A CONFUSÃO DAS PALAVRAS
Por Margarete Hülsendeger Em: 18/04/2013, às 11H44
Já perceberam como é fácil, mesmo em pleno século XXI, confundir questões religiosas com científicas? Parece que as pessoas estão sempre dispostas a dar explicações científicas para eventos religiosos ou explicações religiosas para eventos científicos. Uma confusão que a internet só tem feito aumentar, pois, de maneira muitas vezes irresponsável, dissemina informações sem fundamento, dando origem a uma boataria que não tem fim.
Um exemplo bem atual é a forma como a expressão “Partícula de Deus” se espalhou pelo mundo. E pior, de maneira completamente equivocada.
Segundo Marcelo Gleiser, esse “equívoco” começou quando o físico, Leon Lederman, propôs a uma editora a publicação de um livro intitulado a “Partícula Maldita” (em inglês, Goddamn Particle). Os editores na época acreditaram que com esse título o livro não venderia e assim decidiram mudar para algo mais apelativo, ou seja, “Partícula de Deus”. O problema é que, rapidamente, pessoas que pouco – eu diria nada! – entendiam de ciência começaram a dizer e a divulgar bobagens.
Outra grande confusão ocorreu em 2008, quando foi anunciado que o LHC – Large Hadron Collider (Grande Colisor de Hádrons) – entraria em funcionamento. Na época, espalhou-se a notícia que os cientistas estariam colocando a vida de todos em perigo, pois havia risco de se criar um imenso buraco negro que engoliria o planeta. Mais, que os cientistas estariam querendo assumir o papel de Deus “criando e destruindo mundos”. E mesmo sendo uma tremenda tolice, a informação circulou pela internet, assustando muita gente e aborrecendo os cientistas que trabalhavam no CERN – Conselho Europeu para Pesquisa Nuclear.
Agora faço a pergunta: qual a relação de Deus com o que está sendo feito no acelerador de partículas do CERN?
Nesse grande laboratório, enterrado 100 metros abaixo do solo, entre a Suíça e a França, estão sendo realizados experimentos que têm o objetivo de testar algumas das teorias da física de partículas. Uma dessas teorias defende a existência de uma partícula “primordial”, ou seja, uma partícula que daria origem a todas as partículas e, consequentemente, à matéria como a conhecemos. Os físicos a chamam de Bóson – partícula teoricamente surgida logo após o Big-Bang – de Higgs – físico britânico que nos anos 60 previu a sua existência.
Portanto, a resposta à pergunta parece óbvia: a não ser que Deus seja inglês e se chame Peter Ware Higgs, toda essa polêmica em torno da expressão “Partícula de Deus” não tem sentido. Do mesmo modo, o tumulto sobre a formação de um buraco negro em um acelerador de partículas. Qualquer pessoa que procure saber um pouco sobre o trabalho dos físicos, no CERN ou em qualquer outro laboratório, vai suspeitar desse tipo de notícia. Contudo, os responsáveis por difundir boatos desse nível não estão interessados em compreender os objetivos científicos por trás dessas pesquisas, o que eles querem é criar alvoroço. E quanto mais, melhor.
E a confusão pode não parar por aí.
Em março (13/03/2013) foi inaugurado um novo observatório astronômico a cinco mil metros de altitude, na Cordilheira dos Andes chilena. Seu propósito é captar ondas emitidas por corpos frios em lugares muito longínquos do universo. Com essas informações os cientistas esperam obter novas informações sobre a origem das estrelas e planetas, bem como sobre a presença de partículas orgânicas em lugares a bilhões de anos-luz da terra.
A essa altura você deve estar pensando: “Tudo bem, mas o que isso tem a ver com religião?”. Absolutamente nada! A questão é que esse novo observatório é chamado ALMA, sigla que em inglês significa “grande conjunto milimétrico/submilimétrico do Atacama”. E se tomarmos por base o que vem acontecendo com o Bóson de Higgs, que de uma hora para outra passou a ser a pedra fundamental de muitas ideias espiritualistas, não ficaria admirada se ALMA passasse a se tornar alvo de estranhas concepções esotéricas como, por exemplo: ser algum tipo de portal espiritual para dimensões paralelas. Em tempos de internet e redes sociais tudo é possível, por mais absurdo que pareça e, para nossa infelicidade, não faltam pessoas interessadas em espalhar a confusão e a ignorância, torcendo os fatos a seu favor, dando-lhes significados completamente diferentes dos reais. Algo muito assustador!
Nessas horas, não posso deixar de pensar em todos os que sofreram perseguições e até foram mortos só por defenderem a ideia de que religião e ciência são assuntos que devem ser tratados de formas distintas. Galileu, Giordano Bruno, Kepler, Copérnico são os nomes mais famosos, mas não foram os únicos a padecer nas mãos daqueles que viam na ciência uma ameaça ao seu statu quo. E o mais estranho é que a maioria desses “rebeldes” era extremamente religiosa. No entanto, a fé não os tornava cegos para o que a natureza tinha a lhes oferecer. Ao contrário. O estudo dos fenômenos naturais era apenas outro caminho para chegar à divindade, pois, como dizia Galileu, é impossível crer em um Deus que tendo-nos dotado de sentidos, razão e intelecto não nos permitisse usá-los.
O Bóson de Higgs é, portanto, um fenômeno natural ainda a ser comprovado. Contudo, caso o seja, não deve ser visto como uma ameaça ou como uma forma de justificar o injustificável; a transcendência não será encontrada nos aceleradores de partículas do CERN. Do mesmo modo, “ALMA”. Apesar da expressão nos lembrar espíritos vagando pelo espaço, essa sigla representa apenas uma maneira de homens e mulheres estudarem o que está além do nosso “jardim”, inclusive para descobrirmos se estamos sozinhos no universo. Qualquer discussão que leve num sentido diferente servirá apenas para alimentar o interesse de pessoas que ainda acreditam que o mundo foi feito em sete dias e que a Terra é o centro do universo. Portanto, entenda: religião e ciência não são inimigas. Elas apenas trabalham utilizando referenciais diferentes. E como sabemos desde Einstein, a troca do referencial altera completamente a visão do observador.