro homem guardou silêncio, demonstrando não ter gostado da observação do companheiro. De repente, atentando na pedra que ficava à entrada da caverna, foi empolgado pela certeza de estar bem protegido. "Caso ele reaja" — pensou — "toda a vantagem é minha, pois estou numa boa trincheira." Depois desembainhou a sua longa e afiada faca, de dez polegadas, e começou a cortar fumo para um cigarro.
Nisto o velho Patuá levantou-se (tinha uma expressão cruel e concentrada) para inspecionar mais uma vez o local. Completando de maneira magnífica, as virtudes do esconderijo, alastrava-se por toda a crista um imbezeiro, ocultando inteiramente a entrada da caverna. Olhando através da folhagem, que descia em cortina, o velho Patuá viu a estrada coberta de seixos, àquela, hora deserta, por onde o homem teria de passar.
— Vai ser uma pontaria bonita — disse. — Ele não vai nem gemer.
O chão da caverna era coberto de capim — tufos verdes, amarelados, macios — e o velho Patuá sentou-se. Depois pegou o clavinote e o pôs sobre as pernas, retirando da capanga a munição para a carga.
— Agora vou carregar, Guido. E você vai ficar de vigia — disse. — Sentado como estou, não posso enxergar a estrada. A pedra não deixa. Ficando de joelhos, você domina a estrada toda. É só um instante, Guido. Eu carrego a arma depressa.
— Está certo — concordou o outro homem.
— Está enxergando bem? — perguntou ainda o velho.
— Estou.
De joelhos como se achava, Guido dominava realmente toda a estrada. A pedra lhe dava na altura do peito, e as folhas do imbezeiro ocultavam-lhe a cabeça. Nessa posição, acendeu um cigarro, tendo o cuidado de soltar as baforadas para dentro da caverna, o que fez por duas vezes. Mas logo depois, atinando com a inconveniência de estar fumando ali, pois a fumaça, poderia, denunciar sua presença no local, apagou imediatamente o cigarro, esmagando-o na ponta de uma pedra. Depois soprou com força, para expelir o resto de fumaça que tinha na boca.
— Cadê a rolimã? — perguntou o velho Patuá.
— Você vai carregar com ela? — disse Guido, sem desviar os olhos da estrada.
— Vou. Você não quer que eu atire na cabeça dele? Portanto, vou precisar de uma carga possante. E ande depressa. Porque antes das sete horas ele deve estar passando por aqui.
Guido revolveu a capanga para procurar a rolimã, que, em sua terra, lhe dera um ferreiro que trabalhara numa garagem. Seus dedos tocaram em cartuchos de pólvora, barbantes, buchas, latas de chumbo meão e espoletas, e trouxeram afinal a esfera de aço que devia servir de bala. Tinha ela um brilho frio e sólido, e era do tamanho de um caroço de pitanga.
— Tome — disse, passando-a ao companheiro.
O velho Patuá tomou a rolimã entre os dedos e a examinou por um momento, como se estivesse avaliando o estrago que ela iria produzir na cabeça do homem a ser morto. Com ela carregou a arma, juntando boa dose de pólvora e algum chumbo grosso. Depois socou a bucha e colocou a espoleta.
— Pronto? — perguntou Guido.
— Pronto — respondeu o velho, limpando nas calças a mão suja de pólvora.
E depois de mais uma vez examinar a arma:
— Agora você carregue a sua, que eu fico de vigia.
Mais que depressa, o negro Guido trocou de lugar com o companheiro e tratou de carregar o seu clavinote. Notando, porém, ao retirar a munição da capanga, que a carga talvez não ficasse bastante forte, perguntou ao velho:
— Você não tem aí um chumbo mais grosso do que este meu?
— Tenho — respondeu o outro homem.
— Tenho este chumbo cabeça-de-macaco, que serve bem; é chumbo para matar onça. Tome.
E passou a lata de chumbo ao negro.
— Mas eu acho bom você botar estes pregos também — acrescentou. — Reforça mais.
O negro Guido recebeu o chumbo e os pregos, e socou, bem socada, a carga do seu clavinote.
— Não bote chumbo demais não — observou o velho Patuá.
— Você está pilheriando? — respondeu Guido, guardando na capanga o pedaço de chifre que lhe servia de depósito de pólvora.
— Pilheriando?
— Sim, companheiro. Será que você acha que eu não sei carregar uma arma?
— Estou avisando por avisar.
— Fique sossegado. A carga foi bem calculada.
O velho Patuá voltou-se rapidamente para o companheiro e, vendo que este j á havia carregado a arma, disse:
– Bem. Passe o resto de meu chumbo para cá. E agora fique aqui junto de mim.
O negro devolveu o chumbo restante, que o velho guardou apressadamente na capanga, e entrincheirou-se atrás da pedra.
— Eu não estou enxergando bem daqui, não — disse, espiando por entre as folhas do imbezeiro.
— Acho melhor eu ficar atrás da ponta da pedra.
— Então, fique — concordou o outro homem.
— E você j á sabe: só atire quando eu mandar.
— Está certo — respondeu Guido. — Mas eu acho que a gente só deve atirar quando ele entra naquela, curva.
E com o dedo apontou o local.
Era o trecho mais estratégico da estrada, porque ali a vítima poderia ser colhida pelas costas.
— O tiro vai ser seguro — garantiu Guido.
O velho Patuá parecia não estar disposto a aceitar nenhuma sugestão do companheiro. Como jagunço que j á tomara parte em várias emboscadas, tinha, de resto, as suas vaidades. Respondeu secamente:
— Deixe isso comigo. Na hora de atirar eu lhe digo.
Entretanto, o negro Guido não deixou de mudar de posição, colocando-se atrás da ponta da pedra. O velho Patuá continuou ajoelhado na parte mais alta da caverna, sobre tufos de capim, apoiando o clavinote contra a pedra. O lugar que escolhera proporcionava uma visibilidade perfeita.
— Eu dava tudo para tomar uma cachaça agora — confessou Guido.
— É. Mas a garrafa esvaziou desde ontem — respondeu o velho Patuá. — Não tem mais nem um pingo.
— Se ele não tivesse se atrasado — disse o outro homem — eu não estava agora com a garganta seca. Nós trouxemos bastante cachaça.
No fundo, também o velho Patuá sentia falta da bebida. Entretanto, mordaz, com o intuito de rebaixar o companheiro, perguntou:
— Será que você precisa beber para criar coragem?
Mas já o negro Guido não o escutava:
— Está ouvindo, Patuá? Está ouvindo?
O outro homem estava ouvindo. E identificou o ruído como sendo o dos cascos de um animal que vinha subindo a serra.
— É. Talvez seja ele — disse. — Vamos nos preparar para fazer fogo.
Os dois clavinotes estavam apontados em direção à estrada. Os canos tinham sido apoiados sobre a pedra, e os dois homens se entreolharam. A essa altura, já o Sol faiscava nos lajedos, e o ar, embora frio, era reconfortante e seco. Um sabiá veio pousar perto da caverna, mas logo esvoaçou, ao pressentir os dois homens. Houve em seguida um rumor de folhas, provocado por uma lagartixa em fuga.
— Já vem bem perto — disse o negro Guido, com o dedo no gatilho da arma.
O tropel fazia-se ouvir cada vez mais próximo. De repente, surgiu, no topo do atalho, a cabeça de um cavalo. O velho Patuá estava calmo, ao passo que o outro dava visíveis mostras de excitação. A vista da cabeça do cavalo, seus lábios chegaram mesmo a embranquecer, como se uma sede atroz o tivesse assaltado.
— Será ele mesmo? — perguntou.
Foi quando o cavaleiro apareceu. Subia a estrada descuidado, assobiando. Guido logo reconheceu o fazendeiro Pedro Neves. Então, o que havia de incerteza no seu espírito transformou-se imediatamente numa sensação de alívio, marcada a um só tempo de medo e crueldade. Apontou a arma, fazendo mira, sempre com o dedo no gatilho. Viu o homem parar de assobiar, enxugar o suor do rosto, com um lenço que de novo guardou no bolso, e acender o cigarro.
Foi quando o velho Patuá comandou:
— Fogo!
O negro procurava fazer um bom alvo, na pontaria contra o paletó de brim cáqui, onde havia manchas de suor.
— Fogo! — repetiu o velho Patuá, num tom de irritação.
E, com o clavinote apontado para a nuca do homem, apertou o gatilho. O negro Guido acompanhou-o. Dois tiros estrondaram, ao mesmo tempo que a caverna se enchia de fumaça. Como se uma invisível mão os enxotasse, os pássaros voaram. Um desabrido tropel foi então ouvido: era o cavalo do fazendeiro, que fugia com os arreios vazios. Espantado, corria doidamente estrada abaixo – as caçambas batendo como sinos. Como sinos roucos. Estranhamente roucos.

(O texto acima foi extraído da Antologia escolar de contos brasileiros, Edições de Ouro - Rio de Janeiro, s/data, pág. 215, organizada por Herberto Sales, seleção de Ivo Barbieri e Maria Mecler Rampell.)