A Batalha do Poder - posfácio I

Por Flávio Bittencourt - especial para o Portal Entretextos


Na segunda metade dos anos 1950, Juscelino Kubitschek de Oliveira decidiu que Brasília seria construída e ainda em sua gestão presidencial inaugurada, no Planalto Central brasileiro. Quando do estabelecimento dos limites do novo Distrito Federal com o Estado de Goiás, enquanto, por exemplo, as cidades de Formosa e Luziânia continuaram goianas, porque externas ao quadrilátero demarcado, Planaltina passou a ser uma cidade candanga, intrabrasiliense, fundamental até (a pedra fundamental de Brasília, um obelisco de 3,75m de altura, foi erigida no ponto mais alto do Morro Centenário, a apenas sete quilômetros e meio do Centro de Planaltina). 

Esse obelisco foi inaugurado no Retângulo Cruls, ao meio-dia de 7 de setembro de 1922, pelo presidente Epitácio Pessoa e pode ser visitado por quantos queiram, residindo na Capital do Brasil ou durante visita, conhecer a centralidade planaltinense na previsão dessa utopia-concretizada chamada Brasília. 


Assim é que não se pode admitir que uma cidade histórica, com tradição e centralidade em termos de fundação, seja considerada “satélite” de um Plano Piloto que meramente a sucedeu.  


Um tarimbado escritor, professor, crítico literário e poeta planaltinense, nascido, a propósito, antes da fundação de Brasília – pode-se afirmar, dessa forma, que ele é simultaneamente goiano e brasiliense (porque a Nova Capital já estava sendo construída) –, soube, com evidente capacidade de produzir robustas-ainda-que-breves análises literárias, em formato (nesse caso) sintético-textual, bem apreciar a nova novela de Miguel Carqueija, que o crítico chama de conto (se conto A Batalha do Poder é, certamente trata-se de um grande, também em dimensão textual, conto). 


Escreveu Geraldo Lima sobre A Batalha do Poder: 


Breve comentário sobre conto de Miguel Carqueija

 
"A Batalha do Poder, de Miguel Carqueija, se enquadra bem no gênero ficção científica. Traz alguns dos ingredientes que costumam caracterizar esse gênero literário: presença forte da ciência, máquinas futuristas, ação, luta contra algum poder tirânico num lugar imaginário, presença de um herói com poderes imbatíveis, fantasia etc. A narrativa, como há de ser, é ágil e procura despertar no leitor o interesse pelo desfecho da história. É, sem dúvida, um texto que se destina, com mais força, ao público jovem. Creio que entre os adolescentes ele encontrará seus leitores mais fiéis.

 

“Miguel Carqueija é escritor experimentado e domina bem o seu oficio. É assim que faz desse conto A Batalha do Poder um texto interessante, uma alegoria do poder que oprime e precisa ser deposto pela ação revolucionária. O aspecto religioso está presente, talvez explícito demais, deixando claro, quem sabe, a oposição do autor aos Estados que tentaram (ou tentam) se erguer sem a presença da religião. O texto tem lá os seus clichês, mas nem isso tira o seu poder de sedução. Cumpre bem o seu papel de formar leitores e despertar-lhes o poder da imaginação. 


Dando prosseguimento ao que, assim pensamos, deve ser neste momento declarado sobre A Batalha do Poder, passamos a uma reflexão mais prolixa – porque, por um lado, falta-nos a capacidade de síntese de Geraldo Lima e, por outro, devemos cumprir a promessa do Prefácio, de pelo menos tentar empreender uma tarefa com alguns traços de profundidade teórica –, que se nos afigura agora, aliás, como necessária e urgente.  


De acordo com Ana Lucia Santana, em sua resenha sobre o romance O símbolo perdido, de Dan Brown, o personagem Robert Langdon, um especialista em “simbologia” (interpretação de símbolos visuais, gráficos), teria moldado sua mentalidade “a partir de um viés intelectual de natureza essencialmente materialista, dominante no mundo moderno". A entrada em cena de certo personagem materialista em certo romance não é, per se, suficiente – acrescentamos nós, neste momento – para fazer desse romance (no caso citado, de grande aceitação popular) uma obra literária materialista. 


Essa observação preliminar é advertência para o fato de que este Posfácio é necessariamente incompleto (como, de resto, são todos os textos críticos e analíticos): falamos agora exclusivamente de uma única personagem, a surpreendente Faisão Verde, que, a propósito, mesmo sendo central na narrativa, pode não coincidir – existencialmente, digamos – em gênero, número e grau com o que consideramos ser a postura ideológica/teológica do autor do livro que ora tentamos analisar, ainda que parcialmente, como se afirmou. 


Sendo Miguel Carqueija um ser católico apostólico romano (praticante, leal e fiel) não é descabido que percebamos sua última novela como texto propriamente literário-católico-teologizante. Mas será a personagem principal também católica? Quem é essa desconcertante Faisão Verde? – poder-se-ia, a título de provocação teórico-crítica, imediatamente indagar. 


Como nos propusemos – talvez de forma excessivamente ambiciosa (mas não erudito-pedante) – tentar fazer um mergulho com certa densidade teórica pelo menos em certo aspecto de A Batalha do Poder (pensamos numa abordagem antropocomunicológica possível da citada personagem, central na novela de Carqueija), na medida em que não dominamos profundamente a doutrina religiosa que Carqueija estuda e pratica há mais de meio século – porque Miguel Carqueija tem mais de sessenta anos de idade e nunca abandonou a sua fé –, cabe imediatamente mencionar o solo teórico sobre o qual nos movimentamos, aqui: fundamentação teórica que pode, por seu turno, terminar apontando para uma recusa, digamos, político-existencial, tanto do citado Robert Langdon (se é ele materialista, não pode captar certas nuances dos grandes símbolos mágicos e teológicos), quanto da própria Faisão Verde como uma personagem possivelmente religiosa, confesse-se imediatamente. 


Todos os resumos são redutores, desafortunadamente redutores. Todavia, para que cheguemos logo à aproximação a possível explicação teórica do fenômeno literário-antropológico sob observação, ainda que essa explicação apareça como introdutória, da misteriosa e fascinante Faisão Verde, pede-se a benevolência do leitor para a rapidez com que passamos a mencionar claras posições do filósofo esloveno Slavoj Zizek, ao abordar obras de ficção científica, vale dizer, conhecidas produções culturais que guardam uma correlação de gênero com o (por enquanto) último livro de Miguel Carqueija. Enquanto Zizek recorre aos exemplos de Guerra nas Estrela, saga cinematográfica de George Lucas, de Solaris (romance) e de Solaris (filme, o primeiro, soviético) – como nós, a propósito, preferindo o livro de Stanislaw Lem ao filme de Andrei Tarkovsky –, o foco do presente texto é centrado na personagem Faisão Verde, da admirável novela de ficção científica e ficção política A Batalha do Poder, de Miguel Carqueija. 


 


(Continua)