A dicção poética de Francisco Gomes

[Dílson Lages Monteiro]

Poesia  que usa os ritmos do corpo e da palavra poética para se autoexplicar  –  e, autoexplicando-se,  explora as sensações,  angústias e prazeres do verbo e da pele. Metalinguístico em sua essência e, sobretudo, sinestésico, o poeta piauiense Francisco Gomes, em seu terceiro livro de poesia, o longo poema-fragmento “Face a face ao combate de dentro” (Editora Cazuá – SP, 2016), faz do ofício da escritura poética, a partir de duas instâncias enunciativas, a experiência  erótico-amorosa e o labor da construção do poema,  o laboratório sentimental para a manifestação dos mais variados reflexos interiores.

A dicção de Gomes assinala-se, no plano temático-discursivo, pela imersão nos sentidos do tempo presente.  Esse traço peculiar de sua poética já era percebido em seu segundo livro, Aos ossos do ofício o ócio, em cuja orelha destacou o crítico literário e professor aposentado da UFRJ Rogel Samuel: “O tempo é o seu balanço perene, o tempo e suas ciladas, os seus mapas, o tempo em fatias, tudo transitório (...) o tema de Francisco Gomes é a própria poesia, aceno ao sol, desvoar de pássaros, a poesia é a sua fratura do azul noturno, sua porta está sempre aberta para a significação”.

Seguindo a mesma perspectiva, trata-se toda a nova obra, por analogia, de metáfora para o amor erótico e para a criação literária. Nesse projeto de fusão dessas duas matrizes existenciais, abundam na dicção tensa de Gomes as sugestões imagéticas oriundas da ansiedade, dos abismos e vazios que tanto a vivência erótica quanto a escritura poemática geram – nos múltiplos graus de incertezas, mistérios e (in)satisfações .

O corpo, a pulsação instintiva da satisfação de viver e o sublime alívio para as dores do cotidiano. A palavra, refúgio, para que a voz lírica habite no exílio do verbo. Corpo e palavra, unidos, inseparáveis, os instrumentos para superar  os desafios ou tensões da convivência: “Sílaba por sílaba/golpeio  a palavra/ - de frente/ recebo de volta o impacto/ bem no fundo/do âmago /da mente.”

Lembra  Lúcia Santaella que, na poesia,  “os interstícios da palavra e da imagem visual e sonora sempre foram levados a níveis de engenhosidade surpreendentes”. A esse propósito, entre as muitas virtudes da dicção de Francisco Gomes, destaca-se a exploração imagético-visual do signo,  a fim de alcançar os efeitos de sentido, a seu modo, peculiares à poesia pós-moderna de hoje.  A dimensão plástica do léxico, aliada à colagem, dissolve-se em toda a obra em jogos  de sinestesia agradáveis  à imaginação.

No dizer de Adriano Lobão Aragão, Francisco Gomes constitui sua labuta autoral “na exploração plástica e não limitadora do léxico, na fragmentação das palavras, conferindo-lhes significados e autonomia formal”.  O cerne de seus versos, pois, está na renovação lexical e  na fuga da sintaxe comportada, de quem busca abrigar-se em seu “(...) eu/toldo”.

A poesia de Gomes é movimento que rompe “a artéria do segundo”, “num desespero que reabre asas/ para a calmaria/ muscular da resistência”. Sua linguagem é, por isso, telegráfica, reproduzindo, no verso, a velocidade da vida moderna,  em seu constante, insaciável e infinito renovar-se. Busca o poeta a utopia da linguagem exata, em  desvios que  ressignificam o metapoema,  em versos como “a mor/ fina dor amenizada” , ou na exploração do vocabulário científico.

Em sua poética, o léxico da ciência vale mais pelo plano da expressão, vale mais o seu teor fônico, ora acelerando ou retardando o ritmo com que se lê os versos, ora multiplicando  as sensações da escritura literária ou do amor. A palavra é corpo, organismo vivo, reanimado por metonímias que a ele se reportam por meio de palavras compostas que  integram  o exterior ao  interior, coagulando tempos, ouvindo vazios, “no sabor amarelo/ da saudade”.

Ler  Francisco Gomes é suspender-se em imagens e ritmos bem particulares, que nos põem em contato com os estados superiores do sentimento – na materialidade do poema, na materialidade do corpo: “Os números oxi/dando /voltas/  na fuligem das horas/ :  retardamento da/ áurea íris do espanto nos/ quatro olhos que se olham/ Nus.”

Dílson Lages (foto) é professor e membro da Academia Piauiense de Letras.