Elmar Carvalho

 

Após encerrar umas leituras “sérias”, que vinha fazendo há algum tempo, iniciei a leitura do romance A Sombra do Vento, de Carlos Ruiz Zafón. É um livro sobre livros, sobre a sedução de leituras e livrarias. Logo numa das primeiras páginas, deparo-me com estas frases: “Ele amava os livros sem reservas e, embora negasse categoricamente, se alguém entrasse na livraria e se apaixonasse por um exemplar cujo preço não pudesse custear, o rebaixava até onde fosse necessário, ou inclusive o presenteava, se considerasse que o comprador era um leitor com tradição e não uma mariposa amadora”. A citação me fez recordar um episódio do início de meus anos parnaibanos. Suponho que o fato aconteceu em 1977/1978, quando eu iniciava o meu curso de Administração de Empresas. Fui até uma pequena representação da extinta Fundação Nacional de Material Escolar - FENAME, ligada ao Ministério da Educação e Cultura, que publicava material didático ou paradidático, como livros e atlas. Entrei na pequena loja, situada no centro histórico e comercial de Parnaíba, e comecei a olhar atenta e vagarosamente as publicações, até que decidi comprar determinado volume. Quando fui pagar, o responsável pela livraria, um homem franzino como Dom Quixote, disse que me daria o livro. Expliquei-lhe que não era apenas estudante, mas que trabalhava e poderia pagá-lo. Mas o dono do negócio insistiu em me oferecer o exemplar, perguntando: “Será se eu não posso lhe dar um livro?”. Acredito que ele soubesse que eu, ainda bem jovem, fosse um poeta, universitário, que andava publicando seus textos nos jornais Folha do Litoral, Norte do Piauí e Inovação, e quis distinguir-me com um gesto que fosse sinal de seu apreço. Sem dúvida percebeu que eu “era um leitor com tradição e não uma mariposa amadora”. Esse fato teve um valor simbólico para mim muito grande, tanto que passadas várias décadas nunca o esqueci, assim como não esqueci nem a imagem nem o nome do livreiro, de quem nada mais sei. Nem mesmo sei se ele amava tanto os livros como Gustavo Barceló, o livreiro de A Sombra do Vento, ao qual se refere o trecho citado, que ademais era rico e tinha a livraria apenas por paixão. Chamava-se Ulisses, como as personagens de Joyce e de Homero. Com efeito, só poderia ser mesmo uma figura extraída das páginas de uma obra de ficção. Afinal, qual o comerciante que, em lugar de vender, entregaria dadivosamente o seu produto a alguém que sequer o conhecia? Ulisses, seguindo o impulso de sua bondade e de seu coração, assim o fez. E o seu gesto tão simples, mas tão cheio de significado e simbolismo, eternizou-se em minha alma.

(*) Texto desentranhado do Diário Incontínuo, que venho publicando no meu blog http://poetaelmar.blogspot.com