A CADELA DE MINHA RUA
Por Antônio Francisco Sousa Em: 06/09/2013, às 09H44
Se não for invenção da imprensa o que falam a respeito de sua peculiar falta de urbanidade, ela, de fato, trata pessoas de seu círculo de relacionamento pior do que alguns malvados moradores fazem com a cadela de minha rua.
A cachorrinha, na verdade, não nasceu lá; surgiu pequenininha e se arranchou em frente à casa de um dos vizinhos, certamente, porque seu ouvido e faro aguçados perceberam que ali viviam outros cães. O dono da residência, para não a misturar com os cachorros de pedigree refinado, não permitiu que a cadelinha adentrasse em seu lar, mas cuida bem dela. Até hoje, algumas vezes durante o dia, um empregado coloca, em recipientes apropriados, comida e água para ela.
Se não estiver comendo ou bebendo, estará procurando chifre em cabeça de gato nas redondezas. É comum, ainda, ouvir-lhe os ganidos decorrentes dos açoites e admoestações feitos por vizinhos e transeuntes, no sentido de espantá-la ou a retirar de locais que não requeiram sua presença. Literalmente, ela é o cão. Quando miúda, quem colocasse lixo em saco plástico ou qualquer embalagem frágil à altura de seu pequeno focinho, era porque queria ver estrago. Para que os garis não deixassem tudo espalhado, aumentando o número de moscas e insetos, apanhávamos os destroços e o púnhamos em novas embalagens, guardando-as do lado de dentro dos muros até momentos antes de o carro do lixo passar. Ou seja, desde o princípio a cadela já nos educava, incitando-nos a não deixarmos lixo na rua por muito tempo.
Talvez por conta da solidão em que vivia, não era raro a pegarmos chorando, nos poucos momentos em que se sentava ou deitava nas quentes calçadas da rua; durante o dia, mais moderadamente, como se estivesse apenas resmungando; à noite, não, o choro tornava-se insuportável, a ponto de termos que a enxotar para o mais longe possível, a fim de dormirmos tranquilamente. Em muitas ocasiões, enquanto novinha, depois de essas expulsões, parece que ela encontrava um lugar que não incomodava ninguém, pois não mais a ouvíamos lamentando-se; quem sabe, inteligente como é, entendia que precisávamos, de fato, descansar, e ficava em silêncio.
Desde que atingiu a idade púbere e, agora, no período de cio, os moradores passamos por momentos tempestuosos. A todo instante, matilhas de cães tentam se aproveitar de seu apetite sexual. Nossa Geni também dá para qualquer um.
Dia desses, a danada emprenhou. E no último inverno deu à luz um pequeno e gorducho cãozinho.
Graças ao pequerrucho, vivemos um período de certa calmaria na rua. Os tarados cães da redondeza foram atrás de outra cadela. Pouco tempo depois de parir, o cachorrinho, que andava sempre à sua sombra, sumiu. Não se soube se alguém o pegou para criar ou se sofreu algum fatal acidente. Ela também desapareceu por uns dias; é provável que haja saído em busca do filhote. Voltou, recentemente, machucada em uma das patas e, novamente, foi bem recebida pelo prestativo vizinho. Mas já está boa e fogosa, dentro da normalidade: Geni continua se divertindo com seus amantes. E a vida segue.
Pois bem, outro dia, um conhecido jornalista, em sua coluna diária, disse que a presidente da república aproveitou-se de uma escala que seu avião fez para reabastecimento no Panamá, para vingar-se do Itamaraty. Enfezada, teria largado a tradutora que lhe serviu durante a viagem, e a quem vinha detestando, naquele país, sem lenço nem documento. Segundo o articulista, antes que a intérprete voltasse da farmácia a que fora procurar, e com o avião já reabastecido e taxiando, sua excelência ordenou que decolasse, sem a cidadã; diante das ponderações dos assessores de que, sozinha, no Panamá, ela sofreria horrores, teria dito: o problema é dela.
Tem ou não a cadela de minha rua mais prestígio do que a tradutora abandonada, no Panamá, pela senhora que nós, brasileiros, escolhemos para governar-nos?
Antônio Francisco Sousa – Auditor-Fiscal ([email protected])