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 A CASA DO MEDO

 

 

Miguel Carqueija

 

 

     O apito tocou.

     Não foi fácil para mim levantar, ainda que, passada a maior parte da sonolência, eu já levantasse transido de medo, movido a medo. Um medo que me acompanhava por toda a parte dentro dos limites da casa flutuante.

     Quando terminei minhas orações atrevi-me a olhar para fora através da janela de trinta centímetros quadrados, com tampa corrediça. A água estava escura como de hábito, com aquela tonalidade conferida por limos seculares. Rescendia a podridões ocultas e onipresentes, enquanto o distante horizonte mostrava apenas água, água e mais água. As ondulações eram suaves e inerciais. A água ondulava uniformemente, tranquilamente, como já o fizera ontem e ante-ontem e antes de ante-ontem, e certamente ainda iria fazer amanhã, e depois de amanhã, e depois de depois de amanhã. Eternas ondas.

     A vista procurava instintivamente alguma nuance na eterna cor, algum risco que escurecesse aquele verde-garrafa ainda mais, algum sinal de movimento subaquático. Passavam semanas e meses e nada acontecia com exceção da deterioração dos nossos nervos, um fenômeno constante e provavelmente irreversível.

     Quando cheguei à cantina Oliveira já lá estava, examinando sua xícara branca, aparentemente farejando-a. De fato, na maneira como as xícaras eram aquecidas, ou quem sabe por efeito de impregnações sucessivas de leite, o cheiro era agradável.

     Ele olhou para mim e observou:

     - Alguma novidade?

     Pergunta estúpida. Qual a novidade que já não nos pusesse todos em polvorosa?

     - Nenhuma. Bem, creio que vi algumas fragatas ao longe...

     - Acho que há dez anos não como carne de ave que não seja galinha. Elas estão muito raras, muito difíceis...

     Eu não estava com vontade de conversar. Sentei-me e examinei a minha xícara branca. Observei o fogareiro e a torradeira. O cheiro era agradável. Afinal, os trigais da estufa eram a grande riqueza que nos restavam...

     Trabalhar, trabalhar, trabalhar. Filtrar a água, filtrar a água, filtrar a água. Lavrar, cultivar, colher. Calafetar, calafetar, calafetar. Remendar, remendar, remendar. Vigiar, vigiar, vigiar. Sempre.

     Oliveira foi até o fogareiro, retirou as omeletes e panquecas e colocou-as sobre a mesa de metal.

     - Eu gosto de madrugar. Não sei porque os outros são tão preguiçosos.

     Eu preferia assim. Poucos levantavam no primeiro apito, que dizia serem cinco da madrugada. Mas eu gostava de comer a sós, ou quase. O medo estava lá, pouco menos do que palpável. Oliveira também tinha medo. Todos tinham, mesmo quando evitavam falar nisso.

     Comecei a colocar o leite de cabra na minha xícara. Oliveira, muito ocupado em passar pasta de amendoim numa fatia de pão, parecia não se lembrar, desta vez, de comentar a minha obstinação em não constituir família.

     E então a casa flutuante sacudiu, sacudiu violentamente, como se apanhada por uma onda-monstro.

     O leite entornou. Xícaras, pratos e as omeletes e panquecas caíram ao chão. Ao mesmo tempo luzes vermelhas se acenderam e um trilo sinistro se fez ouvir.

     - Chegou a hora – disse Oliveira, em pânico. – Vamos chamar todo mundo!

     Corremos para a sala de combate, no alto da barcaça. De lá, homens, mulheres e crianças, todos portando chicotes elétricos, puseram-se a lutar através das portinholas, contra as fúrias que nos atacavam. Tentáculos repulsivos e hediondos erguiam-se nas águas imundas e revoltas e subiam até o alto da casa, tentando abarcá-la e envolvê-la, para nos puxar a todos rumo ao fundo. Por todo o perímetro da sala de combate brandíamos nossas armas, chicoteávamos aqueles malditos braços de moluscos, tentando fazê-los desistir. Creio que havia bem uma dúzia daqueles seres, era um ataque em massa. O barco, sob piloto automático, tentava prosseguir – mas quase não avançava, de tão seguro. Jogamos algumas bombas de profundidade e alvejamos seguidamente os tentáculos. Alguns se introduziram pelas estreitas portinholas e enlaçaram várias pessoas, marcando-as com suas ventosas, mas Oliveira, eu próprio e alguns outros cortamos aqueles membros asquerosos com golpes de machado. Finalmente, após meia hora de combate insano, os krakens foram repelidos, não sem causar sérios prejuízos em nossas estruturas, nos tanques hidropônicos e até nos alojamentos de animais, tendo arrebatado galinhas, porcos e cabras.

     Dizem as lendas que nem sempre o mundo foi assim. Um dia existiram continentes, que eram extensões intermináveis de terra firme, povoadas por animais, plantas e seres humanos em número incalculável. Mas as experiências com a bomba atômica dissolveram as calotas de gelo dos pólos e as demais geleiras, desagregaram os continentes e fizeram subir o nível dos oceanos; quando terras e mares se misturaram, a superfície da Terra transformou-se nesse imenso alagado mal cheiroso, lamacento, de profundidade geralmente pequena e habitado por polvos imensos, fruto das mutações radioativas e que nos têm, ao que parece, um profundo ódio. E o que resta da humanidade a isto se reduziu – pequenos grupos em casas flutuantes, onde tudo tem que existir em concentração: agricultura, indústria e comércio. As poucas ilhas não comportam mais gente e nenhum barco está a salvo dos ataques de polvos. E vivemos com medo, um medo onipresente, que penetra até a medula óssea... mas antes, a humanidade dominava o planeta, a ponto de devastar a natureza e dizimar os animais, levando inúmeras raças à extinção.

     Assim dizem as lendas.

     Desolados, demos início ao penoso trabalho de reparação.

             

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