[Paulo Ghiraldelli Jr.]

Quando Descartes montou sua metafísica, distinguiu o que chamou de corpóreo, o que ocupa espaço, do que chamou de pensamento, o que não ocupa espaço. Instituiu o que os historiadores da filosofia chamam de “dualidade cartesiana” de corpo e mente. Uma das noções metafísicas de substância, vinda de Aristóteles, era a de “sujeito de predicados”. Os filósofo modernos uniram isso: se a substância é sujeito de predicados e uma das substâncias é o pensamento, lhes pareceu mais ou menos correto dizer que o sujeito é o pensamento. Daí para dizer que a mente e o sujeito são uma e mesma coisa, bastava menos que um passo. Foi assim que a noção de identidade individual se fez. O sujeito filosófico ou, em termos sócio-políticos, o indivíduo, passou a ser caracterizado pelos seus pensamentos – o que se expressa na sua linguagem e atos.

 

 

Essa idéia de identidade do indivíduo prevaleceu durante toda a modernidade. Tal barco só fez água no final do século XIX. Foi a partir do início do século XX, por uma série de situações, realmente a noção de identidade começou a mudar. Ou melhor, passou a deslizar. Até então, o que parecia mais perene e, assim, semelhante ao que seria próprio de uma identidade, era o pensamento. Mas, sabemos bem, o homem do século XX abriu caminho para algo novo, ou seja: a mudança de pensamento. Alterar crenças, valores e projetos em um mundo em contínua transformação rápida passou a ser uma necessidade e, assim, logo a alteração moral e cognitiva deixou de ser um pecado para ser uma virtude. O que então garantiria a identidade? A segunda parte do que chamamos de eu assumiu o posto: o corpo. O século XX é o século do corpo.

O projeto moderno incluía nossa identificação por conta de nossas convicções. O mundo contemporâneo passou a criar outros mecanismos de identificação, perfeitamente corpóreos: a impressão digital, a assinatura e a foto 3×4. Aos poucos fomos deixando de ser burgueses ou proletários, comunistas ou católicos, americanos ou europeus para nos tornarmos brancos ou negros, feios ou bonitos e, principalmente, gordos ou magros. Não vai demorar o dia em que, quando da morte de alguém, o enterro seja da alma, não do corpo. Podemos fazer isso por meio de filmes de todo tipo. Talvez até possamos recriar-nos como andróides que, enfim, não terão todos os nossos pensamentos – somente os úteis.

Em um mundo assim, que é o nosso mundo, é estranho que ainda estejamos preocupados em ir a terapeutas para nos livrarmos de algum problema. Aliás, o fato é que os terapeutas têm vivido um drama, há quem os procure não para falar do que pensam ou imaginam em geral, e sim para falar de um único pensamento: que elas são o que são os seus corpos e, por isso mesmo, se pudessem mudar seus corpos, todos os seus problemas terminariam. Há a cada dia menos pessoas falando de suas experiências para seus psicólogos, mas consultando-os sobre o que acham delas esculpirem seus corpos de um modo ou de outro. Não é só a convencional cirurgia plástica que está em jogo. Nem se trata somente de uma lipoaspiração simples ou de uma tradicional redução de estômago. Nem é unicamente a febre da academia associada ao silicone e aos anabolizantes. Não! A situação chega mesmo ao campo da mudança óssea. Há os que serram costelas e outros que colocam pinos para a ampliação dos ossos, para ficarem mais altos. A idéia básica não é ser belo em geral, mas ser aceitável dentro de uma silhueta que, em meados do século XX, estava somente no imaginário dos artistas de HQ que acompanharam Stan Lee. Ou nos parecemos, ainda que forçadamente, como estereótipos de personagens ou não sonos dignos de nós mesmos!

Resumindo: o corpo é o eu de cada um, e se cada um tem algum erro, este erro está no corpo. Mudar o corpo é, assim, a maneira aparentemente menos sofrida e mais eficaz de mudar de personalidade e, dessa forma, se livrar dos problemas trazidos por aquela personalidade até então vigente.

Tudo se passa como se nós todos chegássemos à seguinte conclusão: mudar pensamentos, valores, crenças etc., tudo isso eu já fiz (ou acho que fiz), e de nada adiantou, e isso porque não mexi no essencial, no meu verdadeiro eu, que é o meu corpo. Eu sou o meu corpo e se quero mudar e ser feliz é nisto que tenho de mexer.

É claro que essa mudança não é outra coisa senão uma mudança de pensamento, de mentalidade. Mas não é uma mudança de pensamento para mudar o pensamento, é um pensamento que acredita que todos irão mudar de pensamento a respeito de todos os outros se pudermos alterar nossos corpos. Se for para mudar, que mudemos no essencial, ou seja, nos corpos. Ora, se há um culpado pelos nossos sofrimentos, este culpado é o corpo.

Não creio que possamos negar que há nisso tudo uma espécie de fuga. No fundo, não estamos mais sendo criativos para mudar nossos esquemas mentais, não estamos mais conseguindo pensar diferente, estamos sofrendo por ter de alterar nossa inteligência todos os dias (veja como geme um filósofo diante de ter de usar a Internet!) e, então, queremos acreditar que somos corpos e é aí, nisto que é o corpo, que a alteração tem de se dar. Aliás, nisso tudo, nossos ídolos nos ajudam. As celebridades trocam seus corpos, mudam até de sexo – ficcionalmente ou realmente – e nos dizem, por meio de seus porta-vozes, que são felizes. Por que não acreditaríamos? Só porque uma ou outra sucumbe? Ora, mas quem não sucumbe? Nunca ninguém disse que no caminho não há “efeitos colaterais”.

Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo